terça-feira, 4 de novembro de 2014

Descoberta

Houve uma época em que ele não olhava o relógio. Amanhecia em um parque de novidades, desfrutava o néctar do presente eterno. Apreciava o som de uma música que vinha de longe, do vizinho, envolvida nas flores e chacoalhando as florestas. O sol polvilhava lá das montanhas. Tingia o celeste de ouro, prometendo voltar a cada dia, inalterado. Imaculado. Brincadeiras no parque, roda roda peão. E ele se esbaldava, mergulhando de cabeça nos férteis e intermináveis campos do amanhã. Até que seus pêlos surgiram, a voz foi mudando. A cada novidade, percebia que este grande jardim estava ligado a uma estação. E esta a um longo, muito longo trem. Foi descobrindo novas e novas coisas, muitas das quais não gostaria de saber.  Por exemplo, que sempre viveu dentro do trem, do qual nunca saíra. E cujo letreiro era Destino. O jardim não passava de um enorme vagão, limitado pelo horizonte e pela abóbada celeste. Jamais o veria de novo, a não ser na lembrança. Sentiu-se adulto, depois rapidamente velho, ao notar pêlos brancos escapando de sua barba. Seu peito, coitado,  já ressoava com certa rouquidão.  A percepção mudara. O infinito era ilusão. Bateu um vento como se revelasse o passado, integrasse as imagens coloridas de outrora ao que ele era agora. Acariciava-o em sua totalidade, menino e homem, um corpo só. Já não tinha certeza em relação ao amanhã. Pensou em uma proposta que precisava fazer na empresa. Lembrou-se do texto que há tempos queria escrever. O hábito o fez virar de lado, buscar imaginar outra coisa, adiar um pouco, deixar para lá. Sentiu que não podia se dar a este luxo. Ouviu então o barulho da porta abrindo. Despressurização. O trem parou um pouco, para que outros desiludidos entrassem. Logo iria seguir em frente. Ele se lembrou do jardim, mas de algo mais. Desta vez olhou para ver em que plataforma estava.