sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Kibutz

Até hoje imagens do kibutz Givat Brenner voltam em flashes à minha mente. A primeira delas é a de um longo gramado à frente de uma sequência de casas, onde fiquei com minha família, em minha primeira viagem internacional. O ano era 1976.
A casa, na verdade, era um quarto com banheiro acoplado. Dormi ao lado de minha mãe, enquanto meu pai ficou no quarto vizinho. O travesseiro era macio, a cama aconchegante, em uma atmosfera nova e bucólica que a vida comunitária me transmitia.
Até hoje não entendi ao certo o que houve quando, no dia seguinte, a fronha estava manchada de vermelho, em função de um sangramento em meu nariz. Possivelmente, a pressão da novidade, em uma terra estrangeira, foi determinante.
Havia um aroma especial adocicado de querosene, usado nos lampiões que iluminavam a noite cercada de mata e de cricrilar dos grilos. O tio Abrahão Gontow, figura imponente que mudara para Israel três anos antes, chegou a dirigir um trator para eu ver como era.
Meu tio trabalhava em uma fábrica de alumínio e me deu uma peça decorativa, parecida com uma âncora cheia de detalhes. Outra era mais pesada e volumosa. Eram espécies de obras de arte que brotavam daquele material, me fascinando.
Em uma das noites, sob o sereno, ao lado de minha prima Denise, vimos seu irmão, o Mauro, andar misteriosamente pela trilha que levava ao heder ohel (refeitório). Com a gola do casaco levantada, ele passou sem falar nada, como se quisesse se disfarçar.
Conheci então um pouco mais do espírito israelense, um tanto duro e enigmático, que ele começava a assimilar, após chegar ao país com oito anos de idade.
Havia também um quê de jeito gaúcho, pois eles eram de Porto Alegre. Aliás, por defenderem fronteiras, gaúchos e israelenses têm um modo direto, objetivo e às vezes duro de ver a vida.
Meu tio que o diga quando se ofendeu, ao entrar na casa de seu primo, após este ironizar a chegada de minha vó, que viajava conosco.
"Primo, trouxe minha mãe para ver você." A resposta foi curta e grossa: ”E eu com isso?"
Eu já estava na sala, contemplando os castiçais, o conforto do sofá, os enfeites das paredes, decifrando um pouco mais de um lar em Israel, quando o tio, ofendido, disse para irmos embora.
"Ninguém fala assim com minha mãe", bradou, em seu estilo gaúcho e temperamental. Surpreso, o primo dele tentou argumentar. Disse que era brincadeira (devia estar meio irritado no momento). Mas, não admitindo que seu comentário foi infeliz, ainda retrucou, teimoso, sem pedir desculpas: "Se tu quer então, não posso fazer nada ..."
Minha vó, com sua sabedoria doce e tranquila, saiu sem reclamar, serena, tentando conter o ímpeto do meu tio. E chegou a me dizer, sem nenhuma tristeza: "Fique tranquilo, os encontros superam os desencontros".
Ela sabia. Outras pessoas, afinal, foram muito mais calorosas com ela naqueles dias. Testemunhei quando ela reviu uma de suas irmãs, que foi visitá-la no kibutz, 48 anos após se separarem. Minha vó veio para o Brasil ainda antes da Segunda Guerra e depois nunca mais tinha visto seus familiares poloneses.
Até o momento do reencontro, o qual presenciei. Ficaram se abraçando por longos minutos no entardecer, com os cabelos embranquecidos mas a alma renovada, naquele mesmo gramado em frente às casas.
Soube depois que Givat Brenner foi fundado justamente por poloneses. Além de alemães e lituanos, com o trabalho de Enzo Sereni. Ele morreria nos anos 40, após integrar missão de paraquedistas, invadindo a Itália para se arriscar e salvar vidas judaicas na Europa. Golda Meir, então proeminente figura da Agência Judaica, como uma mãe, o aconselhou a não ir.
Esse Givat Brenner, fundado por um idealista, é o mesmo Givat Brenner dos meus 7 anos: um palco de aprendizado. Lá aprendi que o sofrimento de um povo, de uma família, de uma mulher, na dor e na distância, nos ensina a lidar com os desencontros mesquinhos do dia a dia. E a valorizar muito mais os verdadeiros encontros. Estes sim, superando o tempo e a distância, são para sempre. Tanto que, ainda hoje, a novidade soa para o adulto tão surpreendente quanto soou para o menino: "Caramba, 48 anos!"

quinta-feira, 25 de maio de 2017

A casa

Chegava da escola com a irmã e logo se apresentava para mim uma série de alternativas, assim que o carro subia a rampinha e atravessava o portão aberto de ferro. Almoçar, fazer lição, brincar com o cachorrinho Bidu... Eram opções que se misturavam às esperanças e angústias da meninice, enfronhada na realidade das tarefas, da proteção e da sensação de eternidade.

Almoçava na cozinha, entre a sala de entrada e a lavanderia. Era um local até que pequeno, mas eu achava imenso, como uma companheira de anos e sua disposição histórica: a mesa, a pia, o fogão ao lado da janela e a geladeira a qual, à tarde, quando resolvia colocar o pijama já depois do almoço, abria buscando sempre uma novidade.

Descrever é difícil. Só quem viveu sabe o que era tudo aquilo, cada detalhe dos objetos, a gordura do gradil do fogão, o barulhinho que fazia ao abrir a tampa do forno...O cheiro da sala após faxina, o tirar a roupa do varal antes da chuva, o prazer de matar a sede no copo legal, a segurança em ver os móveis sempre lá, como referências. O entardecer misturando-se com a proximidade do jantar e com os programas rotineiros da televisão, embalando as expectativas do dia seguinte.

Na sala, gostava de ficar sentado no chão, em cima do velho tapete verde e apoiado na mesinha com um tampo de vidro, assistindo TV, comendo hambúrguer e arroz Uncle Beans, sempre deixando a porta envidraçada, de ferro branco, entreaberta, para respirar o ar perfumado que vinha do jardim da frente.

Do jardim se misturavam uma flora abençoada de palmeiras e outras árvores, além de um imenso pinheiro, plantado desde que chegamos, em 1970, bem perto do portão. Eram tempos em que não havia tanto risco e mantinha a segurança deixando a grade, também corrediça, trancada.

Cansei de fazer paredão no muro lateral do jardim, chutando a bola e aprendendo a dominá-la. As marcas da bola, alías, foram responsáveis também por várias mudanças de cor da casa, que já foi rosa, branca e bege, mas, acompanhando também as minhas mudanças, mantinha a mesma essência.

Esbaldei-me  de brincar com os vizinhos Carlos Fernando, Dermany e Andrea Kottel, sempre vindo me chamar tocando a campainha estridente situada no início do muro. Um dia, quando não pude ir, ouvi uma crítica e logo respondi que preferia ficar lá dentro, respirando o ar puro das árvores.

Naquele momento, estava ao lado da babe, minha avó que sempre apoiava o que eu dizia. Todo dia ia me despedir dela, deitada lá no quarto de cima, com janela para o jardim, e ouvia de seus lábios ternos que um dia eu seria presidente. Eu descia as escadas, para ir à escola, mais confiante e feliz.

No meio da tarde, era comum também o Zadig e o Júnior, vizinhos nascidos na Bahia, passarem em casa após as aulas na Estadual, deixarem as malas lá na grama e ficarem a tarde jogando bola comigo até dizerem: ih, estamos atrasados, temos que voltar para casa...

Daquela sala, na TV Philco com zoom (que substituiu uma Philps 26 polegadas),  vi novelas históricas e me transportava, fazendo dali o palco de meus devaneios: O Profeta, Pai Herói, Brilhante, Baila Comigo, A Gata Comeu...

Mais velho, antes de sair daquela casa, aos 30 anos, assisti no videocassete filmes lendários, adentrando na madrugada, sempre sentado no chão, acompanhado de A felicidade não se compra, O homem que sabia demais, Intriga internacional...


Acordava todo dia às 6h50, pela mãe, após tomar um copo de café com leite, ao som de Trabuco e do programa do José Paulo de Andrade, Jornal da Bandeirantes Gente, no aparelho de som da sala. Saíamos às 7h10, sempre apressados, para tentarmos chegar às 7h25 na escola, levados pelo pai, no Fusca verde azeitona, na Variant vermelha ou na Brasília oliva, conforme a época.

Contemplava também a paisagem da janela do meu quarto, que dava para a areazinha (a “arinha”) de serviço. Minha cama ficava entre a da irmã, sobre um carpete avermelhado, e o  armário branco que, quando embutido lá, foi uma revolução de alegria. Tão grande quanto a que senti quando ganhei a bicicleta com marcha, em 1981.

No armário, guardava o telejogo, o projetor e os slides, com histórias como a do Leão Cantor, e o carrinho branco de controle remoto. Do quarto, via o prédio da Bandeira Paulista e as árvores do quintal do Osvaldo irem se desenvolvendo, em conversa com a cidade, entrelaçadas na própria memória que se construía a cada dia. Tinha a impressão de que, daquela vista, meus sonhos alcançavam o mundo todo. E dia, quem sabe, poderiam se realizar.

Não foram raras as vezes em que subi na laje, do telhado da frente, acima da garagem (que depois se tornou um depósito) e ficava contemplando a tarde, sentindo o aconchego de estar em um lugar isolado e ao mesmo tempo seguro. Nem sabia que, no fundo, fomentava o meu futuro de lembranças, no movimento daquelas nuvens.

Meu futuro, daquela casa, se construiu por vivências. Resumidas em imagens: a prateleira de vidro onde ficavam os copos; o bufê onde se guardava doces, bebidas e documentos; a mesinha onde ficava o telefone cinza claro; a porta da cozinha que parecia um chocolate; o fundo da escada onde se guardava partituras; o piano onde a mãe dedilhava acordes; o quadro de leões pontilhados que ela tão bem pintou; os retratos dos avós; a escada com um quadro meio impressionista de um pastor.

A sala foi envelhecendo e, mesmo assim, mantendo a paisagem campestre de um quadro do avô; a imagem de Carlos Gomes em outra tela dele; os amigos do Bialik passando a tarde brincando; meus tios e primos sempre enchendo a casa de alegria nos aniversários e festas; os papeis de parede muitas vezes trocados; o não lembrar das vivências acumuladas; algumas discussões; o pai chegando no fim da tarde com a doçura de seu olhar; a babe assistindo TV de sua poltrona, com seu poncho de lã e seu jeito angelical.

Vejo ainda com alívio a mãe chegando à noite da faculdade; os abraços que se abstraíram pelos hábito dos dias; as tantas moças que lá trabalharam, como a Nivalda, a Do Carmo, a Zefa; o Bidu fugindo e voltando; a busca de refúgio no antigo quartinho atrás da lavanderia; os barulhos de copos da cozinha; as histórias grandiosas inventadas com a irmã; as preocupações que já não existem; a primeira vez que a cadelinha Princess entrou lá, um fox paulistinha preto, ornado com pelos brancos e beges no peito e nas patinhas. Ela chegou em 1982, comprada do Pet (ainda não se chamava assim) do homem da Pedroso, por 900 cruzeiros.

Do quarto, a mãe gostava de jogar, pela tela, o resto da água com gás para o telhado, e eu achava legal porque era um ato ousado e não causava algum tipo de sujeira. Escutava o barulho da água sobre o telhado, como se ouvisse um sinal de liberdade, abençoada pelo prédio iluminado, que testemunhava nossa rotina na rua Galeno Revoredo.

O edifício parecia se erguer em disputa com o pinheiro. Este, companheiro enraizado, crescia um pouco a cada dia e nos acompanhou também, desde criança até o último dia, representando o nosso desejo de atingir o céu das conquistas, como na lenda de João e o Pé de Feijão. E aproveitava para pedir proteção, em nosso nome, para o firmamento. Nunca negada.

Centímetros quadrados que se acumularam em mim, naquela superfície de histórias a se multiplicarem até o infinito e ressurgirem a cada dia, de repente ou de propósito. Nada contém, mais do que aquela casa, um manancial de vivências tão grande em minha história.

O imóvel, agora, está de mudança. Para dentro da nossa alma, formada lá, entrelaçada naquele cenário. A obra grandiosa que se construirá no local, não substituirá a que foi construída para a família. A vida serve para isso. Ela sim é a maior obra. Nos ensina até nas despedidas necessárias. A cada instante, a cada mudança, com ela aprendemos que gratidão, memória, orgulho e amor, afinal, não cabem apenas em um endereço.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Aniversário

Envelhecer é deixar de saber que o tempo passa e começar a sentir que o tempo passa.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

A gestação da Torá

À frente do portão de ferro, revestido de cor prateada, ao lado de uma fachada adornada por uma menorá (candelabro), o menino sentiu um sopro em seu ouvido. Ao redor, o alarido aumentava cada vez mais. Era o primeiro dia de aula, no colégio Bialik.

Chegou lá após ter despertado uma hora antes e, ainda atônito, ser preparado por sua mãe para essa nova tarefa.

Ela penteou seus cabelos lisos e dourados. Vestiu-o com cueca, calção azul escuro, camiseta branca, com a mesma menorá estampada, uma meia branca à altura da canela e um tênis escuro.

Depois de engolir um copo de café com leite, foi conduzido, de carro, pelo caminho que fez pela primeira de tantas vezes que viriam posteriormente.

Ia ouvindo o programa do Trabuco, com Vicente Leporace na Rádio Bandeirantes, ou o eterno jingle da Jovem Pan, às sete horas, "a cidade não desperta, apenas acerta a sua condição..."

Queria e não queria estar ali, ao lado da mãe, mas diante de tantas coisas desconhecidas, diante de tanto alarido, diante daquele portão.

Notou apenas que, em meio à balbúrdia, o sopro insistia em ressoar, como estivesse se dirigindo apenas a ele. Já tinha sentido aquele sopro alguma vez, só não sabia quando...

Então, aos poucos, ele se acostumou. Foi no embalo, entre trancos e barrancos, uma advertência aqui, outra recuperação ali, amizades importantes que o ajudaram a crescer. Tudo passou, virou saudade.

Só foi pensar melhor naquelas vivências, já adulto, após receber uma informação sagrada, dada por seu generoso analista. E encontrou alguma explicação sobre a indecisão naquele dia, diante do portão.

O livro Talmud conta que "um anjo ensina a Torá (livro sagrado judaico) completa a toda criança ainda no ventre materno; e uma luz oculta brilha sobre sua cabeça neste instante, permitindo-lhe ver de um lado a outro do mundo".

É assim. Enquanto a criança, em forma de embrião submerso, se desenvolve no ventre materno, viaja livremente por um universo amplo que lhe é soprado pelo anjo.

Vai boiando no líquido amniótico e fica sabendo da criação da terra, do mar, do sol, da lua, das sementes, das plantas, do gado, dos peixes... E que tudo era bom.

Em forma de recordação, o anjo lhe sopra a viagem de Abraão para Israel, a importância da perseverança e a luta pela saída do Egito.

A placenta é seu universo. É onde o pulsar do coração da mãe lhe passa confiança ritmada. E onde lhe é soprado, pelo tal anjo, que a revelação divina no Monte Sinai ocorreu diante de um povo descrente, enquanto relâmpagos explodiam milagres no manto celeste escurecido.


Já entre a 4ª e a 8ª semana, a revolução de seu desenvolvimento cerebral é alimentada pelas histórias da Cabala e pelas explicações profundas da relação do homem com Deus.

O tempo vai passado e o bebê vai, ele mesmo, se configurando em um milagre. Como um monte de células pode se tornar um concepto, superar conspirações biológicas, e se transformar em mãozinhas, pezinhos, estampando um rosto doce e inocente? A história do anjo, certamente, ajuda muito nesse processo, pelo que diz o Talmud.

Já com o pulmão formado, ele até consegue gargalhar em seu mundo, quando o mesmo sopro (aquele...) lhe contou as peripécias do Rei Davi e as extensões da Torá. Ou quando ficou sabendo dos mandamentos divinos, querendo sair para amar o próximo como a ele mesmo.

Neste momento, ele já sabe de cor - porque seu coração já palpita essas revelações - a maioria dos princípios. Entende que a ética deve prevalecer sobre a estética, como se mentalmente tivesse sobrevoado os rolos de pergaminho escritos e avistasse cada passagem lá do alto de sua precisa imaginação.

Há dias seus circuitos neurais se desenvolveram, tecendo seus neurônios com ideias e imagens resplandecentes: o mar se abrindo para a liberdade; o Kol Nidrei (reza em busca dos perdões pelos pecados humanos) sendo entoado em noite solene, em redutos simplórios de antigos vilarejos.

Nesta etapa ele também fica ciente de que precisará manter inabalável sua identidade diante das adversidades.

Quando ele começa a escutar vozes do exterior, o útero materno se mostra uma muralha a ser transposta. É o momento em que o bebê fica sabendo, pelo anjo, sobre a história de Josué e as trombetas em Jericó. Assim, a cada instante da gestação, ele vai assimilando uma infinidade de informações.

Já conhecedor da peregrinação do deserto, passa a valorizar as colheitas. E assimila a importância do perdão no mundo que está para conhecer. Só falta lhe tirarem de lá. Até já dá seus recados com chutinhos na barriga, avisando sua mãe que precisa sair. E que, obviamente, é apaixonado por futebol.

Mas quando o tiram, vem o inesperado. O pequeno sábio vê lhe escaparem todos os segredos da existência. Assim que nasce, se esquece de tudo que lhe foi contado. O Talmud diz que isso acontece mesmo. Quem sou eu? Onde estou? E vem o berreiro...

Com o garoto, também foi desta forma. Quando ele chegou à frente do portão naquele dia, estava mais calmo, mas ainda não sabia que muita coisa viria pela frente. Sua preocupação era o presente.

Surgiu o ímpeto de voltar para debaixo das cobertas. Não tinha jeito. Precisava reaprender tudo que havia esquecido.

Virou-se para o lado e viu futuros colegas com mochila em ritmo acelerado. Ouviu gritos dos professores chamando cada turma. Olhou para o céu, sentiu o brilho do sol e sorveu o ar matinal da cidade.

O sopro continuava lhe comunicando algo. E o "obrigou", finalmente, a entrar na escola. Logicamente, não foi o fim. É apenas a história de como toda criança, mesmo sem perceber, consegue dar o seu primeiro passo.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Ninguém dorme

A madrugada já estava terminando, mas os objetos continuavam a ser contornos esparsos no escuro: a cama, a cadeira ao lado, a prateleira de miniaturas. No silêncio entrecortado por raras buzinas e brecadas que vinham lá de baixo, as formas sugestivas se assemelhavam a nuvens que tentamos adivinhar o que representam.

Ao ir conferir como o menino estava em seu quarto, o pai percebeu que a criança já acordara. Olhava para a escuridão do teto, tentando espantar o susto com os ruídos que vinham do vizinho: uma moeda no chão ou uma descarga era motivo para ele desconfiar da presença do temido palhaço assassino ou de algum bandido que teria invadido o prédio em sua imaginação.

— E esse barulho papai?

— São os passos de alguém que acordou mais cedo. Vai ver daqui a pouco você, quando for até a perua, se encontre com ele e diga bom dia.

Com uma risada sincera e curta, ele mostrou que a ideia o aliviou. Pela fresta da janela, uma brisa perfumada e fresca inspirava pensamentos longínquos. O pai, então, resolveu desfilar seu manancial de ideias originais.

Enquanto vestia a criança, a fez gargalhar por causa das várias etiquetas da camisa nova do uniforme. Ia falando, com voz engraçada, cada vez que via uma delas.

— Nossa, essa etiqueta aqui, um milhão. Outra...nossa, vale muito essa camisa, um milhão. Mais outra, outro milhão de reais.

Nem parecia que o filho estava acordando cedo. O bom humor do pequeno resplandecia naquela conversa, ainda sob a penumbra da madrugada. Ria do fundo da alma, como diante de um palhaço (não assassino!) fazendo piruetas no picadeiro.

O pai ainda brincou e deixou as etiquetas grudadas no armário, falando que depois ia pegar para conferir se tinha pago aqueles todos milhões por aquela camisa tão valiosa.

Enquanto o menino ia ao banheiro, o pai foi até a janela do próprio quarto. Observou o horizonte ainda negro, com poucas luzes dos prédios acesas. Fazia tempo que não entrava em devaneio tão profundo, embebido pela madrugada.

Sentiu um enorme prazer ao ver a cidade ainda adormecida, pacata, reverenciando um lado humano tão oculto nas cicatrizes diárias que a correria do dia a dia faz no asfalto e nas almas.

Lembrou-se então da ária Nessun Dorma, de Puccini na obra Turandot, e logo chamou o filho, que estava obediente e inebriado com aquela atmosfera misteriosa de início de dia.

— Filho, vem cá. Ouça no meu celular essa ópera, chama Nessun Dorma. Quer dizer Ninguém Durma. Pega um momento como esse, de madrugada, quando um homem, o Calaf, é o único que sabe que será o escolhido pela rainha. A revelação será na manhã seguinte.

Já na sala, incrementada pela vista do terraço, ele colocou a música no YouTube. Num segundo, a voz forte e encantadora, vinda do peito de Richard Tucker, preencheu o local. Depois envolveu todos os ambientes da casa de tal maneira que parecia alcançar o céu.

A música tocou também o menino. Junto com o pai, e em silêncio, foi vendo a manhã surgir colorida como se ela dançasse com aquela melodia. O gran finale era otimista e belo: "Vinceròòo! Vinceeeeeeeeeeeeròòòò....!"

Os barulhos iam aumentando na rua. Davam a impressão de que todos os insones da cidade se levantaram para o batente, em busca de alguma revelação. E que ninguém dormiu justamente devido ao sedutor convite à reflexão que a madrugada e seus fantasmas apresentam.

Apenas o pai teve a possibilidade de ir finalmente atrás de um cochilo, após deixar o filho na porta da perua, voltando para a cama por mais meia hora de sono. Quando saiu, apressado, para ir pegar o metrô, esqueceu das etiquetinhas grudadas no armário.

O filho, ao voltar, no fim do integral, as percebeu lá. E sentiu a luta do pai, que chegaria tarde, naquelas palavras que valorizavam a camiseta, a vida, a preocupação com a família, a insônia de um dia sonhar em ter, senão um milhão, pelos menos o suficiente para pagar o aluguel com tranquilidade.

Conseguiu intuir o motivo de o pai repetir, em tom de gozação, sobre aquele milhão tão engraçado. Intuiu mesmo sem saber muito bem o porquê. São as sábias conclusões de criança: a beleza da vida é que ela não existe sem dias de insônia. E apenas sussurrou baixinho, para si:

— Esse cara é mesmo uma figura...

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Cético

Um autor escrevia tanto sobre amor e morte, de forma cética e superficial, que passava a impressão de que ele não sabia o que era amar e nem amava o que era viver.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Respostas

A pior resposta nem sempre é o não, mas a não-resposta.