quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Meu

Meu Corinthians tem a cara de um menino de cabelos claros, olhos verde-escuros e magro. Meu Corinthians já chorou quando minha avó morreu, em 1979. Da casa do tio, perdeu as forças e se viu derrotado pelo Palmeiras, por 3 a 1. Esse mesmo Corinthians me fez tirar uma nota 7.9 de Matemática, suficiente para não ficar de recuperação. Para comemorar, à noite, foi ao Pacaembu para empatar com a Francana por 1 a 1. Mais importante do que o resultado, para ele, foram o olhar alegre do meu pai e os parabéns que ouvi por ter passado de ano. Meu Corinthians, entoando seu hino na festa no bufê, comemorou comigo meu bar-mitzvá em 1982. E no mesmo ano, como bom brasileiro, chorou muito na derrota da seleção para a Itália. Chorou inclusive por Sócrates, nosso maior ídolo e camisa 8 do Brasil. Meu Corinthians me viu apaixonado por uma moça em 1990 e, solidário, quase não ligou para o seu primeiro título brasileiro. Anos depois, no entanto, sentiu orgulho nas conquistas de 1998, 1999 e 2000, já se iniciando na profissão de jornalista. Meu Corinthians apareceu na sala de reuniões, enquanto eu levava uma bronca do chefe. Acalmou-me nos momentos difíceis, dizendo que há muita coisa além da vaidade humana, inclusive um simples jogo de futebol. Meu Corinthians obrigou meu pai a se tornar corintiano. Por minha causa. E nem ligou quando viu meu filho se tornar santista. Por causa do meu pai. Meu Corinthians ondulou por toda a minha vida. Presente em muitos momentos. Ausente em outros. Esquecido em alguns. Generoso sempre. Era só chamá-lo que ele sempre se punha à disposição, para me orgulhar ou me consolar, como um bom amigo. Assumiu os erros quando me entristeceu. Deu a volta por cima quando tudo pareceu perdido. O Corinthians é o verdadeiro fiel. Pela paciência de me ensinar a ganhar e a perder. A lembrar e a me esquecer. A nunca desistir, tampouco me acomodar. Em seu caráter paradoxal, democrático, ele conversou comigo em um sonho, após ser campeão mundial no Japão. Com seu traje de mosqueteiro, um rosto maduro e sereno, sussurrou para mim palavras de humildade, no seu momento de glória maior. A madrugada soprava uma brisa refrescante. Estávamos só nós dois, eu e o meu Corinthians, nas arquibancadas do estádio de Yokohama vazio. O jogo acabara naquela noite. “Fora das quatro linhas, me transformo em um exemplo para você, nada mais do que isso”, disse. “As coisas continuam não sendo fáceis, é preciso seguir na luta”, repetiu. Por isso agradeço ao meu Corinthians. Ele me dá tudo o que pode. Inclusive a consciência de saber que não pode resolver minha vida. Mas muitas vezes ajudou a resolvê-la. Meu Corinthians tem uma força divinamente humana. Acho que o meu Corinthians é especial por isso. Porque meu Corinthians é um time de tanta gente. E também de cada um.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Comissão

A Comissão da Verdade brasileira não pega porque verdade sem justiça, neste caso, leva ao desinteresse e acaba se tornando uma meia-verdade.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Chicote

O corintiano gastou uma fortuna para ir ao Japão. Fez um grande esforço, desmarcou compromissos, deixou a família por uns dias para ver seu time de coração lutar pelo título mundial. Postou a chegada de seu grupo ao aeroporto, com entusiasmo e esperança. Estava orgulhoso de sua iniciativa. Um grande amigo seu, no entanto, não viu desta maneira. Comentou o post dizendo que iria secar muuuuuuuitoooo o Corinthians. Era são-paulino. Por isso mesmo, orgulhoso de si, não preferiu apenas desejar um cordial "boa sorte". Sua visão de mundo tricolor o impediu de perceber o tamanho da decepção do “amigo” caso o Corinthians perdesse. Tampouco tudo o que ele investira na empreitada. A rivalidade perdeu o limite. Tornou-se egoísta e cega. Virou uma brincadeira de mau-gosto. Explodiu a generosidade. O pior é que se apresenta como um padrão para parte da sociedade, que a aceita passivamente. Passa por cima dos sentimentos sem nenhum problema. Esmaga identidades na roupagem de piada. Açoita expectativas alheias como quem chicoteia com um sorriso. Ela quer ferir, não importa quem seja. Depois dizem ser esta a graça do futebol.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Vento

Muitas pessoas se acomodam na ideia de que desejam boas notícias aos outros. Mas nunca as trazem.

Ventania

Muitas pessoas se acomodam à espera de boas notícias vindas dos outros. Mas nunca as procuram.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Estranho

Que estranho existe em meus sonhos, escondido, pensando em fantasmas que já morreram, aprisionado em um passado imaginário? Acorda, no meio das noites, sufocado por um soldado sanguinário de Roma. Ou por um inquisidor medieval. Ele se imagina estranho, gauche como diria Drummond. Necessitado que o conduzam, tal qual um cadeirante definhando na vergonha. Ele acredita ser o avesso do avesso de Caetano. O inverso do sucesso de Armentano. O estranho afundou sua imagem no espelho distorcido do Monte Serrat. Pensa que é estranho a si mesmo. Não se permite ser o sorriso cativante da modelo. Nem o drible fantástico do craque. Tampouco o diploma ostentado no escritório do grande médico. Ele até gostaria de ser o prêmio na prateleira do escritor renomado. E o dinheiro a dormir nos cofres do banqueiro. Aceitaria, de bom grado, ser a esperança que pulsa no coração do jovem. Mas não consegue. Pensa que é o último dos últimos porque nunca se aceitou. O estranho, por medo, esconde seu potencial. Ele adia, desvia, me expia, me irrita e evita o encontro comigo. Escapa pelo vale infinito de suas divagações. Mente para si, apenas ostentando seu conhecimento do mundo exterior. E para mim, quando cobre com um manto seu universo interior. Vem sempre com respostas evasivas. Óbvias até. Filhas do psicologês, como “preciso ter confiança em mim”. Mas, na real, desemboca na velha desculpa, no momento de se expor de corpo e alma. “Hoje eu não posso ir até você”, repete, como um fantasma da ópera traumatizado. “Não tenho tempo”, dramatiza, esquecendo-se que ele é o próprio tempo perdido. Igual à fera enjaulada em seu castelo por séculos. E eu insisto, há milênios, no papel de um heroi cavalgando em busca de seu ideal. “Estranho, venha a mim, quero conhecê-lo”, clamo. As palavras ecoam por montanhas, cidades, batem em muros, cavam túneis, navegam por mares, retornando sempre opacas e solitárias. Roçam meu peito como frágeis pedras de gelo e desmaiam derretidas no chão. Não desistirei desta aventura, porém. Até um dia eu deixar de ser um estranho para ele. E poder enfim, me ver por inteiro.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Empolgação

Aeroporto de Bogotá. Olhei pelo vidro a periferia da cidade. Uma para os que estão em trânsito. Outra para os que estão no trânsito. Para mim, era sensual como o rebolado de Shakira. Tudo me fascinava. O carpete avermelhado. As poltronas da espera. As lojinhas dos corredores. CDs de Juanes, artesanatos, livros de Garcia Márquez. Exemplares de El Espectador. O iogurte da Alpina. A seiva do país no saguão, projetando a alma das ruas. Acorde de cúmbia que enchia minha mente. Shakira, você diz que a cintura não mente. Ela aponta o rosto da mãe África no coração da América. Mistura étnica e de cores que convidam antropólogos. Peles morenas. Cabelos negros. Sorrisos brancos. As luzes se acenderam com a noite. Admirei a estampa da Avianca em minha mala. Sentia  o país em minha bagagem. Ri. Um garoto com o cabelo do Valderrama corria entre as cadeiras. Meus problemas flutuavam distantes. O caos do Brasil estava bem pra lá do Equador.  Eu transcendia em outro país. Guardas com quepes e uniformes pretos circulavam naturalmente. Com eles, os cães cheirando sacolas, pacotes, pessoas. Bebi um café e...tudo mudou. Da água para o vinho. Caiu um pouco na minha roupa. O cão, então, latiu em minha direção. O guarda me levou para uma saleta. Despi-me, fui revistado. Abri a bagagem. Só queria uma coisa: falar em português. Mas me exaltava em portunhol. Precisava reencontrar minhas raízes. Até há pouco, pensava que elas estavam na Colômbia. Mas não existe jogador bom com cabelo de urso. Pura empolgação de viajante. Queria voltar logo para casa. Rever meu filhinho. Para quem, aliás, eu sempre disse que café é uma droga. Shakira...suas cinturas mentiram para mim.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Banheira

Ninguém daria nada pela pança e a cara redonda. Ar de surfista aposentado. Cabelos loiros bem curtinhos. O apelido? Vanusa.  Mas ele nem ligava. Fingia ficar bravo para depois soltar uma brincadeira. A verdade era que o playboyzinho não jogava nada. Vivia no parque, com a camisa na mão, de bermuda e tênis sem meia. Conversava sem diferenciar grupinhos de garçons, pedreiros ou engenheiros. Às vezes até fumava com os caras lá atrás das árvores. E quando saía já se enturmava no jogo. Campo de terra batida. Fincava-se lá no canto, tipo banheira, pedindo bola. E o pior é que ela vinha. Ele chutava de canela. Cruzava torto.  Acertava a orelha da menina, ela pegava um efeito estranho e saía.  Ele, então, olhava para o outro lado. Fazia cara de paisagem. Incrível era participar de todo jogo. Até a bola, tão maltratada, parecia gostar dele. O cara vencia a grossura apenas com seu ritmo de maresia, na base do papo amigo. Seus xingamentos eram bravatas, levantavam o pessoal, que continuava a passar a bola. “Pô, vai se....” gritava, todo prosa, quando o passe vinha errado.  Jeito de moleque em corpo de cinquentão.  Não se envergonhava em dar de dedinho, de rosca ao contrário. Furava, escorregava.  Continuava acionado. E exalava seriedade antes do encontro desastrado. Quando marcava gol, a festa e a gozação eram gerais, tamanha a raridade do feito. Mas insistia. Resistia. Acreditava e se divertia. Quem jogava bem eram os outros. O Negão, cheio de domínio de bola. O Batuta e o seu drible mágico. O Alê, esbanjando visão de campo. Quase se profissionalizaram. O time era supimpa. Mas o centro da pelada era ele. Ele se garantia. Sempre se encaixava, cativando e integrando o espírito da brincadeira àquelas tardes sem fim. Estando ou não empregado. Feliz ou triste no amor. Ele não tinha toques mágicos. Faltava-lhe faro de gol. Porém lhe sobrava a espontaneidade do futebol, que fazia daquele perna-de-pau o jogador preferido do parque.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Ringue

Não dá para fugir da responsabilidade de viver. Estamos presos em um ringue onde, em vez de violência, a arma para se boxear é a inteligência. A briga só termina no último assalto, para que haja a congratulação e o abraço no adversário, a realidade. Joe Louis, vindo das camadas mais pobres norte-americanas, se tornou um peso-pesado lendário, pois aprendeu apanhando da vida.  Dizia, sobre quem tentasse fugir dele em um combate. “Ele corre, mas não se esconde”.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Superpoderosas

Cada mensagem eletrônica da diretora parecia uma bomba. Ela era apressada, autoritária, definitiva. As frases curtas que desferia, muitas vezes monossilábicas, eram intencionalmente feitas para parecerem controlar o destino das galáxias. No caso, os alvos eram pessoas. Quando a resposta era “estou sem agenda neste fim de ano”, pode esquecer. Às vezes, os mísseis seguiam a rota de mensagens como “estou fora” ou “fale com minha secretária”. Tudo curto e grosso, sem assinatura. Quando a resposta era um “ok”, ele se sentia um diplomata vitorioso em sua missão de paz. Ele, com seus e-mails educados e explicativos, não conseguia se adaptar a este esquema impessoal. Até tentava ser objetivo, mas, quando iniciava com “oi fulana”, se via impelido a incluir em seguida um “tudo bem?” Depois de muito pensar, sem pressa, diga-se de passagem, chegou a uma conclusão. Não é o mundo moderno, nem os compromissos, nem a pressão. É algum medo. É a necessidade permanente de auto-afirmação submetida a uma espada de Dâmocles, que ameaça cair sobre quem ocupa o trono. Poderia também ser algo químico. E neste caso, a modernidade até ajudaria. A mente das superpoderosas pode ser estudada de maneira esclarecedora. Resolveu, então, sugerir a um cientista dar início a uma pesquisa para saber se a luta pela igualdade aumentou o nível de testosterona no público feminino. Mas, para desgosto delas, esta seria uma longa história.

Tentativa

O mundo real tem porões. Como se fosse um corpo ligado por veias e artérias. Nestes canais que unem pontos, corre a seiva onírica e psicanalítica da vida. Ela se esconde, mas tem um infinito potencial revelador. Ele domina cada gota de sangue, suor, bile, saliva, urina ou qualquer líquido oculto no interior de nossas aparências. Invejo aqueles que passam os dias fugindo deste universo insondável, pensando que conseguem. Deve ser difícil atravessar uma existência feita por frases de efeito que enganam sentimentos. De silêncios enigmáticos disfarçados de sabedoria. De meias palavras. De sorrisos pela metade. De olhares hirsutos e feições melífluas. E de ser reconhecido por tudo isso, fazer até sucesso, sem, no entanto, se reconhecer. Obrigar o outro a se desdobrar para descobrir verdades nos mínimos detalhes, na posição das mãos, na angulação das sobrancelhas, no brilho dos olhos. Ou então deixá-lo extenuado em sua procura, para que se conforme com a padronização do "não me pergunte nada mais além disso". Pergunte-me, você, se falo de alguém especificamente. Direi que sim, mas me sinto no direito de não dizer quem. Afinal, eles são um e muitos. Vou usar do mesmo artifício que embala a crítica deste texto. Quero experimentar não me expor. Quero me preservar por medo e por interesse. Quero tentar ser igual a eles. Pela primeira vez.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Irmãos

Os mísseis desceram certeiros no prédio antigo e cinzento. Até hoje me lembro do som e da cena. Primeiro um assobio fino, riscas de fumaça no ar. A terra tremeu, numa dança macabra com o barulho ensurdecedor que assolou o quarteirão. Instantes de silêncio. Poeira e pedaços de alvenaria para todos os lados. Cheiro seco de ruína. Rostos encobertos pelo cal. Em seguida, gritos de horror. Homens e mulheres com trajes rasgados, descabelados, com olhares atônitos e avermelhados de medo. Saí correndo em direção ao horizonte. Nada encontrei. A angústia me impediu de seguir em frente. Meu braço estava esfolado. Meus joelhos, doloridos. O impacto ainda fazia meu corpo tremer. Vi, então, um boneco de pano chamuscado pelas cinzas, tombado entre os destroços. Tinha cabelos de lã, ruivos e despenteados. Os olhos estavam arregalados e mortos. Ao seu lado, uma criança de cabelos castanhos curtos, camiseta do Mickey e bermuda jeans. Como se fosse o irmão mais velho. Suas sandálias estavam a alguns metros. A pele branca se destacava no meio do barro. Ele não se movia, jazia em uma poça de sangue. Não precisei adivinhar que gostava de jogar bola. Nem que sua mãe adoraria que ele estudasse na melhor escola da região. E que vislumbrava, entre aquela cortina de miséria, o dia em que ele iria sair de casa, a sua cerimônia de formatura, as vezes em que iria assisti-lo jogar. Ansiava por vê-lo com 1m90, cobiçado pelas garotas, comemorando títulos, recebendo medalhas. Mas diziam que ele era filho de terrorista. Assim, não houve muito tempo para divagações.  Apenas seis anos. Até ele ser carregado por uma multidão ensandecida de palestinos, para ser sepultado como mártir, junto com todos os sonhos fragmentados de sua mãe. E os que ele não pôde sonhar. Só faltou algo: o seu boneco de pano, esquecido entre os escombros. Ele permaneceu lá, no meio da sujeira. A mesma superfície chamuscada. Os mesmos cabelos ruivos. Os olhos continuavam arregalados.  A diferença é que naquele momento eles pareciam chorar.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Plumagem

Mano Menezes confiou em Pato. Botou Ganso. Viu Júlio César levar frango. Sua seleção apenas alçou voos de galinha. Não abriu as asas da imaginação da torcida. A imprensa piou. O presidente achou que devia botar ordem no poleiro. Quis cantar de galo. Meteu o bico. Surpreso, o treinador nem soube qual ave de rapina o fisgou. Foi assado. Saiu chocado. De dar pena. Mas restou algo aos que não são urubus. Torcer por novos ovos de ouro para a pombosa, ops, pomposa seleção brasileira de futebol. Também conhecida como Canarinho.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Adolescência

Gosto de Justin Bieber. Passou rápido de criança a adolescente.  Não tem vergonha de demonstrar inseguranças próprias da idade. Ele não se gaba, nem exala a revolta agressiva dos jovens que se desesperam diante de seus conflitos. Até a voz em transformação revela muito sobre esta fase da vida. Um dia eu disse para meu pai. “A adolescência é uma fase triste”. Ele concordou, mesmo não querendo ver meu sofrimento. Ele sabia que, ter consciência disso, era um remédio amargo, mas que seria transformado em algo produtivo no futuro. Bieber, por exemplo, o transformou em canto. O timbre ainda indefinido faz mais verdadeiras as suas incertezas. E com elas, o seu sucesso.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Afetuoso

Desde criança eu achava aquele tio misterioso. Era baixinho, corpo atarracado, cara volumosa, olhos grandes e negros, sotaque semelhante ao árabe, falando com as vogais abertas e em tom espalhafatoso. Andava sempre perfumado, com costeletas, camisa social aberta e sapato bico fino. O filho o idolatrava. Nem ligava para sua fama de mulherengo. Eu  só ouvia os elogios que saíam seguros e firmes na voz daquele menino, meu primo. “Não sei o que meu pai faz, ele não me conta. Outro dia vi ele desembrulhando uma arma que tirou do armário, mas ele logo a escondeu quando percebeu que eu estava lá”. Só fui uma vez à sua casa, depois que se divorciou de minha tia. E não vi nada de estranho. Era um apartamento simples, com  móveis estofados marrons, pisos de cerâmicas ornados de tapetes, um corredorzinho e um quarto. Nenhum quadro revelador, nem cofre, nem mafiosos fumando pelos cantos. De nossas poucas conversas, lembro apenas dele me dizer que não gostava de futebol porque não via sentido em onze homens correrem atrás de uma bola. Parecia viver seu mundo com intensidade. Tinha certa razão, porque, enquanto os trouxas corriam, a vida rolava, desenfreada. E ele a seguia, viajando aqui e ali, saindo por uns tempos, levando na sua bagagem os seus mistérios e a imaginação do filho. “Acho que ele é traficante de armas”, me revelou um dia o menino, um tanto orgulhoso. Sempre que me via, o tio declarava que me amava, deixando-me um pouco constrangido com o calor afetuoso e molhado de seu beijo em minha buchecha. Soube outro dia que ele morreu. Estava mesmo sumido. E morreu sem querer que ninguém soubesse do fato. Nem de que ficarara acamado. Foi o filho quem cuidou dele. Senti por nunca lhe ter perguntado quem ele era, o que queria, o que sentia. Só sabemos acusar os outros de não fazerem isso com a gente. Seu beijo afetuoso parecia dizer que ele não gostava de fugir. Era uma necessidade, entre tantas pessoas passageiras. Mesmo sem conhecer as respostas, acredito que desvendei  os seus mistérios,  por pura intuição. Ele até gostaria de falar de si para quem realmente quisesse ouvi-lo. Estou convicto de que ele não era traficante. E não era mesmo. Um dia descobri que aquela arma que ele desembrulhou e escondeu de meu primo era, na verdade, uma arma de brinquedo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Praiana

A cidade de Santos tem um ar emblemático. Nela se mesclam passado e presente, pobreza e riqueza, cultura e frivolidade. Cidade mágica porque aglutina regionalismos: os caiçaras falam tu, como no Rio Grande do Sul. Nas ruas, o aspecto colonial se mistura a algumas construções novas. Quinta-feira, três da tarde. Nos jardins do calçadão da praia, um menino de chinelo conversa com um adulto sem camisa. Um pai conduz o filho até a areia e depois compra uma cerveja na barraca. Um bêbado tropeça no lixo ao lado da escada.  O vento sopra o cheiro da maresia. Enquanto isso, os navios se espreguiçam no horizonte. E as ilhas acenam tentando vencer a distância da costa, do homem, do mistério daquelas águas escuras. Naturalmente escuras, como os olhos castanhos de uma sereia decadente. Santos é bonita em sua integração do novo e do velho. Por sua neurastenia praiana. Por seus mendigos dançando com a garrafa à beira-mar. Pelas moças do interior com biquini que as revelam. Pela melancolia que vira alegria à espera de algo, sempre que a manhã rompe nos morros. Ou quando se acende o colar de prédios da orla. Santos trabalha para aparar arestas. Transforma pesadelos escuros do cais em sonhos alegóricos dos cruzeiros. Mistura de céu, mar e gente. De urubus e de colibris. Do futebol moleque que afasta a tristeza. De história e de tecnologia. Do cheiro de peixe e do aroma de jasmim. De carros modernos que cruzam trilhos de trem. Cidade simples e complicada. Grande e pequena. Onde a mata vence a fumaça. Lugar que revela o paradoxo humano. Símbolo da alma do Brasil. A palavra Santos tem a ver com o sagrado, são. Mas a loucura lateja na cidade mais carioca de São Paulo. Ela mexe comigo, como uma prostituta idosa e cheia de charme. Nas férias escolares, em seu seio me isolava, assustado. Em prantos. Na sua inocência pervertida, plantei a semente de minha maturidade. E hoje posso dizer que amo os seus truques, fundamentais para nos mantermos vivos, a cada pôr-do-sol no Boqueirão.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Fuga

Não se assuste, por favor. Vou dizer algo que me fará parecer um louco diante de você, moça ou moço apegado aos temas corriqueiros. Não é minha intenção espantá-lo, mas sei que isso pode e deve ocorrer. Pelo menos durante sua disparada, tente refletir enquanto seus passos rápidos ou trôpegos tentarem se afastar junto com sua mente. Foi a madrugada, a mesma do texto abaixo, que me contou em mais um dos momentos em que bailei com ela, adormecido em minha insônia. Ela me sussurrou ao pé do ouvido, com seu perfume encantador, algo que me inebriou, como o som de uma música lenta e romântica. Seu corpo moldado, roçando em mim com seu vestido cor de noite me seduziu. Quase desmaiei de fascínio, quando ouvi ela me dizer na pista de sonhos que dividimos, baixinho, uma frase que o assustará. Repito o que ouvi: “o desenvolvimento do Brasil é feito de testosterona e não de oxitocina”. Já vi que fugiu, por isso falo mais alto, grito, enquanto você ultrapassa casas, muros, atravessa ruas e vira esquinas asfaltadas, tropeça em árvores na calçada até se transformar apenas em sons de passos cada vez mais distantes na noite. Já não dá para gritar “não vá embora!” Ainda insisto em fazer isso com a madrugada, a única que me ouve e me cativa. Nunca dá certo, ela sempre se vai, trocada pela luz da manhã. Mas aprendi a levá-la comigo durante o dia, e isso é um consolo importante. A você, já não peço que fique. Ou melhor, clamo apenas para que não se assuste e pense neste negócio de testosterona e oxitocina. Não precisa ser culto ou ter uma inteligência acima da média para descobrir o que isto significa. Basta apenas se interessar por aquilo que digo. E, agora, grito.

Insônia

Gosto da madrugada, mas desta vez ela me assustou. Acordei atônito e vi em seu semblante um horizonte de prédios silenciosos. Ar sanguíneo nas profundezas acinzentadas. Não ouvi sua voz, apenas murmúrios esparsos que atiçaram meu medo. E minha imaginação voltava ao dia anterior: dificuldades diante das pessoas, notícias ruins, ameaças. O psicoterapeuta Wilfred Bion já dizia que a solução do relacionamento entre as pessoas é “tornar proveitoso um mau negócio”. Eu observava pela janela do terraço. A madrugada, mesmo muda, parecia me sussurrar algumas palavras e me enviar alguns olhares. “Mau negócio, mau negócio...”, ouvia de suas entranhas que se misturavam ao perfume de fora. Na manhã anterior, vi a jornalista da TV, com ar solene, apresentar cenas de um homem matando o outro. Isso no horário em que antes se passava a TV Globinho. Hipocrisia, nada de violência. Dinheiro, audiência, falta de formação e informação. Bion bem poderia dizer, entre suas estantes de livros e atrás de um paciente angustiado no divã: “a cultura da violência aumenta a violência”. Mau negócio esses tais olhares violentos alimentados por esta cultura, ou falta de. Virei de lado, por entre as cinzas da insônia que queimava. Cheguei a suar de calor. Cara apresentadora,  pensei, não faça esse ar de seriedade para mostrar essas cenas. Elas deveriam acariciar sua face maquiada como meninas zombando da professora. Elas existem em muito menor grau, mas você tenta convencer-nos do contrário. Eu me prejudico, porque as pessoas se influenciam e se personificam em maus negócios. A cultura da violência alimenta e dissemina a violência, concluí, desta vez sendo eu mesmo, e não me transportando ao ego de Bion. Aliás, professor, sei que não vou dormir antes que surja a claridade do sol por trás da massa concreta e adormecida. Ouvirei o primeiro canto dos pássaros, plantados nas árvores e sobrevoando o céu da manhã, como se fossem a voz do terror de uma noite sem dormir. Portanto, peço ao senhor, antes que faça um mau negócio, que não tente interpretar meu sonho. Eu mesmo tento entendê-lo à minha maneira. Ainda mais porque, afinal, eu estou acordado.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Repetições

Mandei algumas perguntas a Amós Oz  por e-mail. Numa delas, citei a frase de Nelson Rodrigues, “eu não existiria sem as minhas repetições”. Perguntei ao escritor israelense se ele existiria sem as suas repetições. Esperei, esperei por alguma resposta. Enquanto isso, me lembrava de passagens de seus livros. Em De amor e trevas, ele conta a história de seu pai, um erudito cheio de ilusões, mas que nunca conseguiu a cátedra de titular da Universidade Hebraica de Jerusalém. Desde menino, Oz vivenciou esta busca frenética, jamais alcançada, como parte também de sua história. O drama de seu pai o tocou e o intrigou.“Ninguém ligou para as setenta e sete sabedorias de meu pai”, revelou na obra, com um misto de realismo e compaixão. O próprio escritor, porém, fez algo parecido. Nunca me respondeu. Nem deu bola para as “setenta e sete sabedorias” das minhas perguntas. Foi sua forma de me dizer que ele também não existiria sem as suas repetições.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Escuro

Eu me acho o maioral. Eu me acho. Eu me acho e não me encontro.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Bocas

O menininho de três anos resiste à tentativa da tia de lhe dar um pedaço de carne. Ela aproxima o garfo e ele, sentado próximo da mesa, reage. “Não vai entrar porque isto é o Boca”, em referência ao time argentino. “O Boca não faz gol”. A tia, então, troca a carne por um pedaço de bolo de morango. Nova tentativa, desta vez plenamente aceita. “O garfo não era o Boca?”, pergunta. “Era, mas foi gol contra”, responde a criança.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Velhos

A pele enrugada, os cabelos brancos e o corpo desgastado pelo tempo não escondem o brilho do olhar, que continua o mesmo. A não ser que tenha se tornado mais opaco pela falta de atenção. Poucos ouvem o que os idosos têm a dizer. Eles não estão na moda. Seus anseios, seus pensamentos, suas recordações não são pautas tão interessantes. Até quando fazem sucesso são motivos de desconfiança, ou de gozação. Muitas pessoas temem o esquecimento que por vezes envolve uma memória envelhecida. Como se isto simbolizasse o mergulho em uma caverna escura que um dia todos habitarão. Mas velhice não é escuridão. No filme "E se vivêssemos todos juntos?", a busca de um grupo de velhos por acolhimento é o tema central. Eles conseguem se inserir de uma maneira aberta e criativa em um mundo no qual um cuida do outro, ressaltando o significado de amizade. A trama mostra que até mesmo o termo velho não pode ser entendido apenas por seu significado pejorativo. Velho tem a ver com dignidade, com vivência, com sabedoria, ainda que a mente não se lembre de mais nada de concreto. Escutar alguém velho, angustiado, é o primeiro passo para ajudá-lo. O coração dele se encherá de alegria. A gratidão não precisará vir por palavras, para atender apenas rompantes vaidosos da juventude. A velhice dos outros é uma grande chance para o ser humano aprender sobre si mesmo, no presente e no futuro. E entender, finalmente, que aquele que ama não faz favor.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Quixotescos

O mundo anda cada vez mais quixotesco. Move-se moinhos de vento para a defesa das causas próprias. Culpa-se o outro por tudo: pelo próprio fracasso, pela tristeza que não vai embora, pelas dúvidas, pela falta de perspectivas. Isso, no fundo, é desespero. Não fosse pelo desespero as pessoas não feririam a ética, não chutariam a moral, não deturpariam as leis em busca de justificativas. Sem dúvida elas prefeririam ter coragem de encarar de frente a realidade, de assumir a honestidade, de caminhar com a verdade. Rousseau já dizia que o homem é um bom selvagem. Mas o Palmeiras, pobre Palmeiras, tenta se convencer, a si e aos outros, de que tem o direito de fazer gol com a mão. Não vai conseguir, para o seu próprio bem.

Interações

Muita gente vai a um centro político, religioso, comunitário ou social e tenta demonstrar para os outros a adoração que sente pelo líder. O ambiente se torna competitivo e pesado. Idolatria tem a ver com fanatismo. As raízes são as mesmas. As crenças e convicções vêm de fora para dentro. Fé, religiosidade e admiração genuína têm outras origens. São sentimentos que interagem com o ambiente, o fazem acolhedor, transitam tanto de dentro para fora quanto de fora para dentro das pessoas. Neste momento, elas ficam próximas da divindade.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Adormecidos

Calor no calçadão. Dia de campanha, militantes de bandeira azul próximos aos de bandeira branca. Andam, entregando panfletos, conversando em grupos. Então um de branco discute com um de azul. Outros chegam, confusão iminente. Gritos e ameaças de briga. “Ninguém rela a mão em mim não”, berra um. Outro reage: “Mano, fica na tua”. Não percebem que um homem dorme embaixo de um banco, no centro da via pública. Tem uma ferida no olho, barbas por fazer, camisa amarrotada e calça apertada. De tão perto, quase pisam nele. E a gritaria não para. Estão em campanha política. Mas ninguém pensa em levar o homem para cuidar da ferida. Querem é ganhar disputas, na urna, no calçadão. Eleição para eles é como um jogo. De interesses. De sobrevivência. Querem emprego, querem comer para não se transformar naquele pedaço de carne adormecido. Um coloca uma placa de seu candidato bem ao lado do moço. Como se ele fosse um poste tombado. A gritaria vai se dispersando junto com o entardecer. O mendigo já nem liga mais para isso. Sabe que nem em campanha olham para ele.Vira-se de lado, com a cabeça sobre um punhado de jornal. Os barulhos são apenas esparsos. Uma brecada, uma gargalhada vinda de um bar distante. O ritmo batido do salto de uma prostituta maquiada. Sua companhia agora são as luzes da cidade e um ou outro cachorro que vagueia pelos becos. O mendigo se sente aliviado. Este é o seu verdadeiro mundo. Agora enfim, no silêncio e na solidão, ele pode dormir tranquilo.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Balas

Dias antes do casamento, o noivo recebeu uma saraivada de balas. Sentiu no corpo o desconforto agradável de ser atacado por convidados e pessoas presentes à sinagoga para acompanhar a cerimônia da leitura da Torá. O rabino, com um sorriso maroto, mirou o seu rosto e acertou uma bala bem na ponta do queixo. Até doeu, mas o noivo logo sorriu. Desembrulhou a bala e a chupou, sentindo o sabor de morango se espalhar pela boca. Entendeu a mensagem.  Os que jogam atuam como os invejosos que tentam transformar os maus sentimentos em algo construtivo. Fazem o papel da realidade, transfigurada na bala, pura demonstração de que a vida é, ao mesmo tempo, dura e doce.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Palavra

Do teu corpo nasce a palavra. Ela reverbera em minha alma de várias maneiras. Uma palavra, mil sentidos. A palavra surge como um eco silencioso em uma cadeia de montanhas. A palavra é livre. Multiplica significados, sua identidade levanta vôos, de águia ou de colibri, se expande em um universo de dualidades, paradoxos, reflexões e sutilezas. Uma mesma palavra desperta lágrimas, provoca sorrisos, sugere, contempla, acaricia e fere. Depende de quem a ouve. Ou da intenção com que foi dita. O sussurro de cada uma delas é multiforme. Se dissemina como a refração da luz na água. Constrói um templo com peças de lego. Cada detalhe revela ou oculta um discurso. A palavra pode ser o fim do começo ou o começo do fim. Mas, no fundo, ela nunca termina.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Relação

No livro Razão e Sensibilidade, Jane Austen revelou como o pensamento tem toda a relação com o sentimento. A tristeza vem quando um tenta enganar o outro e, no fundo, nunca consegue.

Combinações

Deitei na grama do parque, me espalhei no tapete verde-musgo. Mistura de verde e marrom. Ao contemplar as alturas, vi o entardecer mesclar o vermelho do sol, o azul celeste e o branco das nuvens. Surgiu daí um lilás que desmaiava com o vento. Um menino no skate vai pular sobre uma barra de ferro. No momento do salto, desiste. Vi em seu olhar a sanidade, mistura de coragem e medo. Assim como a paixão que se mistura com o tempo vai se transformando em carinho. E a crítica, sem amor, vira crueldade. A ponto de urrar de raiva e estragar tudo, podemos utilizar uma pitada de vergonha para transformar a fúria em prudência. Esta fórmula, vista de outra maneira, pode ainda significar submissão. A tempestade desaba acinzentada. Para que a primavera seja rosada. O rubro estampa um rosto tímido. E a brancura revela quem se assustou. A essência humana vem da terra ocre. Emana do firmamento gris. Emerge do sêmen cor de areia. Liberdade que vive aprisionada pela mistura das cores e das emoções. Pelas tonalidades de cada instante. A regulagem de um sentimento gera outro sentimento. Não há vida sem a beleza e a tortura da combinação. Nada temos a oferecer além da química dos afetos e a matemática dos sentimentos. Na ausência de cor reina o luto.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Ciclos

A agente de aeroporto atende o cliente. Ela tem olhar sanguíneo e cara de raiva. Costuma responder mal, retrucar, não informar. Uma coisa nefasta é o autoritarismo de tempos atrás. Outra, ou no fim das contas a mesma, é a perda do respeito nos tempos atuais. Tornou-se hábito destratar o cliente. Jogador derruba técnico sem parcimônia. Aluno desanca professor. Professor ironiza os pais. Instituições perdem a força de referência. O marketing acena com mil possibilidades em um país que não pode ter ilusão. A violência busca alimentos na miséria e na desigualdade. Um homem, no meio da multidão, grita por serenidade. Ninguém o escuta. Todos andam ensimesmados, turbinados por seus i-pods, com passos apressados, numa marcha febril e sem destino, que os impede de olhar para os lados. Ele tenta respirar fundo. Pensa. “Não basta contermos a nossa raiva. É preciso também saber conter a raiva dos outros e não se inflamar”. Pega a mala e chama um taxi. Coitado, vai para o aeroporto, ser atendido pela agente.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Vazio

Escurece na praia. As ondas se tornam riscas brancas em movimento. O cheiro do mar se intensifica. Os navios no horizonte se transformam em pirilampos. A areia esfria, ganha o frescor da noite. A luz das estrelas e o brilho da lua se tornam referências. Emanam. Misturam-se à maresia e ao marulhar. O cenário aguarda o dia que virá, ensolarado, com o alarido das crianças e os guarda-sóis coloridos. E o sorveteiro, e o homem da queijadinha gritando um slogan para cativar os clientes. Como nos meus tempos de criança em Santos, com meus pais e meu tio. E tem ainda o barulho das raquetes batendo bola no frescobol. Estou na cidade, distante, imaginando as cenas. Lá estão minha esposa e meus filhos. Entro no apartamento vazio. Sinto-me só, envolvido no silêncio. Então escrevo este texto, sem nenhuma inspiração.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Escribas

Uns escrevem para demonstrar inteligência. Outros para desferir amargura. Existem os que escrevem com a presunção de ensinar. E os que buscam contar uma história para exibir suas qualidades descritivas e imaginativas. Textos agressivos e intolerantes nascem dos que precisam destilar desabafos venenosos. São poucos os que escrevem apenas em busca de uma verdade ou simplesmente para revelar a própria alma. Mas por mais que os escribas se iludam, ninguém é Deus. O único que consegue escrever certo, por linhas tortas.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Mudança

Lá, no portão, ele conheceu um menino de cinco anos e o ensinou a dar elástico logo depois, no quintal. Cercado de árvores do terreno atrás, jogava bola, ele contra o menino e o tio, que não venciam nunca. Lá ele teve seu filho, jogou botão na sala, ouvindo ele dizer "vale a três", assistiu TV com o pequeno no colo, acompanhando todos os jogos, a Eurocopa, as vitórias do Santos, os gols do Neymar e a trajetória dos clubes brasileiros. Fazia o garoto dormir no quarto, ouvindo músicas juntos ou contando histórias. Lá ele recebeu seus familiares, sua tia querida, seu amigo que levava as crianças ao Mac, sua mãe, sempre atenciosa, em almoços e jantares. Lá ele se divertiu, brigou e se reconciliou com sua esposa e consigo mesmo, sob o olhar das estrelas do bairro arborizado. Lá ele viu a moça que cuidava da casa acompanhar tudo com carinho e dedicação. Foi assim que ele amou esta casa. E percebeu que o amor por uma casa aumenta ainda mais no momento da mudança. Simplesmente porque, além dos móveis, dos ambientes e das recordações, quem estava com ele lá dentro vem junto.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Lembranças

Eram saídas tão agradáveis que o irmão mais velho, de 10 anos, não queria que o mais novo, de três, se esquecesse. Iam semanalmente ao McDonalds, com o tio. Conversavam, divertiam-se, comiam de tudo. Um dia, o mais velho comentou para o menor, mastigando um Big Mac. “Sabia que quando você tiver 10 anos você não vai se lembrar que ia ao McDonalds comigo e o tio às quartas-feiras?” “Vou, claro”, respondeu o menor. “Não, porque não me lembro de quase nada de quando eu tinha três anos, então você vai esquecer”. Então o pequeno, com olhos volumosos e um sorriso largo olhou para o tio. “Claro que vou lembrar. Imagina se vou esquecer”. O tio concordou com o menor de brincadeira, achando que o maior poderia ter razão. De qualquer maneira, o papai intrometido preferiu contar tudo isso, para eternizar a história. E tirar qualquer preocupação do menino maior. Seria uma forma de recado. Do tipo: fique tranquilo. Seu irmãozinho, quando crescer, poderá não se lembrar da agitação da lanchonete. Até não saberá, talvez, se comia batata frita ou nuggets. Mas não vai se esquecer de que, naquelas tardes, as brincadeiras, as briguinhas e a companhia do irmão eram o seu maior alimento. Cujo sabor ficará tão marcado em sua memória que, ouso dizer, ele nunca vai se enjoar do Mc Donalds.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Cobranças

Ela agia como uma criança e cobrava dele como um adulto. Ele agia como um adulto e cobrava dela como uma criança.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Misturas

O enredo de A Carne, naturalista, tem um quê de romantismo quando Manduca morre de amor por Lenita. Em Iracema, o romantismo de Alencar dá espaço para o naturalismo na descrição dos mares bravios, do canto da jandaia, dos coqueiros do Ceará. Não há escola, não há sentimento que não se complete com um contraponto. É por isso que Raul se viu como tudo e nada. É por isso que Sartre escreveu sobre o ser e o nada. É por isso que a razão de Goethe tinha como fonte a emoção. É por isso que Bergson via intuição na matemática. E que von Herder via inteligência na bondade. É por isso que o ódio se transforma em amor. E o ato de tolerar, em maneira de amar. E assim, judeus e árabes são irmãos. E a luz não existe sem a escuridão. Tampouco um problema, sem a sua solução. Afinal, o que arde cura, o que aperta segura. É por isso que Luzia-Homem era força masculina e formosura feminina. E que o homem Gil cantou seu lado mulher. E que o azul gremista admira o colorado, vermelho cor do nosso sangue. E vice-versa, antes que reclamem. É por isso que no seu sorriso há alegria e tristeza. E no seu corpo, calor e frieza. É por isso que o vento pode ser suave como a voz de Anderson Silva e agressivo como a tempestade de seu soco. É por isso que o silêncio da madrugada é tenebroso e belo. É por isso que o homem traz o mar salgado em suas lágrimas. É por isso que do sonho surge a realidade, que em giros dançantes volta a ser sonho, me conduzindo pela vida, ora inebriado, ora assustado, ora preenchido de esperança, ora no vazio da angústia, tudo isso unido na minha alma, errante como um cavalo galopante e fixa como uma bandeira tremulante. Algo comum está presente. É por isso que o espírito e a matéria se entrelaçam, se fortalecem, têm continuidade. É por isso que eu encontrei você.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Possessivos

Os torcedores que só pensam nos seus times e desancam um bem maior, a seleção, refletem a nossa era do I (eu). Os clubes se tornaram símbolos de um eu possessivo e egoísta, preocupado apenas com a própria comodidade. Assim se multiplicam os iphonesipods,  i-touch tables, i-trends, e tantos outros itens que são importantes, se bem usados. No futebol, o clube já não é tanto uma agremiação que disputa com o que já se chamou de coirmão. O clube e o torcedor, hoje, formam um único ente, o i-club. É por isso que Neymar foi vaiado no Morumbi.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Conjugação

Para os que não olham para o outro, segue uma conjugação do verbo excluir. Tu excluis, ele exclui, nós excluímos, vós excluís, eles excluem. Eu não excluo. Eu me incluo. Ou tento.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Admiração

As pessoas em geral admiram aquele que se deixa ser admirado e achincalham, com ou sem palavras, aquele que mendiga admiração.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Técnico

O trabalho de um técnico é fazer o time jogar sozinho, com individualidades solidárias, munidas de bússola para navegar em mares turbulentos e de um piloto-automático para voar pelos céus de brigadeiro. O técnico é um altruísta, coadjuvante cujo prazer é perceber que o time não precisa dele. Que ninguém reclame quando o compararem a um pai.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Palitos

Na mesa de uma cantina, enquanto o conhecido sentado à sua frente palitava os dentes, lhe veio uma percepção óbvia. Falavam sobre como os políticos prometem e não revitalizam o centro paulistano. As teorias foram para outras esferas, passando por assuntos como a Educação que insiste em capengar, e pela desigualdade no país. Então emendou: “No Brasil, nunca houve um governante brilhante, à frente de seu tempo e de seus próprios interesses, em nível nacional ou estadual.” Sentiu-se aliviado com a conclusão. Implodiu herois como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Lula e qualquer outro idealizado como alguém maior do que sua condição mediana, apesar dos méritos. Mas se calou, constrangido pela ousadia das palavras, discrepantes para uma saída corriqueira, provocando silêncio na mesa. Viu que tal lacuna ainda não foi preenchida com um humanista que, acima da luta política, se desfaz da vaidade, até dos limites de sua personalidade em prol de um bem maior, o outro, em real mergulho na evolução da sociedade. "Conhecer filosofia e ter cultura é uma coisa", pensou. "Assimilar conceitos filosóficos e implantar na própria vida, transcendendo preconceitos e mesquinharias é outra", concluiu. E balbuciou para si, realçando a estranheza. "No fundo, todos alimentaram as mesmas conversas de sempre, nos corredores da política, nas decisões de gabinete, na relação por demais objetiva com as pessoas e inebriada com o poder". Foi o gesto de palitar o dente em público, que desconsidera de forma bem brasileira o incômodo alheio, que o levou a esta cena inusitada. Muitos destes políticos deviam palitar os dentes. São também reflexos de uma sociedade pouco evoluída - eles e o ato de palitar. "Por um desenvolvimento sustentável, mas acima de tudo efetivo, mitos e palitos precisam ser reciclados", falou para si, bem baixinho, já com a imagem de louco. E pediu a conta, desta vez falando bem alto.

sábado, 25 de agosto de 2012

Hipóteses

Todos reclamam da falta de generosidade. Ou a generosidade não existe, ou todos reclamam de si mesmos.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Benção

Velho rabino, barba branca, roupa preta, bengala envernizada. Cambaleia no andar, não no pensar e nem no sentir. Pisa no asfalto com passos duros, apoiado no ombro do jovem. Mãos pesadas e trêmulas regem seus movimentos, como se a vida fosse uma orquestra fragmentada que se encontra em sua lucidez. “Não vá vender sua alma, hein?”, diz, com sotaque russo, subindo com alegria os degraus da entrada. Ampara-se no porteiro, já de costas. Dá um aceno em forma de benção, em despedida, enquanto um caminhão passa na rua, bufando, fazendo o concerto tremer, no ritmo daquelas mãos.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Troca

A frase “não basta ser honesto, tem de parecer honesto” está sendo usada de uma maneira cínica ultimamente. Muita gente tem se mascarado nestes dizeres e, num instante de sombra, disfarça, surrupia, troca o basta pelo precisa como se não houvesse diferença entre um e outro.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Comodismo

As pessoas nem sempre têm olhos para o belo e o profundo. Preferem se acomodar no convencional.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Quadra

Fim de tarde de domingo.  Pai e filho jogavam futebol na quadra society. O adulto, magro e tímido, se empolgava em ver o menininho esbanjar alegria a cada lance. Seus olhinhos brilhavam como duas estrelas. De repente, um desabafo longínquo se misturou ao anoitecer. “Pena que eu não posso mais jogar”, gritou um homem de meia-idade, à distância, com as mãos agarradas nas cercas. “Nossa, como sinto falta daquele tempo, em que jogava aí, o dia inteiro, com os amigos”, disse, em tom suave, com a voz ecoando pela quadra quase vazia. E repetiu a frase. A noite seguiu o ritmo da prosa. Desceu serena, como toque de encerramento da conversa. “Você ainda pode jogar”, respondeu o pai, tentando incentivar. “Não dá, sou infartado, não dá. Mas eu corro, tudo bem, tudo bem, eu corro”, emendou o homem, baixinho, cabelos grisalhos e olhinhos saltitantes atrás de óculos arredondados. Então aquela figura pura foi embora rápido, falando algo para si. A cena não foi triste. Apenas verdadeira. O menininho logo quis continuar o jogo. E o pai ficou pensando, enquanto tocava de leve na bola, em como aquele desabafo não carregava rancor, mas ternura. Pensou nisso já antecipando o dia em que não puder mais jogar com o menino, quando seu coração não sustentar as necessidades da juventude. Olhou para a criança, cuja preocupação eram as jogadas a serem feitas. “Lança para eu dar de cabeça, papai”. Ele estava seguro com a companhia do pai. “Feliz dia dos pais. Te amo muito, muito, papai”. O pai admirou aquela figura típica de um livro de Tolstoi. Iria guardar o diálogo curto, absorver cada palavra daquela aparição. Nada de lamento. Um dia ele iria fazer como aquele homem. Evitaria a amargura. Começara desde já a amar a própria saudade.

Companheira

Dor, eterna companheira do homem. A dor crônica da artrite dos que se cansaram de andar. A dor aguda dos que se aventuraram em tentar e recuaram para prosseguir. A dor lancinante de uma facada. A dor inflamatória de uma ferida que não seca. A dor de se sentir longe do alarido da infância. A dor das promessas não cumpridas. A dor das mentiras não reveladas. A dor das verdades jamais percebidas. A dor de falar e ninguém ouvir. A dor de ouvir os que não sabem falar. A dor das despedidas obrigatórias. A dor da chegada, a dor da partida. Os jovens sentem dor no crescimento. Os adultos, no envelhecimento. E existe a dor das incertezas. Para curar a dor das certezas. A dor do nada, daquilo que não tem motivo para nos fazer chorar. A dor no estômago de tanto rir. A dor de dente que nos tira da reunião importante. A dor do que já passou. A dor do que ainda virá. Dor somática, atributo divino que faz a vida girar. E doer. A dor na coluna aponta para a idade, a dor de cabeça nos mostra a realidade. Somos sós, isso nos remete à dor da unicidade. Todas as dores são suportáveis, por serem dolorosas companheiras. Dolorosamente nos apontam o caminho. A única dor que não passa nunca é a de quem tenta fingir que não sente dor. É a dor de quem se cala diante do amor.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Descoberta

Primeiro foi no civil. Alguns anos depois, no religioso. Um dia, porém, ele sentiu saudades daquele mau humor feminino, que a deixava irritadinha apenas por perder uma chave. Foi quando ele percebeu, definitivamente, que estava casado.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Trave

Quando menino, as bolas que batiam na trave o fascinavam. Mais do que saber o resultado do jogo, perguntava para o pai quantas bolas tinham acertado o poste. Talvez associasse a finura da trave ao fato de ser magro. A importância da trave minimizava a sensação de ser frágil. Encantava-se com a sutileza deste limite entre a conquista e a frustração. Era um prazer ver seu time chutar na trave. Era a sensação de ter chegado até a meta. Era o sorriso de amor da linda menina, que já tinha namorado. Era a nota oito insuficiente para não ficar de recuperação em matemática. A bola na trave simbolizava um estímulo para seguir em frente. Possibilitava a criação. A trave, generosa, pede para que a acertem. De maneira bíblica doa seu corpo para que continuemos a acreditar em nossas capacidades. Para dividir com ela a responsabilidade por nossas agruras. A superfície dura, de ferro, traz uma mensagem doce, de esperança. A trave não permite o gol, mas faz nos sentir com o dever cumprido. À noite, quando o estádio fica vazio e silencioso, a trave segue impávida, sob o sereno, já sem a companhia das redes. Ela é convicta em sua missão. Chova ou faça sol não muda de posição. Insiste em nos mostrar o caminho. Aponta quando estamos perto do acerto. Bem que ele queria, nos dias que seu time perdia, ter uma no seu quarto, para consolá-lo. Ela enxugaria suas lágrimas e diria uma frase mágica, que só as traves nos induzem a pensar nos momentos mais difíceis: “da próxima vez...”

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Cientista

Einstein era um gênio não por causa de seu conhecimento científico. Ele sabia integrá-lo à sabedoria e à ignorância humanas, relativizando uma na outra. Einstein intuía sua ciência, na crença religiosa de que a relatividade existe tanto no universo quanto na vida terrestre. Nos movimentos cósmicos e nas batidas de nosso coração. Na pressão do vento e nas sutilezas da alma. A fórmula que Einstein apresentou resumia em números a dança do mundo visual com o oculto. Sua relatividade não se restringe à sua vaidade, à sua inteligência, aos seus estudos. Ele a compartilhou com todos nós. É nossa. Está no cosmos e na energia que nos move, na massa que nos compõe e na luz que nos ilumina.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Solitários

O mar Amado abraçou o Vale Dourado, de onde surgiu o nome Dorival. O encontro fez vento, movimentou um barco a Veloso, balançou palmeiras e betânias em um balancê pela Costa. Gil, o pássaro da voz suave, não se sentiu exilado. Cantou a cena de longe, pulando de galho em galho, de vila em vila, com seu violão. Ele se vira sozinho. Afinal, “a Bahia já lhe deu régua e compasso”.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Baianos

As ondas, sensuais como a cintura de Gabriela, beijam a face de Ilhéus. Recebem o abraço da brisa, quando se diluem como sonhos na praia. Da dança invisível, vem o cheiro de cravo, a cor de canela. O gosto de cacau, de riqueza e de luxúria. O gosto amargo da miséria. A luz do sol aquece a areia branca. Sufoca o peito dos solitários, dos apaixonados, dos invejosos. Embriagados nas ruelas. Desesperados na igreja. Apoquentados nas construções rústicas. Toque de luar, piscar da noite estrelada. Chanel para as moças de joias pesadas. De sotaques e maquiagens fortes. Samba e swing nos cabarés. Sombrinha para as puras e seus vestidos suaves. Coroneis de trajes cinzas, com falas monótonas. Modernos de trajes claros, bigodes finos, aprumados. Mas sou eu quem escuta a trilha sonora que deles emana. Eles não podem, são protagonistas de enredos que encantam e expandem horizontes. Puro Caymmi, tranquilo em um barco de pescador na tarde alaranjada. Poente que se mistura à alma da cidade. Som colorido a penetrar no interior escuro do meu quarto. Cheio de turcos descabelados, atormentados. Feito de professores sonhadores. Personagens problemáticos, machistas, inseguros. O fundo do mar esconde o segredo: são todos ávidos por carinho. Não sei se Freud explica por que todo ladrão é moralista. Ele não conhecia o Brasil. Ele não amou a Bahia.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Perfumados

No futebol, adoro o termo jogar fora de casa. Deparar-se com arquibancadas torcendo contra o seu sucesso, colocando o que puder de energia contrária à sua identidade é um desafio lúdico, necessário a todos que querem a vitória. Todos os dias, quando acordamos, nos olhamos no espelho, sonhando em não encontrar as olheiras da fragilidade e o caos dos nossos cabelos desarrumados. Expostos à nossa realidade humana, antes de nos aprumarmos, é inevitável um certo receio diante do desafio que a manhã nos impõe. Respiramos fundo, tomamos banho, nos perfumamos como num ritual que nos abençoa antes do saudável enfrentamento. De forma construtiva, até religiosa, nos preparamos para o que é mais bonito e difícil no futebol: ganhar fora de casa. E na maior parte do dia, o jogo continua com esta tônica. O perfume perde o aroma para o suor, a camisa amassa. Atuamos na casa - e sob os olhares enviesados - de um adversário. Há duas maneiras de colocarmos a cabeça no travesseiro sentindo o sabor do triunfo, depois do banho que nos renova. Uma é quando conseguimos tirar o adversário de dentro de nós. E, se ele estiver fora, urrando dos alambrados, percebermos que seus gritos não são tão potentes. Podemos fazer dele apenas um adversário, não um inimigo. E antes de dormirmos o sono dos justos, desejar-lhe um amistoso "até amanhã".

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Estereótipos

A prosa brasileira, apesar de seus escritores magistrais, costuma abordar as vaidades humanas em forma de paródia, com ironia e sarcasmo. Mas, em geral, não mergulha tanto quanto a literatura internacional nos conflitos internos mais profundos dos personagens. Há uma estética descritiva e enredos muito bem elaborados, porém em meio a exagerados siricuticos, brejeirices, figuras cômicas, homens durões, heróis transgressores, mulheres que dão. A individualização de cada drama parece ficar à margem dos estereótipos. Talvez seja por isso que o Brasil ainda não foi contemplado com um Nobel de Literatura.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Obsessões

Mesmo a precisão matemática não alcança a realidade total. Se uma pessoa vai três vezes por semana ao analista, na primeira vez ela cumpriu 33,3% de sua rotina. Na terceira, terá cumprido 99,99999%. Nunca haverá a totalidade matemática, apesar de ela, por inteiro, ter estado lá, nas três sessões semanais. Na vida, as dízimas da obsessão, da certeza radical e dos pensamentos negativos se desfazem diante dos acontecimentos. A esse fenômeno muitos dão o nome de fé.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Estátuas

Quando adolescente, ele escreveu um texto em que todos os que o cercavam eram estátuas, cimentadas em seus interesses concretos. Quanto vou ganhar? O que eu lucro com isso? No que isso me favorece? Essas perguntas, repetidas exaustivamente tiram o caráter reflexivo do ser humano. E as estátuas nem percebiam que um dia deixariam de ser estátuas, para virarem cadáveres. Voltariam novamente a ser de carne e osso, mas continuariam a não ter alma.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Plantinhas

A tia gostava de cultivar plantinhas em pequenos potes. Minúsculos, do tamanho de tampas de detergente e coisas parecidas. Ela as deixava na borda das janelas e na sacada. Regava, colocava para tomar sol, quase acariciava. Um dia seu marido de muitos anos foi levado para outra cidade e nunca mais se viram. Depois ela foi embora, para uma boa clínica, que a acolheu com respeito. Foi um fim de casamento repentino e implacável. Mas as plantinhas ficaram, tomando sereno, sorvendo os eflúvios da noite, se guiando pelo barulho do trem, avistando a paisagem urbana que ia do centro a Santana, retendo as histórias dos sobrinhos, que percorriam o apartamento atrás dos brinquedos, das revistas, se esbaldando no tapete de pele de carneiro. Elas ficaram por lá, carregando todas essas movimentações. Até murcharem de saudade.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Óptica

A postulação do filósofo Espinosa sobre os afetos da alegria e da tristeza tem relação com conceitos religiosos. Ele só não reconhece D’us como um ser superior com vontade própria, o que foi considerado uma heresia. Para Espinosa, D’us, natureza e realidade são sinônimos. O judaísmo, no entanto, coloca a alegria como uma das qualidades mais importantes do homem. Para acreditar em D’us, e justamente por isso, o indivíduo precisa estar besimcha (em alegria). No século XVI, Espinosa foi excomungado como judeu e passou a consertar lentes para se manter. Sua tese de que a alegria é fonte de estímulo primordial, porém, mostrou que o judaísmo ainda permaneceu nele. Como as lentes que consertava, ele e o judaísmo eram refratários, translúcidos e opacos um com o outro. Mas mantiveram um mesmo foco. O raio de luz que deles emanava convergia para a necessidade de o homem viver com o coração aberto e um sorriso no rosto. Não importa se essa crença fosse filosófica ou religiosa.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Inversão

Quando menino, ele era fanático por futebol. Sabia todas as escalações do Corinthians, brincava com os amigos, que nem eram tão ligados assim ao esporte. Quando adulto, as necessidades da vida e a seriedade em encarar a realidade mudaram seu foco. Seu amor por futebol não esfriou, amadureceu. Enquanto isso, seus amigos, por terem enriquecido logo, passaram a ser os obcedados, talvez por já não terem tanto em que pensar ou se preocupar. Não dormiam na véspera de jogos. Só falavam daquilo nos encontros. O romantismo, porém, não era o mesmo. Tornaram-se repetidores das piadinhas sobre rivalidade usadas por ele na meninice. Na boca de homens, elas soam frívolas. Na boca de uma criança, elas ajudam a dar um sentido para a vida.

Insensatez

Há algo que parece banal, mas que no fundo é perigoso no fanatismo. Mesmo que restrito "apenas" às brincadeiras no futebol. Se o germe aparece em uma área, está pronto para aparecer em outras. Em uma UTI, um palmeirense respirava por aparelhos. Com o olhar pregado no teto, se deparava com a fragilidade humana, passivo diante da movimentação dos enfermeiros. O futebol era a última coisa que pensava naquele momento. Até seu médico comentar a rodada, dizendo para um colega, na transferência de plantão, em tom de botequim. “Eu quero é que palmeirense morra no inferno...”

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Campeão

De repente, aquelas buzinas ao longe, a agitação da cidade, a ansiedade no ar o remeteu a 1977. Ele era criança, o Corinthians disputava a final contra a Ponte, tentando sair de uma angustiante fila que só fez a torcida crescer no sofrimento. Não esperava ser pego, nesta distante época, mais mecanizada e instantânea, por sensação tão nostálgica, antes da final contra o Boca, 35 anos depois. Voltou a ser menino, reconstruiu então um caminho de júbilo. Mas havia um paradoxo. A própria modernidade sofre mudanças. O corintiano sofredor já não acreditava mais na velha retórica de que seu time treme em Libertadores. Assim como muitas reclamações jaborianas de que o mundo piorou, de que as pessoas foram aniquiladas pela pressa e pelos desejos fast-food, não faziam tanto sentido. Soavam repetitivas e arcaicas. Irrompeu-lhe uma volúpia, uma certeza avassaladora de que era hora de olhar para frente, alimentado pelas gostosas semelhanças com o passado. Sentiu que o Boca ainda não percebera a transformação. Viu os argentinos, ingenuamente, tentarem jogar no erro do Corinthians. Mas desta vez o Corinthians não iria errar. Seria, ainda mais do que em 1977, o inquestionável campeão. Neste momento, o passado e o presente, tão diferentes, se uniram acima dos tempos. Em com as cenas rodopiando em sua mente, as experiências de outrora se juntaram às esperanças de agora, para se tornarem um único elemento, vital para a continuidade de nossas vidas: a vitória que emerge da confiança.

Saudosos

Era uma senhora que não tinha filhos. Mas tinha irmãos e sobrinhos. Envelheceu com as agruras da vida, emagreceu, seu andar ficou trôpego, suas mãos trêmulas. Os olhos azuis, com nuances entristecidas, porém, não escondiam um brilho radiante de vida. A cada queixa, a cada lamento, a luz azulada aumentava, uma alegria emanava, como se suas pálpebras sorrissem para avisar que, no fundo, aquelas reclamações aparentes carregavam o bom humor de sempre. Em seu enterro, seus irmãos e sobrinhos foram fieis companheiros. Estiveram com ela até o fim, gratos, orgulhosos e já saudosos por terem compartilhado por anos sua adorável companhia, dividindo pequenos momentos que se transformaram em grandes histórias. Ela desbravou uma trilha de amor, seguida por herdeiros acima da herança biológica. Nada mais importante para uma pessoa do que ter quem a louve e quem chore por ela no momento da partida.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Abraço

Na frente da casinha no kibutz, duas senhoras se reencontraram. Eram irmãs que não se viam havia 48 anos. Separaram-se por causa da guerra e agora dividiam um longo abraço, por entre trilhas ajardinadas, como se tentassem vencer quatro décadas em alguns minutos. Uma veio para o Brasil, se casou, teve filhos e netos. Outra foi morar em Israel, onde também fez família. A distância não apagou a memória, tampouco o afeto. Apenas internalizou uma moça na outra, até se tornarem idosas. Depois daquele encontro, vieram outros esporádicos naquela viagem. Encerrada a visita, porém, nunca mais se viram, obedecendo uma ordem natural da rotina humana. O que nos une não são apenas os sentidos concretos da visão, audição e tato. A irmã mais velha morreu três anos depois, aliviada. Sabia que aquele abraço duraria muito além de 48 anos.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Invenções

A obra-prima sempre esteve dentro de seu autor. Ele apenas a moldou, no momento certo, para que ela aparecesse diante dos outros. Um amigo me disse uma verdade: no mundo, a sabedoria não pode ser inventada. Ela só pode ser descoberta.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Exigente

O inconsciente é um ser consciente. Sabe que não quer ser descoberto. Mantém artimanhas para ludibriar a consciência, boicotar algumas soluções. Muitos inconscientes traumatizados até lutam para não superar o trauma, tamanho o medo do desconhecido. O inconsciente se esconde em sorrisos melífluos, sob gargalhadas exageradas, em palavras inconsistentes, em trajes aparentes, em gestos de repente. O inconsciente tem plena consciência de que não quer perder seu poder. Mas o inconsciente é iludido pelo seu próprio inconsciente. A vida se organiza numa sequência de caixas embutidas umas nas outras, dentro da mente. O inconsciente do inconsciente, no fundo, quer atenção permanente. Precisa ser compreendido, satisfatoriamente. Não existe ser mais carente, do que o nosso inconsciente.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Alienado

Ele gostava de ver o rosto contorcido de esforço de um jogador. De admirar o suor pingando da ponta do queixo. Da boca aberta ofegante após um pique. Do beijo na camisa, principalmente se fosse de seleção. Do abraço e de uma conversa sorridente entre adversários. De um carrinho duro, mas da mão que levanta o que tombou na luta. Do drible desconcertante em jogada secundária. Adorava imaginar o desenho que a linha da bola traça durante uma longa troca de passes. Da grama, surgiam cordilheiras, triângulos, parábolas, evoluções em espiral, traços e vazios infinitos. Tudo isso acompanhado pela trilha sonora de murmúrios, urros e silêncios retendo uma emoção muda. Desde a infância, seu olhar se distanciava léguas do moralismo da vitória ou da derrota. Passava pelos rostos dos torcedores. Pela energia do estádio. Pelas falhas na pintura da marquise. Pelo sol da tarde que polvilhava raios luminosos naquela catedral. O gol somente? A tática solitária? Eram apenas para especialistas. Os que diziam que ele não entendia nada de futebol.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Canarinho

Hoje faz trinta anos que uma das páginas mais belas do nosso futebol começou a ser escrita. A seleção brasileira de Telê Santana estreava na Copa do Mundo de 1982. Venceu a URSS por 2 a 1. Pelos soviéticos, além do grande goleiro Dasaev, jogava o atacante Blokhin, atual técnico da Ucrânia na Eurocopa. Telê e o capitão Sócrates já morreram, a URSS Soviética se desintegrou. “Voa, canarinho, voa”, era o refrão da música cantada pelo Júnior, do Brasil. Para mim, esse canário, que voa de e para tão longe, se chama Tempo. E, diferentemente de nós, não envelhece nunca.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Guardador

O seu pai bigodudo tratou o guardador de carros bigodudo com tanto respeito que o menino começou a falar a escalação do Corinthians cheio de orgulho, como se conversasse com o mais famoso cronista esportivo. “1 Tobias, 2 Zé Maria, 3 Moisés...” O guardador sorriu e elogiou o conhecimento do menino. Quis agradar pai e filho que o trataram com tanto respeito, no terreno baldio em frente ao estádio do Morumbi.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Silêncio

Um homem observa a chuva cair na poça da garagem externa. Silenciosamente. Uma corrente de nuvens agita o céu. Em silêncio. Na cama, o casal olha para o teto, em silêncio, refletindo sobre a vida após a transa. E o filho não sabe o que significou a ausência de palavras na resposta do pai, feita apenas com o olhar. O silêncio confunde, angustia. Mas é sagrado. Tudo acontece na sequência do silêncio. Dos calados de Raul Seixas emergem surpreendentes revelações interiores, pensadas, pouco expostas, presentes. Os tagarelas amadurecem na introspecção. Um silêncio pode ser sepulcral, nem por isso morto. Mas também pode matar. Maquiavélico. Faz isso para no cemitério nos dizer algo além das letras nas lápides. O silêncio descansa no avanço, revela temores, como uma serpente invisível que se expõe tentando se ocultar. O silêncio, irmão do tempo, também é infinito. Está na essência da música. A faz continuar quando acaba. Se ela for boa, silencia um ruído em nós. E se for ruim, tira a melodia de nossa esperança. Nem as estrelas escondem seu brilho no silêncio. O silêncio precede o choro do nascimento. Todo o universo se calou, antes da explosão inicial. E depois da vida na Terra, retornou a seu estado emblemático. Voltou a ficar em silêncio, deixando apenas os homens perdidos em seus barulhos.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Prisioneiros

No campo de refugiados no Chipre as condições eram precárias. Crianças andavam em meio ao calor. O clima era seco e o amontoado de barracas ficava sobre a areia. Havia torres de observação em cada extremidade. Arames farpados cercavam o local, como se os judeus sobreviventes dos campos da Alemanha fossem bandidos. A água era escassa, para beber e para tomar banho. O verde não existia. O sol escaldante sufocava e oprimia, mas a luz das estrelas reacendia a esperança. Ela nunca deixou de existir, mesmo sem água, mesmo sem vegetação. Quando a futura estadista adentrou ao local para visitar aquelas pessoas, recebeu um presente de duas menininhas. Elas se aproximaram com timidez para lhe dar um singelo buquê de flores, feito com a ajuda das professoras do maternal. Eram flores de papel. Muito melhor do que se fossem de verdade.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Dualismo

Ele viu a multidão ondulante o contemplando. Sentiu o calor da massa, a energia e a vibração daquele clube cheio de tradição. O pulsar abafado, ao som de bumbos triunfantes com sua chegada, fez seu grito ecoar e se amplificar naquela gente. “Flamengo é Flamengo”, disse, com a voz trêmula, como se de dentro dele saísse uma revoada de colibris. Um tempo se passou. Após ficar sem receber pagamentos, perceber a falta de planejamento em torno de seu nome, ser motivo de confusões e intrigas mesquinhas, sem nem se constranger com as regalias que culminaram com a sua saída, emendou, para os poucos que ficaram para ouvir outra verdade. “Flamengo é Flamengo”.

Mundos

Adoro futebol. Não quero, porém, falar só sobre isso com você. Não quero que nossa relação fique cristalizada em uma bola, em um jogador, e eu não possa conhecer mais seu mundo - e você o meu - principalmente quando você está com sono ou quando se esquece do meu carinho e não quer nem me ver. Então saio de cena uma, duas, três, quantas vezes forem necessárias, até que um dia eu me canse, de falar de futebol.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Gangorra

De um lado da alavanca havia a raiva. De outro, o medo. Eles se equilibravam. Ora um ora outro estava por cima. No eixo central, fruto desta interação estava a irritação. Era desta gangorra que ele queria saltar em sua infância. E sair pelo parquinho para procurar outros brinquedos, conhecer a diversão de apenas ser criança.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Israelita

Não adianta colocar a desculpa no outro. Não adianta dizer que o povo judeu pode ser identificado acima de tudo pela tradição e cultura e não necessariamente pela religião. Acontece que a tradição e a cultura são frutos diretos da religião, chama essencial e razão de ser não só do judaísmo, mas do povo judeu. Até daqueles que o renegam. Ninguém é obrigado a seguir os preceitos da Torá, a entender o Talmud ou a estudar a Halachá, mas os preceitos são a raiz da identidade judaica, o que impediu o povo israelita de se diluir como os filisteus, os caldeus, os fenícios e tantos outros. As leis e a história religiosa são a essência, remotas para os que não percebem, de Israel, o alter ego do Estado Judeu. Um colono esquerdista do kibutz Hulda, disse a Amós Oz, enquanto partulhavam as cercanias à noite, que não poderia jamais sair de Israel. Sentia que não seria aceito em nenhum outro país. Ele era um laico, avesso às celebrações espirituais. De certa maneira, acolhia uma verdade. Mesmo que não se considerasse judeu, outros o considerariam. Melhor, então, é admitir a não aceitação de certos valores judaicos como opção pessoal. E não usar subterfúgios para esconder um eventual sentimento de culpa jogando-a na religião. E antes que me acusem, não sou religioso e nunca obedeci a um shabat. Talvez, infelizmente.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Telepatia

Os especialistas já afirmam que os bebês sentem tudo ao seu redor. E se manifestam à sua maneira. Eu, por exemplo, senti que o Brasil fora campão mundial de 1970 e, enquanto os rojões estouravam no céu e a multidão comemorava, chorei no berço. Meus pais deixaram os copos e foram me ver. Pensaram que era susto, mas, mesmo sem me lembrar, sei que era alegria. Desde então meu destino se ligou ao da seleção brasileira. Na Copa de 1982, a eliminação me fez sofrer como se tivesse perdido um parente. Sentia exatamente, ou até mais, o que os jogadores sentiam em campo. Esquecera-me deste vínculo até a Copa de 2010. O Brasil jogava muito bem contra a Holanda, fez um 1 a 0 e, no intervalo, o telefone tocou. Era um tio de Israel, que me demandava muita energia, porque era muito admirado por mim quando criança. Mas bem naquela hora eu não poderia falar. Pela primeira vez na história não dediquei toda a minha atenção a um jogo do Brasil em Copa. Talvez por excesso de confiança. Resultado, enquanto eu via os lances e ouvia meu tio, a Holanda fez 1 a 0 e depois 2 a 1. A conversa se encerrou, tentei recuperar o tempo perdido junto com os jogadores, mas era tarde. Chorei como sempre e só depois me dei conta da relação dos fatos. Agora, para a Copa de 2014 prometo concentração total. Nada de telefonemas, nada de desvios. Isso não tranquilizará os jogadores, eles nem me conhecem. Mas me deixará muito mais sossegado para cumprir esta tarefa silenciosa, oculta no meu anonimato. Porém sagrada para mim, pelo fato de eu saber que só eu a tenho.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Lete

Quando criança ele ia a pé do Bom Retiro ao Pacaembu, por várzeas e trilhas. Tempos em que o Estádio Municipal era de todos. Sem esta besteira de hoje: minha casa, casa do outro... Nem se pensava em Morumbi. Ele atravessava a cidade para ver o seu São Paulo. Em jogos contra o Corinthians, são-paulino era raridade no estádio. Um dia, nas numeradas abarrotadas, um monte de corintianos o cercou. Pra bater? Que nada, o acolheram e falaram: “senta aqui do nosso lado, menino, mas não exagera não, tá?”, brincaram. Ele colecionava histórias sobre futebol. Contava que o Remo parava a bola chutada lá em cima pelo goleiro. Num toque só, como se a pelota fosse pluma. Falava da família do Zaclis, judeu, que tinha comércio de roupas perto de sua casa. E passou a vida inteira praguejando o Corinthians. “Time de maloqueiros”, bradava, demonstrando uma contrariedade absoluta. Seu sobrinho predileto, corintiano, entrava na discussão, que sempre terminava com uma brincadeira carinhosa. Agora ele está velhinho, acometido pelo Alzheimer. De supetão, o filho o levou para outra cidade. Não viu mais ninguém. Mas não é que, outro dia, justo ele, esquecido de tudo nesta vida, quase purificado por um vazio nebuloso, como se viesse do rio Lete - o rio do esquecimento na mitologia grega - comemorou um gol do Corinthians? Sim, desapegado da aversão, algo de seu interior que estava contido emergiu diante da TV. Seu isolamento mental quis expressar alguma mensagem. E mostrou um lado bom do Alzheimer. O lado que supera o orgulho e abstrai rivalidades antes insolúveis. Esse fenômeno flerta com o ocaso, mas nem sempre se rende a ele. Apenas limpa a mente, mas não a alma. O Alzheimer o alçou a um novo mundo, distante como o alto de uma cordilheira, envolta em nuvens, alienada no tempo. E mostrou que, mesmo lá de longe, ele ainda não se esqueceu de seu querido sobrinho.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Moria

Thomas Morus foi considerado exemplo de retidão. Pai devoto e humanista. Viveu entre 1478 e 1535, na Inglaterra e, depois de se tornar célebre escritor e advogado, foi chanceler na corte de Henrique VIII. Por interesse próprio, o rei quis se divorciar de Catarina de Aragão. Pediu a Morus que organizasse o divórcio. Ele se recusou, afirmando ser assunto do papa. O rei, então, o obrigou a se declarar favorável a um ato de supremacia do monarca em relação à religião. Seria Henrique VIII o novo chefe da religião protestante. Poderia assim se casar com Ana Bolena, o que aconteceu. Morus, que em grego significa loucura (moria), se manteve calado. Foi preso, depois enforcado. Anos depois, santificado pela Igreja Católica (1935). E personagem do filme O homem que não vendeu sua alma, ganhador do Oscar de 1966, representado por Paul Scofield, que também levou o prêmio de melhor ator. Morus ficou calado até sua morte. Depois, sua mensagem falou mais alto e se perpetuou. O conselheiro disse ao rei que aquela não foi a melhor maneira de se iniciar uma religião em um país. E nem precisou de palavras.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Sobrado

No meio da noite, ele entreabriu os olhos, sentindo que estava sonhando com seu pai. Viu-se nos tempos de menino, sendo levado por ele para a escola. Conversavam sobre as casas da região. Enquanto dirigia, seu pai lhe dizia que gostaria de morar naquele sobrado com portão baixo, com um jardim florido na frente e uma linda varanda na entrada. Ainda em meia vigília, na cama, chegou a gritar por ele, saudoso, desejoso de revê-lo neste mundo. O desejo aumentou até que, enfim, abriu os olhos. Ao seu redor, o quarto silencioso. As cortinas estavam adormecidas, a TV desligada, sua esposa dormindo, seus chinelos perfilados no chão, os DVDs contando um pouco mais de sua história. Respirou o profundo silêncio da madrugada, testemunhou aquele momentâneo descanso do mundo que o cercava. Ia gritar novamente, mas sua voz não saiu. Ficou sufocada. Implodiu no silêncio enquanto ele mexia os lábios: “Pai”. O jeito, então, foi se virar para o outro lado, voltar a dormir o quanto antes e ainda tentar pegar um restinho daquele sonho.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Monoglota

Parecia o Pequeno Príncipe. Tinha cabelos dourados, só que lisos, olhos esverdeados, pele branca e corpo magro, de menino. Lutava, no entanto, para se desfazer desta imagem única que construiu de si mesmo. Tentava se comunicar com os outros como adulto que era. Então almoçou com o mais bem informado jornalista e, mesmo acanhado, defendeu a ponderação dos pontos de vista. A conversa esfriou logo, não conseguiu cativá-lo, seu jeito esquivo afastava as pessoas. No jantar com um amigo banqueiro ressaltou a necessidade de não rotularmos os outros no dia-a-dia. Soou estranho. Escutou como resposta algumas frases concretas, do tipo, “isso não presta para nada”, interrompidas por telefonemas sobre reuniões e negociações. Isso o fez lembrar da primeira epístola de São Paulo aos Coríntios, sobre o amor e a compreensão. Sentiu-se só, porém não iria desistir da essência do que defendia. Apenas precisava descansar naquele momento, encontrar uma fórmula. Sentou-se nos degraus da escadaria, com a cabeça encurvada sobre as pernas, para pensar. Então chorou, por somente saber falar a língua dos anjos e não conseguir se expressar na linguagem dos homens.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Alerta

Cuidado com o homem sério de camisa social. Penteado para trás, óculos da moda, ele entra na sala dos funcionários com olhos de ferro. Seu rosto tenso sinaliza ameaça. Seu silêncio cortante é escancarado. Cuidado. Se você se levantar para ir ao banheiro, pode ser demitido. Ele tem passos firmes, fala pausada, reações intempestivas. Ninguém se mexe na presença dele. Nem pensamento. A equipe congela de medo, aborta a criatividade. Quando ele vai embora, pega o paletó, sai com ar glacial e entra no carro quase sem pressa. Quem está no corredor se esconde para não ser pego fora da sala. O alívio do pessoal fica estampado na cara quando ele se vai. Inclusive o seu. Mas é por pouco tempo. Se você bobear, com toda aquela influência, ele impedirá que você consiga qualquer emprego. Impedirá que você crie, que você trabalhe. Até que sorria. Impedirá você de fazer o que ele quiser. E você se sentirá aterrorizado ao ouvir aquela voz tão próxima ecoando pela noite e transformando seus sonhos em pesadelos. Cuidado com o homem sério de camisa social. Ele conhece o seu endereço. E você o dele. Ele habita em sua mente. E você, na dele. Não haverá escapatória, se você não tiver cuidado.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Uniforme

Ele entrou com o filhinho na classe. Disse oi para a professora, viu os trabalhinhos pendurados na parede, reparou novamente nos brinquedos espalhados pelas mesinhas, nas almofadinhas postas lado a lado e, mais do que tudo, no bolo de 14 crianças que se concentrava no centro da sala. Logo eles viram seu menino, correram para recebê-lo, com braços abertos ou com as mãos esticadas. O menino esticou também, esboçando um contentamento tímido, e sem demora correu para junto dos outros, misturando-se ao grupo, que se transformou numa corrente alimentada pela amizade mais linda, a dos primeiros anos. Aquela massa infantil então se transformou aos seus olhos em um corpo único, num movimento harmônico de uniformes vermelhos. Ele ficou contente ao ver seu filho estampar 14 sorrisos na face e ecoar na voz um alarido fino, cheio de vida, semelhante ao dos passarinhos que cumprimentam a manhã.

Tamanhos

É sufocante e prejudicial se apegar a todas as coisas pequenas da vida. Mais importante é se preocupar somente com as coisas pequenas que têm grande repercussão. Por exemplo, o pequeno detalhe de diferenciar uma da outra.

Caminhos

Seu pai era de esquerda. O restante da família era de direita. Para encerrar o conflito ele, então, decidiu seguir pelo centro.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Futurismo

Pode ter sido o texto de uma colunista, que insinuou a união de forças, mas não citou as funções da dupla. Pode ter sido isso que inspirou aquele sonho, na noite seguinte. Ele viu Dilma e Lula, de mãos dadas, subindo a rampa do palácio. Dilma como presidente do Brasil. Lula, como vice. E, como se fossem de algodão, pedaços de nuvens se elevavam na amplidão daquele plananto, desenhando o número 2015.

Repetitivas

Não é à toa que os técnicos insistem em respeitar os adversários. Nem que os jogadores preferem evitar comparações entre si, se mostrem comedidos, apesar de confiantes, em relação ao próprio talento. Existe verdade nestas declarações tidas como repetitivas. Elas relativizam a crítica superficial, positiva ou negativa. E elas só se tornam repetitivas porque há uma multidão que não quer ouvi-las, para que o show possa continuar.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Sorento

Ao sair com o carro, levou uma fechada brusca. Fingiu não ver os xingamentos do outro motorista. Seu filho estava na cadeirinha atrás. Não poderia assustá-lo. Precisaria passar-lhe tranquilidade e segurança. E no dia em que o menininho ficou em casa, viu que a mudança estava consolidada. Quase foi jogado para fora da pista, por um Sorento em alta velocidade. Percebeu-se calmo, controlando sua irritação. Antes de engatar a primeira, olhou para o banco de trás, satisfeito por acalmar a sanha competitiva, comum no trânsito, onde as pessoas expõem seu lado selvagem. A cadeirinha estava vazia. Apenas fisicamente.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Judeia

Golda Meir costumava olhar Jerusalém de seu apartamento, quando era ministra do Trabalho. Ficava horas contemplando a cidade sagrada espalhada pelas montanhas da Judeia. Enquanto isso, o menino Amós andava pelas ruas de Kerem Avraham, bairro pobre, onde ia a lojas com a vizinha, morta com um tiro na cabeça na Guerra de Independência, atravessava a cidade com a família, para visitar o tio em Talpiot, ouvia o pai desferir seus conhecimentos, seu carinho e suas suaves broncas desagradáveis, tentava ajudar a mãe, introspectiva, sensível e deprimida, descobria o mundo através da leitura e da imaginação, obedecia, temia, confundia-se por ser querido e ao mesmo tempo não ser ouvido, preparava-se para o maior drama, a perda da mãe, para sua ruptura com a cidade, para a ida a Hulda e para a consagração por meio de seu mergulho no mundo que o cercava. Golda viu tudo isso sem saber com precisão, apenas intuindo que olhava para Israel e para seu futuro, marcado, como o título da biografia de Amós Oz, por amor e por trevas.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Aproximação

O padrasto viu o garoto de longe. De fora do parque, acenou para o enteado. Foi um aceno entusiasmado, para alguém por quem nutria muito carinho. Como resposta, recebeu uma cara emburrada e um olhar de contrariedade. Nem um tchau de volta. Irritado, e depois conformado, o homem tentava encontrar uma solução. Para preservar sua identidade e respeitar os momentos de aversão do menino a ele. De novo se acusou. "Você não aprende mesmo, né?" Até a próxima tentativa.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Maniqueísmo

Parte da imprensa projeta no público algo que está nela. Como as pessoas em geral fazem com o outro. Muitos jornalistas se irritam quando suas opiniões petrificadas são desfeitas. Quando idealizam, como fazem com Neymar, chamam de céticos aqueles que, não desmerecendo o enorme talento do menino, preferem esperar um pouco para elevá-lo ao Olimpo do futebol. Ficam irados com o contraditório, como se fossem eles torcedores apaixonados por certezas aparentes. E quando depreciam, dentro de um modelo maniqueísta, chamam de ingênuos e idealistas aqueles que vêem qualidades no depreciado. Um exemplo é Ronaldinho Gaúcho, outrora também comparado a Pelé, e que depois passou a ser considerado um zumbi, sem perdão. É comum, porém, que o cético e o ingênuo sejam os que acusam, enquanto não percebem o disfarce que a própria profissão os fornece. Das redações e dos estúdios, eles se culpam por se sentirem vulneráveis à crítica, ao diferente, e se prendem a frases feitas, como uma referência contra a própria insegurança ou dúvida. O discurso parece estar pronto, não permitindo saída, nem meio-termo. Uma solução seria saber que o respeito à opinião do outro, quando embasada em elementos coerentes, também faz parte da tão defendida liberdade de imprensa.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Bondade

Rousseau foi rotulado como defensor da tese de que o homem é originalmente bom. E Hobbes ficou com a fama de considerar maligna a essência humana. Há outro lado, porém. Rousseau, por exemplo, acha que o amor é invenção da sociedade, inclusive o materno. Para ele, uma galinha não está nem aí para seus pintinhos, comparando esta situação com a do ser humano. Ele se coloca contra o casamento, contra valores morais como respeito e convivência para defender o que ele chama de liberdade. Mas como dá para existir a bondade sem o amor? Já Hobbes, o Mau, busca mostrar que a sociedade pode extrair o melhor do homem e não necessariamente corrompê-lo. Um consenso comodista estigmatizou o "bom selvagem" e o "lobo do homem". Ser um bom selvagem não é garantia para se tornar um bom cidadão. Mais importante é transformar o “mau” selvagem em cidadão de bem.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Remexe

O canto Oi, oi, oi, da música tema da novela Avenida Brasil, é fascinante. Remete a um lamento judaico da Europa Oriental em uma música de dança latina e sensual. A última cena do capítulo acaba de forma impactante, mexendo com a gente, no mexe, remexe, que é uma loucura... como a letra diz. E então entram os caracteres com este tema da abertura, Dança com tudo, provocando um contraponto de emoções, com as imagens dos personagens ainda coladas em nossa mente. Sinto uma onda nostálgica me invadir, em uma dança da realidade, dividida entre a tristeza e a esperança, interagindo com a noite que entra silenciosa pela janela de casa, misturando-se ao aroma do jantar e à luz aquecida da sala. Aquele Oi, oi, oi, toca o coração. E depois vem o apelo, uma oração melódica, implorando por uma gota de doçura, esticando para adiar seu fim, para o aconchego da noite prosseguir em meio aos dramas humanos, estes sim, nada fictícios: vem dançar comigooooooo....

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Yehoshua

Não busco a heresia, tampouco a desordem de crenças, mas o nome Jesus é judaico como a sua origem: Yehoshua, cujo significado é Jeová Salva, do Tetragrama Sagrado YHVH, em referência ao Deus de Israel. Já a palavra cristo, em grego, significa escolhido, ungido. Jesus, segundo a tradição cristã, foi escolhido por Deus para representá-lo na Terra, durante sua vida de cerca de 33 anos. Isso incomoda os judeus, já que desafia a ideia da unicidade divina. Entretanto, Jesus era judeu, praticava alguns rituais da religião e atendia pelo nome de Yehoshua ben Yossef. Esta tese foi defendida pelo tio-avô de Amós Oz, Yossef Klausner, catedrático de literatura na Universidade Hebraica de Jerusalém, nos anos 20 e 30 do século passado. Klausner foi criticado tanto por judeus quanto por cristãos. Já na Torá, o escolhido para redimir a humanidade, como exemplo de moral e ética, não é uma pessoa, mas um povo, o hebreu, embrião da comunidade judaica. Não seria surpresa, portanto, se Klausner, ousado e convicto, já tivesse estudado a questão na busca de uma solução para o dilema. E, nesta miscelânea cheia de aspectos comuns, tivesse se referido ao povo judeu como "o povo cristo".

terça-feira, 17 de abril de 2012

Copo

Sentia-se constrangido ao descrever as pessoas como elas eram, sem máscaras. E se as encontrasse na rua ou em um encontro familiar? Não saberia sublimar suas convicções e se render às aparências, nem se permitir conversar normalmente deixando de lado aquela opinião reservada apenas a outra esfera, mais subjetiva. Sentia-se ambicioso como escritor. Ansiava pela verdade sem ferir, pela honestidade generosa. Não gostava de se locupletar com a maledicência, com mensagens mentirosas ou a ironia corrosiva, que, para ele, escritor pouco conhecido, beirava a covardia. Deve ter sido por isso que Amós Oz mudou de nome aos quinze anos. Não para se locupletar com as letras, mas para se completar com elas. Oz, em hebraico, é coragem. Como no ritual do casamento judaico, quando o noivo quebra o copo com os pés, para romper com um passado, Oz se reinventou para recomeçar ainda jovem. Escrevendo sua angústia, seu afeto, por trilhas cheias de sombra, mas com poucas máscaras.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Escudo

O religioso não aceita a retomada do caso em que um judeu foi morto pela ditadura militar. “A verdade é uma das premissas da Torá”, disse-lhe o interlocutor. E ele, com um semblante de calma aparente, mas sem esconder a irritação, rebateu. “A Torá também não aceita a invasão de privacidade”. O diálogo mostrou que a religião também pode construir seus sofismas, se tornar escudo do medo. Invasão de privacidade é aceitar um assassinato como sendo um suicídio. Invasão e inversão de privacidade seriam o cancelamento do tribunal de Nuremberg e do julgamento de Eichmann. E, além disso, a verdade pode muito bem ser encontrada sem invasão de privacidade, graças a Deus.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Culpas

A beleza das peças de William Shakespeare é que, por de trás da hipocrisia existente em vários ambientes familiares, quem é considerado o culpado de tudo é, na verdade, o menos culpado.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Ausente

Ele deixou de ir a uma festa entre antigos amigos da escola. Antes entusiasmado com este tipo de encontro, desta vez refreou seu idealismo. Não combinou nada, tampouco organizou. Não tentou fazer todos se reunirem, como se fosse responsável permanente por uma missão de paz, nem sempre bem-sucedida. Deixou de se iludir e de esperar algo dos outros. E nem estava mais com forças para conversas do tipo "olhe como eu estou bem", "veja como ganho dinheiro", "sou engraçado, vou comer esta gostosa, puta que o pariu, ha, ha, ha" (esta gargalhada, certamente atravessando os quatro cantos do local). Naquele momento, não tinha bens materiais para mostrar. Nem mesmo um semblante que disfarçasse sua busca. E se perguntassem o que fazia, ele não poderia carregar seu blog até o restaurante para que o entendessem melhor. Afinal, ainda não havia comprado seu i-pad.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Guarda

Pelas ruas que você atravessar em sua infância, serei o guarda de trânsito. Com quepe na cabeça e apito na boca, ficarei atento para que a maldade e a mentira não o atropelem. Cuidarei para que os carros parem para que você passe, evitando colisões. Na medida do possível, controlarei esse fluxo de adversidades para que sua vida flua sem tantos farois. Apenas o amarelo, quando você tiver prova no dia seguinte. Ou o vermelho, impedindo o desrespeito. De resto, que o farol verde lhe permita muitas coisas, em cada esquina: brincar, sorrir, estudar, aprender, crescer. Tudo isso até um dia em que não poderei mais realizar tal função, por minha vista não mais alcançar seus passos e o sopro do meu apito não passar de um pio. Aí, você terá aprendido a andar sozinho. Terá de ser assim. Evitará suas colisões e seguirá seu rumo, longe dos meus olhos. Nas trilhas mais distantes, nos limites da cidade, já na estrada, nos campos, nas plantações, nas montanhas verdes, quase tocando o céu, acompanhado sempre pela batida do meu coração: Ra-ul, Ra-ul, Ra-ul...

quarta-feira, 28 de março de 2012

Elogio

Erasmo de Roterdã escreveu em 1509 o livro Elogio da Loucura, dedicado ao amigo Thomas Morus, inglês, autor de Utopia. Teólogo de formação cristã, Erasmo aborda a loucura de forma humanista e eloquente, pelo seu lado bom e ruim. É uma sátira, um ensaio, uma ode aos ideais solidários, uma provocação à hipocrisia da sociedade da aparência. Há um momento em que ele espinafra os filósofos, como seres anti-sociais e rebate a clássica afirmação de que a política deveria contar mais com este tipo de pensador. Para ele seria um desastre permitir que filósofos comandassem governos, pela falta de habilidade que teriam em desempenhar funções práticas. A sabedoria, segundo ele, não leva a lugar nenhum. Fica no ar, para o leitor, se Erasmo está falando sério ou não. De qualquer maneira, seja por sua sabedoria ou sua loucura, é ele quem merece ser elogiado, pois sua obra o identifica em seu pedido de perdão a si mesmo.

Cama

A relação na cama era como um jogo de futebol americano em que se abraçavam intensamente, mas não se permitiam ultrapassar nenhuma jarda de sentimento. De cenhos franzidos, olhares tortos e ansiosos, eles se esfregavam entrelaçados pelos lençois, sufocando o colchão até o gozo final, um touchdown de ambos, o toque na pele sem que ninguém admitisse a derrota para a entrega, tampouco para o amor.

terça-feira, 27 de março de 2012

Incompletude

Sentia cada vez mais necessidade das palavras exatas. Das que descrevem gestos, situações, culturas, lendas. Palavras vindas de fora dele, que caracterizem pessoas, dão vida a objetos. Para se completar como escritor. Poucas palavras que sejam quase uma imagem. E falem muito mais do que mil frases.

Porteiro

O porteiro Rogério é um mineiro simples. Fica na portaria do prédio, com TV, rádio e papeis ao lado, por trás de uma janela de vidro. Era porteiro quando o jovem morava em um apartamento de lá. Foram momentos marcantes para o rapaz. Ele namorou, assistiu a importantes filmes, leu, viu novelas, acompanhou da cama duas Copas do Mundo, chegava cansado do trabalho no jornal, refletiu e sentiu-se mais fortalecido para sair, se casar e ter filhos. Consumiu-se de esperança, que superou as dores. Anos depois, morando longe e cheio de recordações, ele ainda passa pela região. Toca a campainha do portão de ferro, sobe os degraus da entrada, rodeada por jardins suspensos, e cumprimenta o Rogério. O moço conta as novidades, quem chegou, quem partiu, como vai a senhora de óculos do 84, para onde foi aquela advogada charmosa, onde está o rapaz rebelde que prestara vestibular. No fim da conversa, ele sempre pergunta sobre seu apartamento, como se tratasse de uma pessoa. “E o 76, como ele está?” O Rogério acompanha o espírito da pergunta e emenda. “Ele está bem, nele mora um casal recém-casado”. O jovem dá um sorriso, vai embora, certo de que passou seu recado ao amigo. Nem precisou dizer "cuide bem de tudo que deixei aqui”.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Diálogos

O embate entre o judaísmo espiritualizado, reformista, e a sociedade romana ambiciosa e perversa gerou um mártir: Cristo. E frutos valiosos: os cristãos espiritualizados, que vivenciaram algo semelhante ao sofrimento dos judeus, e perderam a vida por um ideal religioso. Lentamente, o pai judaísmo, o filho cristianismo e o espírito santo de Jesus, que uniu um pouco de cada um, foram desconstruindo quase mil anos de atrocidades, mentiras e corrupção que pareciam ser eternos. Por mais longo, não há regime tirano, nem de César nem de Adriano, nem de palmeirense nem de corintiano, que prevaleça sobre seus dois maiores inimigos: o pensamento e a verdade.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Pedido

Tenha pena de mim, filho, por eu não ter o carro Tiida para levá-lo para a escola; por meu simples Gol não possuir vidro elétrico e eu ter de abrir a janela com a manivela; por ainda ser difícil pagar o aluguel; por eu não poder deixar o trabalho para acompanhá-lo no clube; por eu não conseguir lhe dar todas as camisas de futebol; por eu não ficar tranquilo quando tentam me diminuir perante você; por eu não deixar você comer bala sempre; por eu ser chato insistindo em lhe passar o que melhor tenho de mim; por instantes em que me irritei no trânsito; por eu ser apenas um homem comum tentando me manter forte. Tenha pena de mim nestes momentos, filho, para que, quando eu tiver um Tiida para levá-lo para a escola; tiver no carro um vidro elétrico e conseguir lhe dar todas as camisas de futebol, você trocar esta pena pela certeza de que me amou mesmo quando eu não lhe dei tudo isso, mas apenas o meu amor. E que me amaria se eu perdesse tudo, se um dia você acordasse e percebesse que essa riqueza material não passou de um sonho. E até se eu me tornasse um mendigo, lutando pela vida na rua, mas continuando a ser o seu pai.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Viajantes

Um avião passou por uma nuvem delicada lá na imensidão azul. Não era apenas um avião de metal com turbinas barulhentas. Era um conjunto de sonhos que viajava, iluminado pelo sol, deixando uma fumaça branca como rastro. Os sonhos, conduzidos em suas poltronas reclináveis, mudaram de direção. Primeiro desceram, depois fizeram uma suave curva para cima. As pontas da fumaça seguiram esta trajetória, como meninas em uma divertida dança. E então, de repente, eu vi o céu sorrir para mim.

terça-feira, 20 de março de 2012

Ciranda

Fui, passei o sábado e o domingo no clube, entre a piscina e a correria atrás dos filhos, me cansei de reclamar e ouvir reclamações, também cheguei a sorrir, me lembrei que era meu aniversário, comemorei com amigos e familiares numa pizzaria no shopping Iguatemi, pensei muito nas palavras a serem ditas, escritas ou escondidas, senti-me flutuando longe daqui, vinculado a este mundo apenas por um fino e firme cordão emocional que me fortalece, mudei um pouco neste dias, para melhor, para pior, ainda tenho medo dos precipícios, mas não tenho outro jeito, a não ser mergulhar em seu infinito branco, desafiador, imprevisível, que aponta para mim muito de mim mesmo, que eu não sabia existir. Estou mais velho, blog, mas voltei.