quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Respostas

A pior resposta nem sempre é o não, mas a não-resposta.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Peretz, a escola que uniu dois mundos

Por Eugenio Goussinsky
Desde que havia deixado o colégio I.L Peretz em 1974, aos cinco anos, eu nunca mais tinha entrado lá até o ano de 2007. Ou melhor: nunca entrara nessas unidades, já que fui aluno na época em que a escola ficava na Avenida Brasil, num espaço ajardinado rodeado por baixas cercas com placas de madeira.
Na minha mente de criança do Bialik, para onde me mudei, havia uma espécie de muro entre as duas instituições. Os mensageiros dessa outra realidade, para mim, eram os próprios alunos, amigos meus da Hebraica. Eles me passavam a impressão relativa aos seus universos, com olhares e um jeito de ver as coisas talvez de uma maneira mais prática.
Quantas vezes não juntamos nossos mundos em jogos na antiga quadra dos fundos do clube, percebendo que, por trás das "diferenças" escolares, batiam os corações de crianças ávidas em encontrar seus lugares? Fosse jogando futebol no campeonato, em que certa vez usamos a mesma camisa listrada do Santos, ou em qualquer outra atividade que compartilhávamos.
Nos cruzávamos em bar mitzvot, festas de primos, em ocasiões nas quais eu me aproximava de desvendar o mistério. Via cada um desses membros de outro colégio em suas intimidades. Diria que vestidos à paisana.
E no rastro desse enigma, descobri que a figura de Peretz, acima de tudo, era a de um humanista. Percebi isso no dia que em que pisei lá novamente. Um humanista, seja o poeta Bialik ou o escritor Peretz, une mundos. Como ocorreu comigo. O muro sumiu, como um encanto que permite enxergar exatamente como era o jardim do vizinho.
Adulto, revivi sensações de meus tempos de escola, ao levar meus filhos, Raul, o mais novo, e Diogo, o mais velho, de minha esposa, para lá. Enfrentávamos, ao som da Rádio Disney, o trânsito da Domingos de Morais até chegar ao portão de aço azul dos prédios da Madre Cabrini.
Os carros enfileirados, um pressionando o outro, esperavam as crianças com cara de sono se espalharem pelas calçadas rumo à entrada, preenchendo a rua de uma pressa viva.
Eu via a movimentação e, ao mesmo tempo, a interligava ao horizonte à frente, com a pracinha da Bíblia atraindo revoadas de pássaros, enquanto a manhã se espreitava pelas nuvens e pelos prédios da redondeza.
Depois, eu prosseguia o trajeto até a Rua Estado de Israel. Deixava o mais novo na entrada enfeitada por algumas plantas. Só saía assim que ele batia a mão para cumprimentar o Paulão, em um tranquilizador estalido de boas-vindas.
Muitas vezes eu fazia o trajeto de táxi com eles. E voltava a pé até o metrô Vila Mariana, pelas ruas bucólicas da região; o bosque dentro da escola; o jardim da Sena Madureira; as árvores e as casas geminadas; a banca e armazéns que dão à Capitão Macedo e à Coronel Lisboa ares interioranos.
Quando o Raul ainda frequentava o prédio do Vermelhinho, na Educação Infantil, eu o levava de mãos dadas.Subíamos as escadas, contemplando os trabalhinhos na parede, após passarmos pelo saguão geralmente enfeitado e pelos dois aquários na lateral que dava para o pátio. Então o deixava na classe, após cumprimentar a morá e receber às vezes uma reprimenda: "ele já está grandinho, pode vir sozinho".
Mas era prazeroso vê-lo subir sorridente e cativante, como se manteve até o último dia, quando, lá na quadra do Azulzinho, abraçando-o junto a mim, olhamos os balões soltos pelos pais, professores e alunos irem se diluindo pelo céu. Até não mais se encontrarem.
Não consigo mais visualizar as feições do Raulzinho dos primeiros anos da escola. Só me lembro da sensação de eu também estar voltando no tempo, ao sentir novamente o ambiente escolar acolhedor, que ajudava a me fortalecer para enfrentar a minha realidade de adulto.
Até parecia estranho eu ficar um tempinho sentado lá na entrada. Nunca faltou aquele café quentinho da garrafa térmica e as bolachas para complementarem o café da manhã. Ficava alguns minutos sorvendo aquele clima de encanto e espanto, de gestos que as crianças eternizam pela vida em seus corações, como os que vivenciei em meus tempos de menino.
Como me esquecer de quando todos acenamos com uma bandeirinha, para o Emerson Fittipaldi, vindo em um carro de bombeiros quando chegou ao Brasil, após ser campeão mundial em 1974?
Depois veio o Bialik. Para mim um foi a continuidade do outro. Uma fusão que no meu íntimo já havia sido concluída desde que o Diogo subiu aquelas escadas do Azulzinho.
Ele chegou sem conhecer ninguém. E logo misturou - aos corredores, às classes, às quadras, às rampas em zigue-zague, às salas de espera, às salas das coordenadoras - todas as mudanças de seu corpo e de seu rosto.
A mistura foi até a despedida, na adolescência, e seu 9.8 na recuperação de Geometria, quando comemorou, com seus mesmos cabelos lisos e castanhos, mas já com sua voz em transição e uma turma de amigos que cresceram como num passe de mágica.
Vou me lembrar sempre dos eventos entre pais e filhos no salão lá de cima ou na antiga sinagoga. E das danças no final, meio desajeitadas, lá na entrada. Da venda de uniformes no amplo porão, ao lado do almoxarifado e da piscina coberta, onde nascia a engrenagem da da escola.
Vou me lembrar das feiras de ciências com um toldo armado no pátio, em que no fundo havia um balcão com voluntários servindo salgados e outras guloseimas. Nessas ocasiões, era comum a correria das crianças pelas classes, esbanjando curiosidade em ver como era a escola fora do dia de aula.
Vou me lembrar da minha alegria, e do alívio, após cada reunião com as professoras, quando prevaleciam as boas notícias, cujo lado positivo era enfatizado sem que a realidade fosse perdida de vista.
Vou me lembrar dos rostos de cada pai e mãe, muitos dos quais reencontrei após o hiato da infância, já com seus filhos, dos quais também vou me lembrar.
Vou me lembrar do carinho das professoras, coordenadoras, diretores, funcionários, cada um ao seu estilo, sempre com uma dedicação terna e serena.
Vou me lembrar do parquinho, dos jabutis da horta do pátio, testemunhando em seus ritmos lentos a velocidade frenética das crianças se desenvolvendo em alarido.
Vou me lembrar do Raul olhando para trás, antes de entrar na escola para os desafios de um novo dia. E do meu olhar de incentivo, dizendo "mete a cara, filhão".
Vou me lembrar das músicas que marcavam nossas idas, da Rihanna, da Sia, da Kate Perry, do Jota Quest e clássicos dos anos 80.
Vou me lembrar de quando eu esperava o Raul na saída, do lado de dentro, observando a árvore ao lado do muro balançar no ritmo do vento e da vida. E cumprimentando seus amiguinhos que vinham, correndo desde a rampa, me perguntar quanto foi o jogo do Corinthians. O porteiro, pelo microfone, já começava a chamar um por um.
Vou me lembrar dos balões da despedida, como pessoas, separarem seus caminhos no alto. Mas com a diferença que elas, as pessoas, terão para sempre o poder de se reencontrar a qualquer momento. Sempre que puderem. Sempre que quiserem. Quando se lembrarem.
Vou me lembrar, mesmo que esse Peretz das minhas descrições tenha acabado ontem. Um outro, certamente, vai continuar em mim amanhã. Porque desde hoje estará correndo na alma de meus filhos.
E agora, vou encaixando uma emoção aqui, outra ali. Gratidão, afeto, saudade e a necessária esperança estão encontrando gradativamente os seus lugares. Tenho certeza de que, como sempre fiz em minha vida, vou dar um jeito. Já sei até qual a melhor maneira. Vou me lembrar.


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Frase

O professor sabia muito, era inteligente, bom em tudo
Exímio orador, compreensivo, de invejável conteúdo
Versado na origem da vida, conhecia religião e biosfera
Entendia o que vinha oculto, de tanto que era culto
Só não sabia explicar uma coisa, ao ouvir a velha frase
Dinheiro não é o mais importante, vale mais a profundidade
Por que me pagam tão pouco, se só falam da minha qualidade?

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Realizações

A infância serve para criarmos nossos sonhos. A maturidade, para tentar realizá-los.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Ilusões

Ele manda uma carta reclamando em público e depois fala que não busca rompimento.
Ele deixa vazar um áudio falando em assumir o lugar do outro e depois fala que era um ensaio para uma peça de teatro.
Já no lugar do outro, ele forma uma equipe só com vozeirão, terno, gravata e barba, mas fala que não tem nada contra aquela que gera os filhos.
Um dos seus projetos tira da escola o esporte e a arte, mas ele fala que admira a sensibilidade humana.
Ele gasta dinheiro em jantares de gala para pedir que gastem menos com as pessoas e fala que valoriza a saúde e a educação.
Ele escreve "Labaredas de fogo" e "lábios rubros" e fala que faz poesia.
Ele pensa que não engana os outros, enganando a si mesmo e não percebe que está se dando um golpe.

Quadra

Ela parecia um organismo à parte na escola. Mas não era. Aquela quadra, lá no fundo, era um local onde pairavam os desejos de herói das crianças que corriam por sua superfície. Nos recreios, era um cenário de sonhos.

Os meninos costumavam tomar conta do espaço. Corriam em alarido dentro de times que chegavam a ter trinta jogadores cada. E, da confusão repentina, de repente surgia a bola e ela era chutada por um predestinado que comemorava a sorte de ser o contemplado com um gol.

As meninas só podiam usá-la mais tranquilamente na Educação Física delas,  que afastava aquele avassalador trovejar de  passos dos garotos em direção ao seu templo sagrado.

Era quando, regidas pela morá (professora) Rose, as minhas escolhidas  desfilavam, para mim, seus ares de musas inspiradoras, com saques por baixo e olhares de soslaio.

O local era coberto, na parte de trás do Colégio Bialik. Ficava logo depois de um pequeno pátio, meio escuro, entre a cantina e o pátio principal.

Ligava, como uma entrada de serviço, o setor do ginásio ao do pré-primário, por uma escada de ferro que mudava de direção.

Por suas paredes de cimento, pintadas de branco, ressoava um pouco da alma de cada um. Peculiar, a quadra tinha também a missão de ser uma pausa da tensão das aulas e ao mesmo tempo um espelho do que acontecia lá.

Quando eu tinha acabado de entrar na escola, ela me ajudou a conhecer meus novos amigos, apresentando de certa maneira o futebol para mim. Me interessei, fui ver o jogo do Corinthians contra o Fluminense em 1976, com o saudoso Capita em campo, e me apaixonei para sempre.

Enquanto corria por sua superfície de concreto, toda pintada de um verde gasto, via as marca das áreas, do meio-campo e das laterais como se fossem riscadas a giz. E sua superfície verde escura, gasta, era como uma lousa de ensinamento para mim.

Nela, eram reveladas minhas esperanças em driblar. E minhas inseguranças ao errar, competindo com meus amigos nesta fase de aprendizado. Lá, por mais de 10 anos, conheci muitas lições sobre a identidade humana, inclusive a minha. Tal oráculo apontava momentos de mágoa, de graça, de altruísmo de um passe ou do egoísmo da reclamação.

Era preciso ser forte para vencer naquela quadra: e vencer, no caso, era conhecer a própria essência, independentemente dos gols sofridos ou das discussões da infância.

E o esporte foi se tornando tão importante que, a cada dia, a aula de Educação Física era a mais esperada. E quando o professor Abelardo, um uruguaio de olhar sério e cabelos enrolados, que educava com poucas palavras, e depois do professor Ricardo, o típico boa gente, diziam que iria ter futebol, então...

E quando me sentia um pouco isolado e já cansado de ter de seguir regras e aguentar a rotina imposta desde cedo, que somos obrigados a seguir, ousava entrar sozinho na quadra. Geralmente, todos já tinham ido embora.

Sentava em um canto e só ficava escutando aquele silêncio de fundo de mar. Também andava pelas linhas, observava cada ângulo adormecido, lembrando-me de como há instantes o agito preenchia aquelas entranhas agora vazias.

Escutava apenas os sons lá de fora. Buzinadas de carro, brecadas, um grito de uma criança, o ritmo pulsante do dia chegavam um tanto abafados. Protegidos.  Até a luz do sol podia ser vista por frestas. Que também deixavam passar as gotas de chuva. E a cada gesto meu, ela respondia. Pisava mais forte, o som aumentava.

Se eu sussurrava, ouvia sua resposta imediata ecoar, generosa, alcançando e ampliando minha voz. Refletindo com transparência a minha, a nossa, realidade solitária.

Se gritasse, ela acolhia o berro e ia diminuindo os ecos até eles cessarem, contidos como círculos em um lago ou um soluçar que se rende ao alívio. Ela era bondosa e implacável. Quando adulto, a revi de passagem e fiquei impressionado com suas dimensões, tão menores do que imaginava. E mais uma vez ela me apontou uma verdade: a infância passara.

No fundo, em nossas conversas daqueles tempos sem palavras, ela filtrava tudo para mim e dizia: "Olha, a vida lá fora continua, só lhe resta entrar no jogo e fazer a sua parte. Simbolizo o palco dos homens. Quando precisar, estarei aqui, pode se sentar e descansar no meu silêncio." A quadra da escola já não existe mais, no concreto. Mas o seu conselho, ecoa em mim até hoje.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Rina

Meu pai me levava todos os dias para a escola. Íamos de carro, passando por ruas arborizadas, com algumas casas imponentes, ao estilo inglês, outras mais simples, ajardinadas, mas sempre com uma identidade que dava beleza ao trajeto. Era uma preparação bucólica para as aulas.
Ao chegar, lá estava a morá (em hebraico, professora) Rina, a coordenadora. Já andava pela rampa coberta, que ligava a entrada ao pátio, ladeada de um belo mosaico colorido de pedras, com uma imagem dos Macabeus. Ficava por lá para organizar as filas dos alunos no hino. Iniciava a rotina bem antes das 7h10, quando o sinal estridente batia.
Às vezes a rigidez de seu grito agudo, com timbre do leste europeu, ressoava pelo pátio. Eu muitas vezes era o alvo. Sempre com brincadeirinhas para preencher algum temor diante das obrigações de um aluno.
Havia também as broncas durante os ensaios para o seder de Pessach, lá no salão do Colégio Bialik, embaixo da sede administrativa. O nome Bialik era uma homenagem a um importante poeta judeu do leste europeu no século XIX.
No dia-a-dia, era intrigante descer aquelas escadas do salão, passar por uma cortina e adentrar naquele local meio escondido, amadeirado, com um amplo palco ao fundo. Muitas vezes, no recreio, jogávamos futebol de meia naquele piso liso de tábuas.
Na parede ao lado da escada de entrada do salão ficava uma portinha que dava para o refeitório. Era possível também entrar pela escada, pelo lado da área administrativa. Naquele refeitório de azulejos brancos, funcionárias como a Ana, de óculos e cabelos ondulados, e a Conça, senhora negra, volumosa e muito simpática, serviam as crianças.
A garotada, em balbúrdia, sempre aprontava alguma: uma guerra de comida que sujava as paredes, para desespero justificado delas, ou a bagunça nas longas mesas perfiladas.
Nos ensaios de Pessach, a morá Rina separava os grupos. Comandava os preparativos para a cerimônia que contaria com a presença dos pais, em noite especiais. Todos os alunos, em cada nível respectivo de ensino, tinham o direito de participar.
Permaneciam, entre cochichos e risadinhas, sentados diante de amplas mesas espalhadas pelo salão, com pratinhos preenchidos com ingredientes tipo matzá e copinhos de suco de uva no lugar do vinho. Cada um era incluído. Nem que fosse com uma pequena frase.
Ninguém compreendia bem tamanha dedicação. Muitos até se queixavam do jeito um pouco bravo dela. Sem se darem conta da responsabilidade que ela atribuía a si mesma. Queria passar uma mensagem judaica e educativa para um punhado de alunos ainda em busca de referências, no processo de crescimento.
A passagem que mais a emocionava, e que tinha a ver com seus objetivos renascidos, era quando alguém recitava o poema iniciado com "Bem aventurada seja a chispa, que ardeu e acendeu labaredas"...Todo aquele ritual era algo que ela prezava, um sentido comunitário cuja importância conheceu em seus tempos difíceis da Romênia, onde nasceu.
Outro momento que a tocava eram as aulas de Shirim (músicas), ministradas por seu filho, o dócil moré Felipe, com um acordeão. Durante o coro de crianças cantando composições judaicas, os olhos azuis da morá Rina brilhavam um pouco mais. E contrastavam com seus cabelos lisos e ruivos.
Ela se sentia plena, como se estivesse desfazendo naquele colégio o novelo de seu passado de perseguições e tudo que muitos judeus conhecem em suas famílias.
Ficaria linhas e linhas contando episódios que vivenciei com a morá Rina. O dia em que ela chorou por eu ter brincado, involuntariamente, sobre a peça de teatro que montávamos...O momento em que ela chorou quando cantei em meu Bar-Mitzvá. O resultado seria o mesmo.
Triste ou feliz, séria ou alegre, brava ou calma, o seu rio de sentimentos canalizava sempre para a minha convicção de que ela amava o que fazia e os seus alunos. E sempre que estava comigo deixava claro que, naquele momento, aquele menino rebelde e sensível era para ela o mais importante.
Atuou lá por mais de 30 anos. Como qualquer professor, pouco falava de si. Os alunos, em suas funções naturais, mal queriam saber. Tinham outras preocupações ou afazeres.  Ela sabia. E atendia também com métodos intuitivos.
Recebia todos em sua salinha no primeiro andar do prédio principal. Eram como visitas quase familiares. Ouvia sorridente a correria pelas escadas para depois, disfarçando com estilo durão, sair pela porta reclamando do alarido em excesso.
Mesmo quando mudou a diretoria, e ela acabou encostada em um cantinho, o jeito de falar, as passadas firmes pelos corredores, que não escondiam ternura, eram uma marca da escola.
Até que as duas - a morá e depois a escola - se foram. Nem despedida houve. Nenhuma palavra, nenhum adeus. Tudo se diluiu pelos novos desafios, rotina, formatura, faculdade, carreira...distanciamento.
Um dia, porém, eu quis conferir se tinham ido mesmo, passados trinta anos. Eram 7h10 da manhã quando refiz aquele trajeto, pelas casas bonitas, lembrando das conversas com meu pai. Ao chegar, depois de um trânsito bem mais pesado, não havia mais nada daquele tempo lá.
O terreno da escola fora vendido para um empreendimento imobiliário de luxo. Onde ficava o salão, tinha uma piscina. A rampa lateral deu lugar a um canteiro de palmeiras. O mosaico de Macabeus ruiu para a colocação de um muro bege. O refeitório abrigava a garagem.
Mas posso até dizer que, entre o canto dos passarinhos e o barulho da fonte de água da entrada, ouvi aquele sotaque. Olhei com a esperança de ver algo da antiga construção. Uma lâmpada incandescente, um distintivo do velho candelabro (símbolo do colégio), uma cadeira fora de época, uma lousa desbotada ao lado de uma mureta...Ou um fio de cabelo ruivo adormecido na calçada.
Não. Vi apenas alguns degraus de mármore. Eles terminavam em uma ampla e impessoal portaria, vigiada por três seguranças engravatados. Sei lá. Meio frustrado, meio saciado, resolvi acelerar o carro. Como fez o tempo em relação a mim, ao meu pai, à poesia do nome, aos jogos no salão, aos ensaios, ao Bialik.
Só deixei em meu rastro as palavras que escrevo agora. São a canção que fiz para a morá Rina. Além da gratidão, elas, são pelo menos, o meu consolo.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Lunático

Quem não acredita no que digo, espere um pouco, sente, cante comigo.
Quem não acredita no que falo, resista à tentação  poderosa de achar o fim no intervalo.
Quem não acredita no que vejo, espere para ver muito além do seu ou do meu desejo.
Quem não acredita no que escuto, ouça o som interior pulsando em lugar do mundo fajuto.
Quem não acredita no que penso, deixe de pensar somente no padrão imposto do consenso.
Quem não acredita no que escrevo, destrua meus textos, me aponte com o dedo em riste o que lhe devo.
Quem não acredita no que sonho, crie seu horizonte, rebata com amor os versos que componho.
Quem não acredita no que acredito, perdoe minha ousadia, me diga seu adeus, esqueça o que eu digo, o que falo, o que vejo, o que escuto, o que penso, o que escrevo, o que sonho, o que acredito. Deixe tudo apenas para mim. E eu, a contragosto, o evito.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Enganos

Muitos enganam por pensarem demais no ouro. E se enganam por pensarem menos no outro.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Constatação

Ser amigo não necessariamente significa ter amigos.

Contradição

Ele era pobre. No entanto, tudo que dizia valia ouro.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Mutantes Dois

Tudo muda nesta vida,
O botão que vira flor
O choro que cessa cansado
O desprezo que vira clamor
A noite polvilhada de estrelas
Que acorda com o sol na janela
A tentar com atraso entretê-las
A boneca que já não tem graça
O luto se tornando lembrança
Dizendo como o tempo passa
A barba da outrora criança
O fim de semana que chega
A bela morena que dança
O título um dia impossível
A amizade levada com o vento
O homem frio e insensível
O brega antes de ser novidade
A espera que nunca termina
A ânsia da mocidade
A dor do fim de um romance
O sonho do sono no leito
Acenando com outra chance
O instante já sendo o futuro
Ajudando a curar a ferida
Do outro lado de um muro
O sibilar de uma chicotada
A fórmula do esquecimento
No longo trajeto na estrada
A palavra que é penetrante
Procurando no vago universo
O sorriso em um semblante
O silêncio de uma praça vazia
A insistência do milionário
Que nunca se satisfazia
Um arco-íris no horizonte
Unindo lados opostos
Fazendo do céu uma ponte
O rufar de um longínquo tambor
Na selva de pedra do mundo
Pedindo um pouco de amor
Tudo muda nesta vida
Uma multidão enfurecida
Máscaras que escondem rostos
O homem e sua medida
Tudo muda nesta vida
Somente uma coisa não
É o correr do tempo profundo
Soprando o carinho do mestre
Pelo menino a driblar o mundo
Nas mudanças da eternidade
Tudo que aconteceu, você verá
O que aconteceu, aconteceu
E para sempre acontecerá

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Imutável

Tudo muda nesta vida. A única coisa que não muda é o que aconteceu, você verá. O que aconteceu, aconteceu. E sempre acontecerá.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Dupla

Na escola, um dos momentos mais reconfortantes era o recreio. Ouvir o sinal e correr pelas escadas amplas do antigo prédio do Colégio Bialik simbolizava um alívio da pressão de estudar, do peso da responsabilidade. Bem que a professora Marlene um dia comentou com minha mãe, quando me viu aproveitar o último restinho do jogo na quadra coberta, lá nos fundos: "Nessa idade, um minuto vale ouro". Sempre encarei desta maneira. A espera ansiosa pelo fim da aula longa se transformava em um universo de oportunidades no instante do minuto livre, que me ensinava ainda mais do que algumas orientações dos professores. E me levava a crescer um tantinho por meio dos meus sonhos. Naqueles recreios libertos de um olhar adulto, me deparava com minhas observações infantis. Nelas, escondendo minha timidez em piadinhas com os colegas, sempre tive um certo medo do Décio e do Fabinho. Além da questão deles serem mais velhos, jogavam muito bem futebol. E quando digo jogavam bem, não é a frase vulgar dita a qualquer menino mais habilidoso. Eles para mim pareciam abençoados por uma força maior, que os movimentava em malabarismos dentro das quatro linhas. O Fabinho era um ano mais velho do que eu. E o Décio, dois. Intimidava-me o ar um tanto convencido que eles passavam, confundindo-o com minha própria insegurança de não me dar conta de que eu podia, de alguma maneira, fazer o que eles faziam. Uma vez, no campinho do jardim do Leco, primo do Décio, dei uns dois cortes nele, me senti um pouco capaz e logo sumi. Ele não. Ironizando adversidades, Décio se impunha com sua canhota mirabolante. Era algo inato. Seus movimentos com a esquerda fluíam e culminavam com um chute certeiro, que só ele sabia dar: seco, seguro, geométrico. Sua categoria já era um prolongamento do corpo. Já se misturava ao rosto de menino, um tanto magro e sardento, com cabelos levemente longos. Ele até andava um pouco na ponta dos pés para expressar sua altivez. O Fabinho, então, era pura habilidade. Jogava como se brincasse consigo mesmo, em um diálogo com sua inspiração. Desenterrava dribles incríveis com uma segurança que nem parecia ser de criança. E dessa conversa rápida, silenciosa, extraía jogadas que emergiam surpreendentes de seu íntimo, em nuances de ilusão de ótica ou truque de magia. Ele driblava nossos olhares marcando gols impressionantes pelo clube A Hebraica, com quem jogava também com o Décio e, lá, completava o trio com o ótimo ala Celsinho, hoje coordenador da equipe de futsal em que meu filho joga. Se dizem que Messi deixa a bola grudada no pé, Fabinho já fazia isso. Piadista e explosivo, se impunha diante dos fixos, como ágil pivô, barganhando com seu corpo robusto, de estatura média, e transformando a cara de menino, com olhinhos escuros, no rosto de um pequeno desbravador. Os lábios grossos, pele morena e o cabelo curto, com franjas, completavam a imagem que tanto respeito despertava nos adversários. Aquele físico tão único, conhecido em todo o meio do futsal, escondia segredos da bola, fazendo-a atender seus pedidos repentinos sem que precisasse dizer uma palavra. Passei a infância observando Décio e Fabinho jogarem, nos muros protetores da escola e dentro da muralha que ficavam minhas fragilidades. Vivia sentado na tribuna de honra de minha admiração muda. Que guardava cada lance, para sempre. Era como se eles atuassem por mim, demonstrassem, com suas personalidades fortes e seus estilos únicos, aquilo que eu gostaria - e até podia - de fazer, mas não fazia. Hoje, como futebolista frustrado, eu me reputo um Paulo Henrique Ganso que não deu certo. Um talentoso que só descobriu o talento quando teve tempo de se lembrar. Não digo que eu seria como o Décio ou o Fabinho, mas poderia fazer da minha maneira algo tão bom quanto o que eles fizeram com a deles. Eles também, vai saber o porquê, não se tornaram jogadores. Se não me tornei, aprimorei o meu amor pelo jogo com a ajuda involuntária dos dois. Aquelas jogadas do Décio e do Fabinho carregavam o encanto de uma época. Craques consagrados, como Zico ou Sócrates, não costumavam virar de letra uma bola para o outro lado da quadra como o Fabinho fez um dia. E nem Rivellino dominava sempre com a técnica e batia todas com tanta arte como o Décio fazia. Éder era fichinha perto dele. Tal qual na frase de Aldous Huxley, tudo isso me abria as portas da percepção. Ajudou-me a desenvolver minha criatividade, baseada na importância do instante, na plástica de um único toque, no detalhe que compõe a saga de uma partida, de uma vida. Na gota de talento que alimenta o orgulho e perdura pelo infinito. Assim, sempre me ative ao lance fabuloso que não percebo outros perceberem. Um toque de costas despretensioso, no meio de campo, por cima do corpo, para mim amplia horizontes. Muitos podem até achar que o jogador fez péssima partida, eu não. Por isso, em cada drible, em cada cruzamento preciso, cada tentativa ousada, minha paixão à flor da pele não admite que falem que o brasileiro já não cria. Cresci com essas vivências incrustadas, admirando o belo, retratado na ação daquelas duas figuras fundamentais da minha infância. Certamente, se mantêm entre as melhores recordações daqueles tempos, cheios de incertezas e temores. Nossa diferença de idade, inclusive, já não pesa tanto e serve para diluir o medo. Percebi essa cumplicidade quando vi uma foto do Décio, atualmente, dominando uma bola com a coxa. O Facebook também tem coisas boas. No homem já perto dos 50, me veio à mente aquele garoto, que não virou profissional - passou a trabalhar com eles como empresário - com o mesmo zelo pela técnica. Os dois foram para outras áreas porque também tinham outras habilidades. Se o deslumbramento tomou outros caminhos, estes não foram capazes de apagar tudo aquilo. Aliás, nada é. O mundo gira, as coisas passam, mas o inato nunca deixará de se manifestar, seja em um olhar, seja em uma pelada que rega a saudade, seja simplesmente na recordação diante de uma quadra de futsal. A parte invejosa do mundo é incapaz de jogar na lama todos os diamantes mais valiosos. Muitos sobram, sempre. Tornei-me um lapidador destes diamantes, não levando tão a sério as críticas amargas a este ou aquele bom jogador; a fúria contra o bom homem que cometeu uma gafe; a surdez diante de um poema profundo ou a cegueira que não vê o brilho fulgurante da intuição. Tento apenas compreender quando se esquecem do mais valioso da seresta. Na feiúra de uma cidade, a beleza do pôr do sol também emerge de seus arranha-céus. E se o cantor de restaurante cantar com arte e leveza, aplaudo, tentando compensar a sua solidão. Aqueles dois meninos fazem parte desse legado. Sei que os que só acusam ou se calam não tiveram o meu privilégio. Eles não viram Décio e Fabinho.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Despedidas

Há um momento em que as lágrimas viram sal
O mesmo da despedida do que um dia foi um casal
Dois homens conversam numa banca de jornal
Uma conversa que passa, um bate papo banal
Há situações em que tudo se resume a um instante
Um jogo cheio de história, o sorriso da amante
Na rotina de lapidar cada detalhe é determinante
Reluz e se vai etéreo, como o brilho do diamante
Ninguém consegue no mundo dizer tudo o que pensa
Acumula um monte de frases, falar não compensa
Ninguém consegue controlar aquilo que diz o tempo
É como se um menino tentasse agarrar o vento
A lua no sereno vê de cima todos os lados
Na luz prateada explodem bilhões de sonhos dourados
Que aparecem e se despedem, nas ruas e nos prados
Em todo o tipo de encontro, ao acaso e os marcados
Depois, talvez nunca mais se verão
Nem na primavera, nem no verão
E verão que a primavera dos desejos
É a mais bela solidão
No querer estar ao lado
Na vontade de falar sem poder
Na amizade que brota em olhares
Mas precisa se esconder
Querer abraçar, falar, tocar,
E nem conseguir conversar
Compromissos e conveniências
Cada um navega em seu mar
Mas uma coisa fica
E permite continuar
Para sempre insistindo
No silêncio que é amar
Em todos os dias
Entre todas as pessoas
O braço que abraça lá longe
A fala que alcança o infinito
As mãos que acariciam sem toque
Os olhos que enxergam por dentro
A memória que nunca se traduz
A continuidade de cada cumprimento
Após cada afastamento
Em todo o tempo
Em cada momento
Se chama sentimento

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Separações

Como o mundo nasceu no olhar infinito do instante, a cidade evolui no vazio espaço que vem no rastro de cada encontro desfeito. Assim, um homem se derrama em beijos na amada até que ele se veja horas depois olhando pelo vão da janela a lua inebriada de sabedoria. Solitário em suas lembranças. Procurando no ar os últimos vestígios do perfume que ainda permanece no quarto já adormecido. A lua é lúcida. Reflete em sua luz prateada os pensamentos dourados que evoluem com a brisa. Mergulhada na loucura permanente de testemunhar os fatos. Ela, a única que se pendura no céu da história para acolher a desilusão das cenas que não se repetem e insistem em negar ao homem a cada dia o sonho da eternidade. O que é a eternidade, meu rei? Ela se inspira nas florestas longínquas da infância, esta sim que nunca se acaba, se multiplicando em infindáveis oportunidades do que poderia ter sido. Ou nos mares distantes que nos levam de nós mesmos, fingindo nos carregar por viagens inesquecíveis que, no entanto, são roubadas pelos detalhes de uma maré que não permite a queda do barco no buraco sem fim do horizonte. O que é o sublime, meu pai? Ele se inspira no desejo de buscar um tesouro para além dos arco-íris, refastelando-se no som de uma sinfonia de Beethoven, surdo aos apelos da realidade que, traiçoeira, sempre busca estragar os quadros impressionistas da pureza tão procurada. O que é o amor, meu amor? Ele é a minha presença na ausência de Drummond, na ausência de um sentido maior do que ele, o caminho para tornar a insanidade menos dramática e mais amistosa, fazendo dos mares turbulentos que ela traz o próprio alimento de seus delírios legítimos. A amizade, o que é a amizade, amigo? Ela é uma criança que se mantém criança mesmo quando os adultos adulteram a sua lembrança. Nisto ela permanece intacta, apesar de esquecida nestes tempo sem lembranças, de lambanças, de lamaçais que destroem a colheita e a suavidade da manhã. Quando a gente deixa de ver alguém, sabe que não pode ser diferente. Um trabalha lá, outro cá. Um segue a trilha do campo, outro vai para o rancho. Parentes de cidades diferentes se conhecem em uma tarde ao acaso e se despedem como se rotineiro fossem os encontros. Depois, talvez nunca mais se verão. Nem na primavera, nem no verão. E verão que a primavera de seus anseios, do desejo de estar ao lado, da vontade de falar sem ter intimidade, da amizade que brota em olhares esparsos entre a gente, nos ônibus e nas estações, são apenas um sopro. Cada um na sua: o eterno, o sublime, o amor e a amizade andam de mãos dadas apenas às vezes. Despedem-se para se reverem sabe-se lá quando, na graça da vida sem graça feita de pessoas e os seus compromissos. Dirigem cada um deles, em separado, longe da ficção. Como todos nós nascemos, desgrudados. O que nos liga, apenas, é o ser e saber. Saber como está a pessoa lá longe, sem poder nada fazer. Querer abraçar, falar, tocar, mas não conseguir, por causa da distância e do descompasso. Nos une ansiar por conversar sem superar a timidez das convenções. Sem dizer olá e já solfejar o adeus, mantendo o interesse aquecido pela palavra não dita. Ninguém fica amigo de uma hora para a outra, apesar de nascermos irmãos. Resta, em silêncio, apenas torcer pelo bem do outro. Em meio a passadas objetivas que buscam vencer as horas, inutilmente. Enquanto isso... todos os dias, entre todas as pessoas, o braço que abraça lá longe, a fala que alcança o inalcançável, as mãos que acariciam sem toque, os olhos que não desgrudam do invisível, até o fim do mundo, a memória que nunca se traduz, a continuidade do cumprimento após o afastamento, o despertar de cada esquecimento, em cada momento, se chama sentimento.

Ele

De tanto buscar o reconhecimento nos outros, ele já não se reconhecia mais.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Democratas

Hoje na banca ouvi uma conversa entre dois empresários. Um deles, de camisa social moderna, careca, óculos redondinhos, falava com um ar magnânimo, passando a impressão de que era um democrata querendo o bem do Brasil.
Analisava em tom de sobriedade o discurso do Meirelles e ponderou em estilo solene sobre a possibilidade de perda de direitos trabalhistas, de forma "equilibrada" para os empresários conseguirem levar esta nação à frente.
O ar magnânimo deste senhor era emblemático. Era o ar da "democracia que me interessa." Na "democracia que me interessa" o outro não existe. Vá ele se colocar no lugar do trabalhador que está ameaçado de perder seus direitos e que geralmente tem muito mais dificuldades do que os empresários.
Essa é a tal democracia que o Brasil construiu. Essa democracia é aquela que funciona bem nos jogos de futebol, quando o torcedor não fala nada ao ver o juiz roubar para o seu time. E urra por seus ditos direitos quando vê o juiz marcar uma falta correta contra o seu time.
Se a sua equipe vencer, ele até terá condições de demonstrar a magnanimidade conveniente e dizer a um torcedor adversário "fica para outra". Mas se perder...E se perder na outra...
Voltando ao tal empresário, fiquei com vontade de lhe dizer as rimas que tinha feito em um texto que escrevi para o R7, com o sufixo "ismo". Poderia desferir uma série de palavras que se encaixam, como nazismo, fascismo, bairrismo, oportunismo...
Mas preferi, em forma de escrita, desabafar agora com rimas em "ão", que aí vão sobre a nossa situação, ao estilo de intervenção. Percebi em última instância um aspecto tão nítido que estamos vivendo e que surgiu na minha consciência de forma clara.
É a situação de um cinismo que tenta esconder que houve um saque. Os magnânimos são saqueadores, é isso! Roubam como gângsteres na Nova York do século 19, na base da lei do xerife. Ou na Inglaterra pobre e opressiva das crianças sofridas de Charles Dickens. Roubam como empresários que sonegam nos escaninhos da madrugada para exaltarem uma falsa moralidade à luz do dia. E são tantos. E fazem isso há tanto tempo. E se dizem tão democratas...
Mas vamos ao que interessa, a rima em "ão". Houve um roubo da eleição, da lei uma usurpação, um saque à Constituição, um assalto à população, que perdeu a percepção. Houve o fim da investigação, o término da delação. E um momento sem ação. Antes, no Brasil havia corrupção. Hoje, o Brasil é a corrupção.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Trabalhador

Ele ficou bravo com a professora de canto, toda pedante, quando ela pediu uma fortuna para lhe dar aula. Ousada, ainda disse que aos sábados ela podia fazer um descontinho. Justo o dia que ele guarda para se dedicar ao filho. "Ô professora! Durante a semana dá para eu cuidar do meu canto. No sábado, eu cuido do meu encanto".

domingo, 8 de maio de 2016

Caminhos

Tudo começou em um momento de lirismo
Repentinamente se viu diante de seu humanismo 
Despertou em susto, como no sonambulismo
Saiu na rua e viu nos rostos o reducionismo 
De olhos fatigados de tanto egoísmo
Da vida ensimesmada, no ritmo do urbanismo
Do ser que é mesmo um nada no existencialismo
Das palavras nas entrelinhas do estruturalismo
E a moça de batom só pensa no feminismo
O jovem ambicioso é puro pragmatismo
Com i-pod na mão, tecla o cabotinismo
Desprezando o pedinte, joia do marxismo
Então pensou no pai, na luta, no idealismo
Dissolvido pelo mundo, cheio de realismo
Seu irmão se isolou levando o pessimismo
A discordar da mãe, apegada ao otimismo
A lembrança do diretor, remetia a um hino ao fascismo
Que ofendia seu avô, refugiado do nazismo
Ah, o amor o iludiu, em puro romantismo
O homem não era o centro como no Iluminismo
Era apenas o velho no bar, afogado no alcoolismo
Um grito assustado de Munch, em seu expressionismo
Regado a bebida pelo dono, cheio de cinismo
Típico de madame alienada, apoiada no consumismo
A ofender o religioso, com todo o materialismo
O mesmo do bon vivant, acrescido de epicurismo
Na engrenagem social, repleta de fanatismo
Rótulos se propagam, com muito dinamismo
O psiquiatra só quer saber do seu psiquismo
Sem perceber seu potencial de fazer malabarismo
Ou pelo menos deveria, para deixar o radicalismo
Sou isto ou aquilo, socialismo ou capitalismo
Sem completar um ao outro, por falso moralismo
Como o pior ditador combate o ativismo
Sem pontes, nem horizontes, excesso de antagonismo
Aprofunda entre a gente, um imenso vazio, o abismo

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Epiléptico

Ele falava com uma amiga sobre epilepsia. E lhe veio de roldão a cena que viu, quando criança, de um homem caindo em ataque, ao lado da velha garagem de sua casa no Itaim. O menino não sabia o que fazer. Não lembra se o senhor, um pedreiro corpulento que trabalhava na reforma dos muros e do jardim da frente, foi de pronto atendido e quem o ajudou a se levantar. Era bigodudo e tinha um cabelo volumoso, embranquecido pelo tempo e pelo trabalho duro. Naquela época não havia tanto remédio. Nem se ouvia falar de carbamazepina (Tegretol) e valproato de sódio (Depakene, Valpakine). Sentiu compaixão pelo homem, pelo menino assustado naquele momento, por dramas que se transformam em reminiscências e ficam banalizados pelo passar dos anos. Também da sua mãe, ansiosa por ver a casa reformada. E, na tentativa de reformar as coisas para melhor, inclusive seu mundo, ela teve, no fim, de ajudar a cuidar do pedreiro convulsionado. Arranjou cadeira para ele sentar e, entre idas e vindas da atônita empregada, lhe deu um copo de água com açúcar. Recebeu um obrigado longínquo, mas que ainda hoje, soluçando bem de leve lá de algum lugar, soa desnorteado. Titubeante entre o eterno e o instantâneo, nesta obra que se reforma todos os dias.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Sinistros

No nazismo, os judeus também foram discriminados por meio de decretos aprovados pelo Parlamento. Todas as perseguições seguiam absolutamente o rigor da lei. Passavam por deputados, por juristas renomados e eram sancionadas pelo presidente. O racismo, na época, era constitucional. E o cinismo, agora no Brasil, também é.

Ambição

Ele é bondoso, correto, inteligente, gentil, honesto, generoso e ético. Mas lhe falta a ambição. Soa mal? Não, se ele é bondoso, correto, gentil, inteligente, honesto, generoso e ético.

Golpe

Temer tem o nome fortemente vinculado a investigações da Lava Jato. Assinou decretos das ditas pedaladas fiscais. Conversa com Aécio, derrotado nas eleições, por fatias de poder. Tanta sordidez, tanta ausência de valores não podem ser confundidos com notícia. A notícia é o golpe para conquistar a presidência do Brasil. E todos os jornais que estampam manchetes "neutras" sem denunciar tanto cinismo são, na verdade, coniventes com tamanha insensatez.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Manhãs

Há sempre um momento em que da escuridão brota o fiapo de luz. No silêncio do horizonte, a manhã surge em um ar campestre. Mesmo na cidade. Em seguida, pios distantes dos pássaros madrugadores vão se avolumando até o resplandecer de uma sinfonia. Junto com eles, mais do que antigamente, o ronco dos carros. Eles chegam cada vez mais cedo. E se misturam ao som da natureza, impondo-se a ele, sobrepondo a pressa à calmaria do passar natural do tempo. Cada manhã surge como um milagre e os carros se esquecem disso. Mecânicos, cruzam a avenida insensíveis à transformação ao seu redor, quando riscas alaranjadas dão contornos coloridos às arvores, balançadas pela brisa que baila invisível. E o canto se avoluma. Em luta inglória, porém, é abafado pelas buzinas. A se multiplicarem, como se fossem gritos por um lugar ao sol. Mas o sol está ali, gente! Logo ali, evoluindo lentamente, acima de tudo. A acariciar com um toque de calor os rostos que xingam, que reclamam, que se maquiam adoentados por algo que desconhecem, mas do qual não conseguem se livrar. O sol ficará lá por horas, dando a chance de ser contemplado. Em vão. Até se apagar, imponente e conformado, em dança com o anoitecer, substituído pelo véu negro pontilhado de estrelas, onde se pendura a lua. O cenário continuará em olvido enquanto todos dormem. Sonham, muitas vezes sonhos recônditos, diluídos diante do espelho no dia seguinte. E eles entrarão engravatados nos carros, cortarão a cidade ensandecidos, imperceptivelmente tristes, numa tristeza que, diferentemente da manhã, não quer se transformar. Mas a manhã, sabe-se lá até quando, estará lá, surgindo do milagroso parto da natureza. Em brandos movimentos, até que um dia o homem finalmente lhe dê a devida atenção. Ela então mostrará seus braços abertos de luz, desenhando em infinitas dimensões a amplitude da vida. Colorindo o sorriso que explodirá com a revelação de seu nascimento. Perfumando o aroma do orvalho enfumaçado. Escutando a voz do homem se misturar ao canto dos pássaros, em um balbucio que diminuirá o urro ensurdecedor dos motores. E do balbucio ouvirá, em nome de todas as manhãs, ecoar o inesperado e surpreso cumprimento, que ela - ou elas - pacientemente desejou receber: Bom dia, felicidade.

domingo, 24 de abril de 2016

Filho

Quando o menino saiu do vestiário, estava mínimo dentro do uniforme tamanho 8. A camisa mais parecia uma camisola. Veio lá do outro lado da quadra e passou pelo pai sorrindo tanto que dava para ver, desde longe, o espaço dos dentinhos que já caíram. Quase tropeçando no short largo, olhou com aqueles olhinhos reluzentes de traquinagens e vibrou: "O Dodô não me deu a 10 mas deu a 11!". Uma mensagem que mostrava que, de tudo, sempre havia o lado positivo. Afinal, se a 10 era sempre a do melhor do time, a 11 era a do Neymar, o melhor da seleção. O pai ficou nas arquibancadas atrás da quadra de futsal, apertado bem no canto, ao lado de outros pais entusiasmados. O técnico, o tal Dodô, fez um natural rodízio, iniciando o jogo (com três tempos) com um time em que o seu filho não estava. A partida ficou truncada, não saía quase nada: nem chute, nem gol. No segundo tempo, a mesma coisa. Ele viu o menino no banco e, daquela distância, brilhavam o sorriso e até algumas brincadeiras. Então ele se lembrou de seus tempos de menino, quando, muitas vezes, sentia que sua habilidade (muito grande, por sinal) não era valorizada pelos muitos treinadores, talvez em função de sua timidez. Um dia, ficou envergonhado no banco, contra o Banespa, vendo o seu pai e sua mãe na torcida. Nem sorriu, nem brincou, nem mostrou seu sorriso todo banguela, que já nem lembra se tinha. Apaixonou-se por futebol como uma espécie de salvação. Foi no esporte que ele encontrou sua identidade e, tornando-se corintiano, em 1976, após o gol do Ruço contra o Fluminense, descobriu uma maneira de mostrar algo que tinha de bom. E passou a amar a bola mais do que qualquer um amava, muito antes de o ato de torcer se tornar uma forma de status e um modismo, dentro de um contexto que, décadas depois, passou a misturar futebol com posse e consumo. Ganhou fama eterna de ser uma enciclopédia. Mas, nem mesmo a paixão, nem seu talento, nem o seu domínio eram suficientes para tirá-lo do banco no pré-mirim. Não importava. Era fascinado pelo jogo. Às vezes entrava em jogos, fazia belas jogadas, como a do gol contra o Corinthians, no Tênis Clube, ou o lançamento por cobertura genial contra o mesmo Banespa, que gerou o gol de sem-pulo do time. Não importava, sentia-se fadado a voltar à reserva. Na torcida, o gol do Falcão foi o que mais comemorou na vida, quando o volante empatou aquele jogo contra a Itália, na Copa de 1982. Ninguém nunca comemorou um gol como ele, o menino. Saiu pelo jardim em disparada, gritando alucinadamente quando chegou ao portão. Até tonto ficou. Ninguém nunca amou o jogo como ele, mesmo quando era traído por uma derrota inesperada, como naquela Copa. O futebol, como um todo, nunca o traiu. Naqueles tempos ele não entendia porque tanta obstinação. Apenas a seguia, com intuição e devoção. Aos poucos, foi percebendo a questão da identidade, foi vendo suas lacunas ao olhar para a infância. E o futebol foi ficando em algum lugar dentro dele, meio que sufocado pelos berros artificiais de muitos que decidiram gostar de futebol e do esporte midiático que se tornara um produto. Teve a impressão de que essa febre diluiu sua paixão. Tantos jogos, tantas transmissões, tantos torcedores emergentes, tantos conhecedores...Até mesmo os pais ao seu lado, enquanto observava a alegria do filho, pareciam não vê-lo, não perceber a intimidade que ele tinha com a bola. Pareciam estar mais interessados em um universo ensimesmado do que no apego a um ideal esportivo ou a uma tentativa de comunicação com o mundo. Até que o seu menino entrou, ufa, no terceiro tempo daquele teimoso 0 x 0. Como nos vídeos daqueles pequenos craques, suas perninhas cobertas pelo calção, na primeira jogada, deram um corte no zagueirinho e depois outro para, em um instante, mudar a história da partida. Chutou no ângulo e fez 1 x 0. Um grito vibrante ressoou no ginásio enquanto o garotinho, de mãos abertas, corria em celebração tal qual a miniatura de um jogador. Sorrindo, é claro. Já o pai, lá de trás, urrava de emoção naquele que certamente foi o gol que mais comemorou em sua vida. Algo renasceu unindo passado e presente. Ele amava o futebol para se sentir alguém. Sabe por que mais do que todos? É que, quando criança, ele sempre amou o futebol como se fosse o filho que ele ainda não tinha. E naquele dia, então, ele se sentiu um pai titular. Saiu, enfim, do banco de reservas.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Amigo

Eis que o vejo andando lentamente
Naquela mesma esquina da cidade
Onde tomávamos cerveja na juventude
Olhando as moças circularem livremente

Falávamos da vida, dos perigos e esperanças
Você mostrava no olhar a sua criança
Em busca de compreensão para tanta aflição
Sem muito tempo para ouvir em suas andanças

E eu bebia meus goles de idealismo
Também menino um sonho acalentava
De um dia ver toda aquela gente
Acordar do pesadelo do egoísmo

Então nós nos perdemos no caminho
Seguindo o mesmo empirismo do destino
E na trilha do passado ao presente
Entendi que o ser sempre anda sozinho

Você está velho e percorre a mesma esquina
De sandália, camisa solta e pele flácida
Passos lentos sem sair da nossa origem
E um olhar cavo que ainda se fascina

Lá de longe o observo no velho bar
Velhos gestos e me lembro como hoje
Não converso, não o chamo, só percebo
Sua insistência sempre pronto a indagar

Como fazer para conseguir sempre vencer
Como jogar sem nunca se decepcionar
Eu o amava, meu amigo, pelo que você era
E também pelo que deveria, e poderia, ser

domingo, 3 de abril de 2016

Melodias

Ela sempre vinha lhe sussurrar bom dia
Com sono na cama, do rádio-relógio ouvia
Espalhar-se pela casa o segredo da melodia
Que o fazia pensar em tudo que queria
E ter a impressão de que tudo podia
Instantes de encanto, na manhã que se abria
Pelo acúmulo das épocas, lembranças trazia
A caminho da escola, a cidade reluzia
Fosse I Want to Break Free ou a Gal da Bahia
Quando corre agora, as vozes vêm em mente
A trilha do que passou e de tudo à sua frente
A canção do passado na emoção do presente
Tudo volta em um sopro, reaparece de repente
Ele corre pela rua, olha o céu onipotente
Um mistério infinito, um ouvinte e bom amigo
Quadrante de onde revê o menino atrás de abrigo
Envolvido por acordes, sonhando com algo antigo
A se acalmar no ipod, cantando apenas consigo
No som de Journey e de Asia, liberdade sem perigo
Deitado na cama ouvia, da sala um som soberano
A mãe conversava com a noite dedilhando ao piano
E vem Play de Game Tonight, ele sabe onde ir
Entra em cena o escudo que não o deixa se ferir
Em True era herói de cinema, valorizado a intuir
Sua força retraída, convencendo-o a sair
Em busca do que queria, do direito de existir
Até a namorada sonhada ele podia seduzir
Flashbacks que ele sabe de cor, Don't you love me any more
E ele corre no tempo, na manhã de suave vento
Folhas caem ao relento e navegam no cimento
O hoje também envolve, Every Breaking Wave é sentimento
Vislumbra do sofá as estrelas, entra em cada apartamento
Percorre os rastros do mundo, pelas luzes do firmamento
Boa voz, bons ouvidos, bons fluidos, o divino e o perfeito
Na memória e na esperança, que não morrem nem no leito
Enquanto estiver em seu peito, o enleio terá efeito
De libertá-lo por campos e prados, de sentir-se o eleito
Onde quer que possa estar na hora em que partir
Será novamente o menino querendo se exibir
Estará vivo, feliz e pulsante, na teimosia em resistir
Se tiver o ar pra respirar e uma música para ouvir

segunda-feira, 21 de março de 2016

Ganho

Quando menino, o seu ideal era provar a si mesmo que toda gente era boa. Adulto, ele já se satisfaz com a conclusão de que pelo menos nem toda a gente é má.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Aceno

Respiro o ar da cidade
Na quarta-feira sobre o viaduto
Lá embaixo os carros passam
Eu olho as árvores, um luxo
O sol resplandece nos prédios
Como meu amor em mim
De manhã se despediu
Com perfume de jasmim
E o aroma ficou no meu corpo
Enquanto vago por meu destino
Será isso um desatino?
Lembrar já é sopro divino
Um vento que vem do horizonte
Lá na serra da Cantareira
Por trás da fumaça cinzenta
Vejo rios e uma cachoeira
Vou andando pelo mundo
Esqueci quem me despreza
No semblante de quem passa
Um desejo, uma reza
O farol fecha, dou um tempo
Ouço a brecada, um momento
Crianças filhas de mendigos
Brincam em busca de um alento
Na balbúrdia um sentimento
No coração uma mensagem
Do amor que me acena
E me faz seguir viagem

terça-feira, 8 de março de 2016

Imagem

De novo, o metrô. A linha verde estava esvaziada. De pé, sentia o conforto do ar condicionado e seu sopro polar. O vagão em trânsito estava isolado do calor que torrava a cidade. Era como se viajássemos em um simulador, pelo tempo e pelo espaço. Vejo então meu reflexo surgir no vidro da porta automática. Passeio em velocidade, diante da imagem olhando em minha direção. O túnel escuro dá contornos verdadeiros àquela forma que se movimenta do lado de fora. Também com o braço direito erguido, a segurar a barra de ferro. Penso que estou diante de minha alma, sorrindo um sorriso irônico. Ouço por telepatia a pergunta: quem é você? Em transmutação quântica, ela chega aos meus ouvidos: quem sou eu? Até que estou bem. Penteado, cara limpa, bermuda esportiva e camisa moderna. Revigorado com a corrida pelas ruas da Bela Vista, olhando o sol se espraiar por entre nuvens e edifícios. Um retrato próprio nesta data: 7 de março de 2016. Seguro uma mochila que vai balançando durante o diálogo silencioso. Paraíso, Ana Rosa, Chácara Klabin...Permanecemos nos encarando, em olhares de amor conflituoso, até a chegada à estação. A porta se abre. Eu saio. Em busca de respostas. Para dentro de mim mesmo.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Espectros

Na velhice a gente é espectro do que a gente foi. Na infância a gente é espectro do que a gente vai ser. De espectro em espectro, a gente é.

Pedestre

Corre, corre, lá vem o carro
Corre, corre, sem parar
Corre, corre, ele vem de longe
Corre, corre, a acelerar
Corre, corre, você tá na faixa
Corre, corre, sem tropeçar
Corre, corre, não vá atrapalhar
Corre, corre, ele vai te atropelar

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Subterrâneo

Dois corpos não ocupam
O mesmo lugar no espaço
A não ser que seja
Em ato de amor ou abraço
De resto viajam lado a lado
Muitas vezes a escutar
O coração alheio que bate sem parar
A locomotiva no ritmo do viajante
O apressado reclama da lentidão
O desencanado se sente num avião
Cada um vai no seu tempo
Exilado em seu momento
À espera da estação
Instantes de reflexão
Solitários, igualitários
Quânticos, imaginários
Que mudam itinerários
Desenham um destino
Se por lá tiver alguém
Lendo Fernando Sabino
Desinteressado até da etiqueta
No mundo em trânsito, o executivo e o poeta
E o homem com roupa do estacionamento
Em frente a um engravatado, vaidoso e ciumento
Do lado de um sem-teto à procura de sustento
Na frente da enfermeira cansada de ouvir lamento
Então vem a brecada e todos vão e vem
Até que alguém pergunta o que houve com o trem
A voz do alto-falante não convence ninguém
Que papo é esse de reparo, cheio de nhém-nhém-nhém?
Que o povo tem de aceitar com pose de formal
Tudo que é argumento, até o mais banal
Não tem regras de etiqueta mas sim de compostura
Um silêncio que reprime beirando a tortura
Ninguém se rebela, ninguém dá um grito
A realidade afinal é mais forte
Pra quê arranjar atrito?
Viagem nas entranhas das ruas
Em que faces desconhecidas
Parecem estar nuas
Inspiram camaradagem
Enviam alguma mensagem
Até a porta se abrir
E a senhora na multidão se diluir
Já o estudante, de olho fechado
Não vê a moça que teria amado
Ela fica bem distante
Da serpente itinerante
Na velocidade do vento
Carregando sentimentos
Lembranças e pensamentos
Em flashes de esquecimento
Em pleno movimento
No túnel, lá dentro
Paira um universo de nuances
Vidas se cruzam em relances
Amizades surgem aos milhares
Sem palavras, apenas olhares
Sem continuidade, mas milenares
Por submundos contemporâneos
Homens e seus espectros espontâneos
Estrangeiros ou conterrâneos
Eternos e instantâneos
Interligados por estações
Os passageiros e as soluções
No caminho de sensações
Às vezes, urgghhh, de forma estática
Mas sempre democrática
Desafiando a filosofia socrática
Tornando a física caduca
Quando o pessoal se cutuca
Na rotina um tanto maluca
Ocupando o mesmo lugar
No espaço e na muvuca
Dia a dia, passo a passo
Pelo menos a convivência
Na falta de um abraço
Na procura de um afeto
Pelos trilhos da jornada
Sem saída nem chegada

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Desarmadas

Duas moças conversavam na mesa da doceira. Roupas modernas elegantes, se diferenciavam não só pela tinta loira de uma em relação ao castanho escuro dos cabelos longos da outra. Debatiam, com classe, sobre ideologias e sistemas de governo. Entre um ecláir e um café, a loira defendia arduamente o socialismo. Dizia que não há outra maneira de encontrar a justiça social, sem descambar para o individualismo faminto que o dinheiro atiça. A outra, em tom educado, não teve como bradar as vantagens da engrenagem monetarista apenas pelo lucro para não parecer desumano. Mas defendeu seu regime - não de ecláir - afirmando que o capitalismo é o ideal se tiver pagamento de impostos, produção, igualdade, emprego, inclusão, educação e saúde a toda a população. E logo em seguida, como se antecipando a uma verdade inabalável, completou. "Sem corrupção, sem corrupção. E sem ganância pelo poder". Manteve uma fala completamente desarmada, respeitando a opinião da amiga. E se protegendo de uma acusação de se render ao poder financeiro em detrimento da justiça social, um tanto constrangida com o teor humanitário da interlocutora. Somente esse desarme já é algo que o socialismo tem de bom.

Palavras

Para ele palavras falam e calam
Em um bosque encantado
Em uma caverna sem luz
Resvalam 
Se falam, são um quadro impressionista 
Van Gogh em seu retrato na solidão
Olhar impressionista, estático, introspecção
Precisa  forma de expressão
Quando as palavras, mesmo poucas,atingem essa dimensão
Mas as que calam, consentem em esconder
Aquilo que não aparece, mas que tem poder
Se ele faz poesia dizem que só é poeta
Se sair do script vira pateta
O sábio da moda é como um profeta
Não erra, não chora e não reclama
Olha eu entrando no rótulo que a palavra inflama
Se escreve prosa 
É todo prosa
Se falha, mergulha num obituário
Esquecem o que ele fez, não pagam o seu salário
Como um zagueiro que errou
Tem de ir à igreja confessar que pecou
Dizem a ele que parece cansado
Parece mesmo, mas muito mais contrariado
Imagem pouco fecunda 
De uma emoção um tanto profunda
Que não se resume ao que aparenta
Nem à avareza que enfrenta
Ele anda contra o vento
Mundo de frases sem sentimento
Palavras que chocam, tocam, evocam
Verdades que muitos deslocam e trocam
Pela festa no apê
O gosto do patê
A negociação, o acúmulo
A ilusão do infinito
Entre a vida e o túmulo
Pífias conversas de botequim
Longo desfile da manequim
As formas e farsas
Das piadas sem graça
Tudo  passa, a vida, o canto
A loucura e o acalanto
Ficam marcas de instantes 
Sugerem um mundo intrigante
Na música de Louis Armstrong
Nos ossos do vietcong
Na noite que envolve a cidade
No silêncio, na eternidade
Palavras anseiam por segurança
Vagam em becos de esperança
Aos mistérios, homens se rendem e clamam
Órfãos de resposta, se cansam
De esperar por um sentido
Daquilo que as palavras não alcançam

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Alguém

Surge um jovem de calça rasgada, olhar amarrotado
Perambula na rua, descamisado
Na calçada agacha e repousa sentado
Na mureta do prédio apoia o corpo cansado
Em plena manhã gente passa ao seu lado
Indiferente, irritada, está acostumado
Ele não liga nem se faz de rogado
O que importa se o bairro é de endinheirado?
A cracolândia tá longe, ônibus tava lotado
Barba por fazer sem banho tomado
Perdeu o sentido, vê o futuro manchado
Tristeza acende a dor do passado
Pai e mãe o largaram abandonado
Desligou-se do mundo, ficou meio pirado
Já vê que com a morte tem encontro marcado
Agora ou depois, caminho traçado
Só sobrou o bagulho que comprou fiado
É isso que o faz ficar concentrado
Atormentado, ensimesmado, descabelado, chapado, mamado
Obcecado, acha inútil o atarefado
Esqueceu que um dia foi apaixonado
Pela moça da esquina, um sonho encantado
Esqueceu-se de tudo, de que foi amado
O sonho deixou seu coração rasgado
Aprisionado, sufocado, atarantado, azarado, fissurado
As pessoas, a vida, é tudo furado
Não espera mais nada, está isolado
Tira do bolso o papel amassado
Na mão o embrulho de erva fechado
Mostra perícia de alguém preparado
Nem percebe o dia ensolarado
O sol dentro dele está ofuscado
Ele enrola em silêncio o seu baseado
Dá um trago, um pigarro, peito congestionado
Entediado, explorado, desesperado, desmiolado esse descamisado
Do sorriso abafado
Do grito calado
De plano mutilado
Acabado, apagado, vagabundo condecorado
No tempo parado, já não sabe se é
Coitado ou culpado