quinta-feira, 29 de julho de 2010

Stones

A história caminha em nuances que se assemelham à lenta transformação do dia em noite, e vice-versa. Assemelha-se à lenda de Sísifo, obrigado, por castigo, a rolar uma grande pedra morro acima para, a cada fim de jornada, vê-la retornar incoercível para o chão. Assim é a sucessão de fatos, um eterno roteiro de onde emergem novas ideias, muitas remodeladas, a reaparecerem rolantes pelos caminhos da humanidade.
Na Grécia Antiga, o ascetismo de Epicuro buscava e acreditava no homem ideal, livre de seus dramas, valorizando a amizade. Guerras se sucederam e fanaram aparentemente essas aspirações. Por estes hiatos, entretanto, a chama do bem sobreviveu com seu brilho fulvo. E já no Renascimento, a obra Paulo e Virgínia, foi um dos bastiões do retorno da crença na alma generosa do ser humano. Ilustrou os conceitos iluministas concebidos por Rousseau, na defesa do humanismo e da possibilidade de que a boa fé prevaleça sobre conflitos terrenos. Shakespeare também buscou desnudar a hipocrisia em suas obras dramáticas. No século XX, pelos anos 30, despontou o inglês Aldous Huxley, autor de livros que remetem à esperança, como A Ilha, descrevendo aspectos de uma sociedade ideal.
Utópica ou não, essa força construtiva nunca desaparece e, durante períodos desconstrutivistas, céticos e amargos, emerge para superar a ambição, o ódio e a inveja corrosiva. E, sobre o cenário enfumaçado de Sodomas e Gomorras arruinadas, esta energia vital ganha a forma de um anjo, a estender a mão aos que estão no chão, chamuscados e avariados, para que se levantem e sigam adiante, amadurecidos, arrependidos, tonificados pelo amor. Resta a nós, companheiros da era atual, em que o século XXI dobra sua primeira década melindrado pelo sensacionalismo, pelo terrorismo, pelo egoísmo tecnológico, uma alternativa: esperar que a pedra comece a rolar, aliviada, morro abaixo.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Mictório

O aluno fez pirraça com o colega. Chacoalhou-o enquanto urinava no mictório. “Vou dedar”, disse a vítima, com a camisa molhada. E foi ao diretor, na sala do andar abaixo. Todos os professores estavam reunidos quando o arteiro foi chamado. Esperava uma advertência, já ciente de que errara. Mas não. O homem, trombeteando voz grave, decretou, ao estilo da ditadura então vigente. “Tira a sua camisa agora e bota esta molhada”. O menino ficou constrangido, na frente de todos, enquanto se arrepiava com o gelado meloso em sua pele. “Você vai trazê-la limpa até quinta-feira”. O repressor poderia até achar que estava fazendo o certo. Mas para um educador, não é bom deixar mágoas. E desde então, até virar adulto, sempre que ele se lembra daquela figura autoritária, não é envolvido por um sentimento de confiança. Penetra por suas narinas o cheiro vaporoso do xixi.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Metamorfose

Há pouco tempo, os jogadores brasileiros que atuavam na Europa tinham a vantagem de incorporar à seleção a maturidade que adquiriram por lá. Chegavam equilibrados, até melhores tecnicamente. Isso mudou, após as frustrações de 2006 e 2010. No contexto novo, é bom que muitos tenham aspirado apenas os ares brasileiros, sem adquirir os vícios da rigidez tática, pela identidade do nosso futebol. Globalização em excesso faz mal.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Dionísio

Para ser artista, é preciso ter o lado direito do cérebro desenvolvido. Ele abre portas para a imaginação. As palavras navegam em rio fluente, soltas, solícitas a qualquer menção da mente que as comanda. É verdade que o comandante tem de ser um chefe com moral, estimulante, porque se elas não vislumbrarem sentido em suas existências, essas palavras, ninfas de espírito alado, voam para outras paragens, fugindo da lucidez amorosa de Apolo para se perder na loucura estéril de Dionísio, deus fragilizado por ser filho de uma mortal.
O pretenso artista cai fulminado no chão duro da razão. Desaba diante de suas mazelas não superadas, no universo aprisionante do fato concreto. Vê interrompido o canal que une suas ideias às emoções. Seu pensamento cartesiano se embriaga de solidão por campos sem fim. Ele se vê arruinado, isolado na margem esquerda cerebral, observando, do outro lado do rio, seu similar artístico desbotar como em uma pintura impressionista, até definhar por falta de inspiração. Então, em vez de músico, prosador ou poeta, ele se torna apenas jornalista.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Sid

O menino assiste televisão, deitado no sofá, bebendo Nescau batido. Assiste I-Carly, Hannah Montana, as peripécias dos irmãos Drake e Josh. Mas é eclético. Desenhos também o satisfazem, a começar pela ingenuidade curiosa do Sid, o cientista, boneco animado com cabelos esquisitos. Sid quer conhecer tudo que o cerca e faz perguntas sempre intrigantes. Uma delas, qual a medida das coisas?
Atento, o garoto sabe sobre todos os personagens, entende as histórias e começa a conhecer um pouco da astúcia humana. Percebe quando há ironia e quando a ternura prevalece. Televisão não é leitura, seria absurdo falar o contrário. De qualquer forma, propicia uma integração com o mundo. À noite, em cima da estante, ela fica desligada, calada em um canto. Parece descansar para abrir suas janelas no dia seguinte. O menino dorme tranquilo. Seu semblante angelical transparece um sorriso franco. Ele está longe, pescando e mesclando as imagens que flutuam em sua mente febril. Nelas Sid se mistura ao seu pai no escritório, à sua mãe no supermercado, a ele jogando bola no parque ensolarado. Na tela dos seus sonhos acontecem as mais lindas aventuras. Quer desenho mais criativo?

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Magnética

Nunca imaginara entrar em um aparelho de ressonância magnética. Seu coração batia acelerado, já na maca. Com o rosto preso a um protetor facial, olhou para trás e pensou em gritar de pânico. Conteve-se. Entrou no tubo, parecido a uma cápsula espacial imersa em uma sala branca. Temeu por sua claustrofobia. Mas foi se descobrindo mais forte do que ela. Os barulhos ensurdecedores não o venciam. Nem mesmo aquele de britadeira em alta potência bem ao seu ouvido. Ou aquele que parecia o de um homem fúnebre repetindo frases distorcidas, em inglês. “Go on, go on, go on...” Aos poucos, a ânsia em fugir dali deu espaço ao desejo de sair logo dali, mas vitorioso. Decidiu não se render a seus temores, atiçados pelo aparelho que bem poderia ser usado por torturadores nos regimes ditatoriais. E pensou: se venço esses sons concretos, por que não posso superar meus rugidos internos, fantasiosos? Foi como uma sessão de análise, mais dura.
Ao sair, satisfeito, parecia ter encerrado extenuante viagem, tonto e enjoado que ficou o resto da noite. No dia seguinte, no café do hospital, leu na bíblia todo o regozijo divino após ter criado o céu, a terra, os mares, os répteis, as aves, os peixes e os outros animais, sequência concluída com a moldagem do homem e da mulher. Também foram tempos de barulhos ensurdecedores: tremores, ruídos da terra se abrindo, chiados da água açoitando a pedra, o doloroso rompimento da luz com a escuridão. O criador mesmo sabia que mudanças doem. Pode até ter ficado satisfeito quando Adão e Eva cederam à tentação da serpente. Só assim puderam se multiplicar e criar ramificações. Chegou a dizer, “agora eles são como nós, conhecedores do bem e do mal...” E descansou no sétimo dia, santificando uma missão cumprida, a ressonância magnética inicial.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Desapego

Escrevo com tanto amor, com tanto amor, que me dá vontade de pegar cada letra, limpar bem o seu corpinho, colocar o mais lindo vestidinho, pentear seus cabelos, lisos, dourados, quaisquer que sejam, abraçá-la se ela for sorriso, acolhê-la se lacrimejar triste, acariciar seu rosto formado por minhas vivências, largá-la para o mundo com aperto no coração, impelido ao desapego, articulando minhas últimas recomendações, quando ela olhar para trás, já na porta, para se despedir. “Vai com Deus, filha”.

Passione

O sul da Itália é cenário da novela Passione. Lá se espalha um tapume verdejante. De plantações e divagações. Onde mãos sujas de terra arrancam legumes, verduras, frutas. Em cada uma, uma raiz. E com a testa ensopada de suor, olhos franzidos, boca fechada, quase gemendo, o homem olha o céu como uma catedral reluzente. A abóbada é entremeada por nuvens, abaixo da luz que vem do zimbório e sua cúpula solar. Os campos à sua frente se abrem como fachada para o vento. As paredes são as montanhas. À noite, duas estrelas são o limite imaginário das torres ameiadas. Uma sequência de árvores se impõe como o átrio. A capela fica no leito. Um pastor observa o rebanho esparramado, que bebe a água fresca do rio. A água benta do rio.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Frase

Sentia vontade de desabafar com uma frase de gênio. Aquela que abarca um universo em cinco ou seis palavras. Aquela que resolve dilemas, abre novos campos de imaginação. Aquela que só os sábios sopram em golpes de inspiração. Aquela cheia de simplicidade a umedecer as cinzas inférteis da frustração. Aquela que levanta o espírito rumo a novas tentativas. Aquela que, em forma de consolo, ouvia de sua mãe quando criança. Aquela que embalava os ensinamentos de seu pai nas lições antes de dormir. Aquelas teorias em forma de balbucio de seu filho, quando este assiste a um desenho ou vê um buquê de flores. Aquelas opiniões de seu outro filho quando o Brasil não estava jogando bem na Copa. Todas estas, e mais aquelas, que ouviu, leu e que consegue se lembrar em forma de intuição. “Lembrar é fácil para quem tem memória, esquecer é difícil para quem tem coração” , de Shakespeare, é daquelas que ilustram sua intenção. Sentia vontade de desabafar uma frase como aquelas que se acumulam amorfas dentro dele, e mais aquela que ele não consegue, ou melhor, não sabe dizer.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Estética

Rubem Fonseca já foi comissário de polícia. Sua função era semelhante à de um juiz de paz. Intuía com maestria a angústia dos que se envolviam na marginalidade e sabia acalmar ânimos e conflitos. Depois caminhou para a literatura. Pelo seu estilo preciso, e altamente verossímil, percebe-se que ele não mudou de ares. Continua sendo um juiz de paz, de si mesmo. Quando descreve, com invejável riqueza de detalhes, personagens complicados e relata a violência brutal com uma naturalidade banal, como se tomasse um copo d’água, não está necessariamente prestando um serviço à sociedade. Pode, pelo contrário, até alimentar, admitir erroneamente a sedução pela opressão. Atiça nos leitores, sempre vulneráveis à imponência do autor, este espectro mórbido, tão impulsionado pela mídia e tão aceito pela população.
Ele, porém, deve sair beneficiado. Parece que canaliza todo seu lado cruel, rude, selvagem, prestes a explodir, em suas criativas histórias. Seus textos são sua catarse interna. A mim assustam pela perfeição estética. Esta estrutura engana, como se nos atraísse para o abismo de um mundo vil. Sua linguagem direta conduz para um labirinto pornográfico que envolve nossa alma como se fôssemos crianças diante de um adulto bravo. E nestas situações covardes, os adultos têm sempre razão. Essa pelo menos é a impressão, muitas vezes falsa. Fico acuado ao sentir que o laureado Rubem Fonseca tem sempre razão. Tenho medo de Rubem Fonseca, um escritor bandido.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Retratos

O sol coroava a tarde fria nas montanhas de Águas de Lindóia. Enquanto a noite não chegava, no mesmo quadrante do tempo, ele passeava pelos pontos onde andou sua avó, décadas antes. Foi ao mesmo hotel no qual se hospedou então com a família. Vagou pela recepção, decorada com lustres imponentes, sofás e lembranças. Até ouviu, na sonoridade que ecoou do passado, seu pai conversando no restaurante, falando dos planos da viagem, negociando com a recepção. Era a mesma voz mansa a se perpetuar naquela atmosfera tão revigorante como as águas da região. E caminhou até a praça, que abrigava em seu interior um lago de águas calmas. Num dos bancos laterais, a avó fora retratada, numa dessas fotografias que se eternizam e se tornam símbolos de adoração familiar. O retrato trazia um olhar já cansado, sempre pacífico, a refletir um misto de conformismo e amor pela vida. As mãos, sobre as pernas cruzadas, pareciam repousar na saia de delicadas estampas. Com cabelos brancos, curtos e cuidadosamente penteados, ela emanava uma discreta alegria. Estava feliz, satisfeita por ver sua família unida lá, naquele passeio que embalava o fim de seus dias.
Ao retornar àquele local, ele fez questão de também ser retratado, com seu filho no colo, numa homenagem e símbolo de continuidade. A tarde parecia a mesma. O sol reluzia sobre as águas contidas do lago. Posicionou-se para a foto. O silêncio das vozes, do pai e da avó, foi substituído por uma brisa suave que o acariciou com o seu perfume. O menininho, ainda bebê, já dava sinais de impaciência, começava a balbuciar um choro. Percebeu-se então um pêndulo, a oscilar entre a inocência da infância, esta manhã ensolarada e impetuosa, e a sabedoria da velhice, sol errante que se desmancha no anoitecer. O novo retrato configuraria a longa jornada, integrada no corpo unificado das gerações. Por isso ficou satisfeito, como sua avó. E naquela praça, naquele dia, intuiu pela primeira vez o aroma do paraíso.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Retumbante

As olheiras escuras mostravam abatimento. A barba, estava por ser feita. Ele não conseguia mais esconder a calvície que se abria em seus cabelos encaracolados. Beirava os 50 anos e sequer tinha uma propriedade em seu nome. Quando dei três tapinhas em suas costas, dizendo-lhe até amanhã, percebi minhas mãos se aquecerem. Um calor emanava, pulsante. E atravessava a camisa de gola amassada por um dia de trabalho. Sempre fora idealista. Agora se sentia desgastado, oprimido em frente ao computador.
Os tapinhas ressoaram fundo, em um som oco que parecia um desabafo engasgado. Se eu pudesse transformar em frases aquela sonoridade que só os amigos sabem escutar, diria que seu corpo estava falando, em tom de lamento, aquilo que não conseguia comunicar em palavras. “Eu sou um homem bom, eu sou um homem bom”, foi o que ouvi.

Holanda

Fatos que se sucedem no tempo implacável. E que carregam nos seus rastros detalhes infindáveis, capazes de preencherem um livro se analisados com minúcias. Assim é a vida, assim é o futebol. A derrota do Brasil para a Holanda já é passado. Tornou-se passado assim que o juiz apitou o fim do jogo, levando as esperanças daqueles que acreditavam. É isso que dói, ter a precisa noção de que o tempo não volta atrás, que o rumo dos acontecimentos não pode ser corrigido. Tampouco lamentos conseguem reescrever a história.
Tudo aconteceu muito rápido. Antes da partida, naquela ansiedade, pensei na vitória, baseado no aprendizado das últimas derrotas. Tive a intuição de que a vivência, apenas a vivência, se imporia naquele gramado, uma espécie de savana desenfreada de jogadas e sonhos, para que tudo desse certo. Mesmo a experiência, porém, não é suficiente para nos tornarmos invulneráveis. Dunga e o nosso aguerrido time sentiram isso. Mais uma página foi virada na história das Copas.
Mas toda a determinação do grupo na sedutora África do Sul e a lição dolorosa de que os desejos às vezes teimam em não prevalecer, apesar de o dever cumprido, mostram mais uma vez que nem sempre a vitória é o mais importante. Já sinto falta das arrancadas imponentes do Lúcio, da insistência do Kaká, do olhar obcecado do Maicon, da força do Luís Fabiano, da seriedade do Robinho, que guardou seu jeito moleque nestas ocasiões em que o futebol é solene.
Já guardo com uma pontada de dor e saudade esta Copa do Mundo, para mim sempre um manancial em que navegam minhas esperanças, um campo por onde correm os meus amores, para além do meu tempo, neste livro que nada mais é do que a compilação das minhas emoções.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Lanchonete

A noite perfumada ao redor do pequeno edifício, onde ele fazia o curso, não escondia um ar melancólico trazido pelo vento. A região e os seus objetivos até que eram nobres. Esperava o início das aulas sentado na lanchonete moderna ou no barzinho de fast-food para ricos. Comia sanduíches vazios, caros, que não matavam sua fome. E quando começava a aula de escrita criativa, em salas luxuosas com sofás e almofadas, pouca coisa mudava. Havia certas madames com frases irônicas que provocavam gargalhadas. Advogados com um estilo blasé. Estudantes tentando mostrar a todo custo a própria intelectualidade. No geral buscavam esbanjar, ou arrotar, cultura de uma maneira impositiva. Até que demonstravam técnica na elaboração de textos, que, no fundo, não contavam verdades. Para ele, era como se continuasse sentado na lanchonete moderna ou no fast-food para ricos comendo os mesmos sanduíches vazios.