Por Eugenio Goussinsky
Desde que havia deixado o
colégio I.L Peretz em 1974, aos cinco anos, eu nunca mais tinha entrado lá até
o ano de 2007. Ou melhor: nunca entrara nessas unidades, já que fui aluno na
época em que a escola ficava na Avenida Brasil, num espaço ajardinado rodeado
por baixas cercas com placas de madeira.
Na minha mente de criança do
Bialik, para onde me mudei, havia uma espécie de muro entre as duas
instituições. Os mensageiros dessa outra realidade, para mim, eram os próprios
alunos, amigos meus da Hebraica. Eles me passavam a impressão relativa aos seus
universos, com olhares e um jeito de ver as coisas talvez de uma maneira mais
prática.
Quantas vezes não juntamos
nossos mundos em jogos na antiga quadra dos fundos do clube, percebendo que,
por trás das "diferenças" escolares, batiam os corações de crianças
ávidas em encontrar seus lugares? Fosse jogando futebol no campeonato, em que
certa vez usamos a mesma camisa listrada do Santos, ou em qualquer outra
atividade que compartilhávamos.
Nos cruzávamos em bar mitzvot,
festas de primos, em ocasiões nas quais eu me aproximava de desvendar o
mistério. Via cada um desses membros de outro colégio em suas intimidades.
Diria que vestidos à paisana.
E no rastro desse enigma,
descobri que a figura de Peretz, acima de tudo, era a de um humanista. Percebi
isso no dia que em que pisei lá novamente. Um humanista, seja o poeta Bialik ou
o escritor Peretz, une mundos. Como ocorreu comigo. O muro sumiu, como um
encanto que permite enxergar exatamente como era o jardim do vizinho.
Adulto, revivi sensações de
meus tempos de escola, ao levar meus filhos, Raul, o mais novo, e Diogo, o mais
velho, de minha esposa, para lá. Enfrentávamos, ao som da Rádio Disney, o
trânsito da Domingos de Morais até chegar ao portão de aço azul dos prédios da
Madre Cabrini.
Os carros enfileirados, um
pressionando o outro, esperavam as crianças com cara de sono se espalharem
pelas calçadas rumo à entrada, preenchendo a rua de uma pressa viva.
Eu via a movimentação e, ao
mesmo tempo, a interligava ao horizonte à frente, com a pracinha da Bíblia
atraindo revoadas de pássaros, enquanto a manhã se espreitava pelas nuvens e
pelos prédios da redondeza.
Depois, eu prosseguia o
trajeto até a Rua Estado de Israel. Deixava o mais novo na entrada enfeitada
por algumas plantas. Só saía assim que ele batia a mão para cumprimentar o
Paulão, em um tranquilizador estalido de boas-vindas.
Muitas vezes eu fazia o
trajeto de táxi com eles. E voltava a pé até o metrô Vila Mariana, pelas ruas
bucólicas da região; o bosque dentro da escola; o jardim da Sena Madureira; as
árvores e as casas geminadas; a banca e armazéns que dão à Capitão Macedo e à
Coronel Lisboa ares interioranos.
Quando o Raul ainda
frequentava o prédio do Vermelhinho, na Educação Infantil, eu o levava de mãos
dadas.Subíamos as escadas, contemplando os trabalhinhos na parede, após
passarmos pelo saguão geralmente enfeitado e pelos dois aquários na lateral que
dava para o pátio. Então o deixava na classe, após cumprimentar a morá e
receber às vezes uma reprimenda: "ele já está grandinho, pode vir
sozinho".
Mas era prazeroso vê-lo subir
sorridente e cativante, como se manteve até o último dia, quando, lá na quadra
do Azulzinho, abraçando-o junto a mim, olhamos os balões soltos pelos pais,
professores e alunos irem se diluindo pelo céu. Até não mais se encontrarem.
Não consigo mais visualizar as
feições do Raulzinho dos primeiros anos da escola. Só me lembro da sensação de
eu também estar voltando no tempo, ao sentir novamente o ambiente escolar
acolhedor, que ajudava a me fortalecer para enfrentar a minha realidade de
adulto.
Até parecia estranho eu ficar
um tempinho sentado lá na entrada. Nunca faltou aquele café quentinho da
garrafa térmica e as bolachas para complementarem o café da manhã. Ficava
alguns minutos sorvendo aquele clima de encanto e espanto, de gestos que as
crianças eternizam pela vida em seus corações, como os que vivenciei em meus
tempos de menino.
Como me esquecer de quando
todos acenamos com uma bandeirinha, para o Emerson Fittipaldi, vindo em um carro
de bombeiros quando chegou ao Brasil, após ser campeão mundial em 1974?
Depois veio o Bialik. Para mim
um foi a continuidade do outro. Uma fusão que no meu íntimo já havia sido
concluída desde que o Diogo subiu aquelas escadas do Azulzinho.
Ele chegou sem conhecer
ninguém. E logo misturou - aos corredores, às classes, às quadras, às rampas em
zigue-zague, às salas de espera, às salas das coordenadoras - todas as mudanças
de seu corpo e de seu rosto.
A mistura foi até a despedida,
na adolescência, e seu 9.8 na recuperação de Geometria, quando comemorou, com
seus mesmos cabelos lisos e castanhos, mas já com sua voz em transição e uma
turma de amigos que cresceram como num passe de mágica.
Vou me lembrar sempre dos
eventos entre pais e filhos no salão lá de cima ou na antiga sinagoga. E das
danças no final, meio desajeitadas, lá na entrada. Da venda de uniformes no
amplo porão, ao lado do almoxarifado e da piscina coberta, onde nascia a engrenagem
da da escola.
Vou me lembrar das feiras de
ciências com um toldo armado no pátio, em que no fundo havia um balcão com
voluntários servindo salgados e outras guloseimas. Nessas ocasiões, era comum a
correria das crianças pelas classes, esbanjando curiosidade em ver como era a
escola fora do dia de aula.
Vou me lembrar da minha
alegria, e do alívio, após cada reunião com as professoras, quando prevaleciam
as boas notícias, cujo lado positivo era enfatizado sem que a realidade fosse
perdida de vista.
Vou me lembrar dos rostos de
cada pai e mãe, muitos dos quais reencontrei após o hiato da infância, já com
seus filhos, dos quais também vou me lembrar.
Vou me lembrar do carinho das
professoras, coordenadoras, diretores, funcionários, cada um ao seu estilo,
sempre com uma dedicação terna e serena.
Vou me lembrar do parquinho,
dos jabutis da horta do pátio, testemunhando em seus ritmos lentos a velocidade
frenética das crianças se desenvolvendo em alarido.
Vou me lembrar do Raul olhando
para trás, antes de entrar na escola para os desafios de um novo dia. E do meu
olhar de incentivo, dizendo "mete a cara, filhão".
Vou me lembrar das músicas que
marcavam nossas idas, da Rihanna, da Sia, da Kate Perry, do Jota Quest e
clássicos dos anos 80.
Vou me lembrar de quando eu
esperava o Raul na saída, do lado de dentro, observando a árvore ao lado do
muro balançar no ritmo do vento e da vida. E cumprimentando seus amiguinhos que
vinham, correndo desde a rampa, me perguntar quanto foi o jogo do Corinthians.
O porteiro, pelo microfone, já começava a chamar um por um.
Vou me lembrar dos balões da
despedida, como pessoas, separarem seus caminhos no alto. Mas com a diferença
que elas, as pessoas, terão para sempre o poder de se reencontrar a qualquer
momento. Sempre que puderem. Sempre que quiserem. Quando se lembrarem.
Vou me lembrar, mesmo que esse
Peretz das minhas descrições tenha acabado ontem. Um outro, certamente, vai
continuar em mim amanhã. Porque desde hoje estará correndo na alma de meus
filhos.
E agora, vou encaixando uma
emoção aqui, outra ali. Gratidão, afeto, saudade e a necessária esperança estão
encontrando gradativamente os seus lugares. Tenho certeza de que, como sempre
fiz em minha vida, vou dar um jeito. Já sei até qual a melhor maneira. Vou me
lembrar.
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