quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Secos

Outro dia assisti na TV um episódio em que o protagonista pergunta ao irmão: o que está acontecendo com a gente? Apertei pause, levantei para tomar uma água e a pergunta murmurou na minha mente, saindo da representação cênica para me fazer personagem real. O debate entre candidatos tem refletido a discórdia que emana de nós, nos olhares perdidos no metrô, nas fechadas bruscas, nas caras emburradas por qualquer esbarrão.  Bradamos nossos direitos, convencidos, pelo nosso ódio, de que temos motivos. Um não admite ser contrariado, o outro contraria para provocar. Então me percebi diante de homens com pincenê protetor,  parecendo calmos intelectuais, mas ensimesmados em um mundo de horrores. Vi trajes exuberantes e sorrisos desenhados nos lindos rostos femininos, lutando surdamente pela competição da estética. Onde foram parar as chaves que carregamos para fechar a caixa de Pandora? Onde está a chama de Prometeu, que deu ao homem capacidade de se harmonizar? Por Zeus! Perderam-se pelos rios que têm sumido a cada dia, na cimentação de sentimentos, se calcificando no sedimento barrento da terra ressecada e suja. Persistem em sucumbir a risos sardônicos, a farpas atiradas em tom de brincadeira pelas repartições da vida. Também podem ter se impregnado na aparência dos modernos escritórios. Não duvido que possam ter sido roubadas no balcão das democracias, ingratas por não se perceberem dádivas. Espero apenas que não tenham morrido em um leito de ambulatório, enquanto, do outro lado da cidade, médicos ensandecidos fingem ouvir seus clientes para ganhar status nos hospitais da moda. Onde é que fomos parar? É a pergunta. Levanto, todo dia, confiante de que possamos mudar: esta é a esperança. Enquanto isso, o calor lá fora torra. Atiça nossa raiva mais primitiva em busca de um refresco. A poluição invade nossos olhos, misturando-se à claridade como um fantasma de névoa. A boca seca, como se refletisse muito do que está acontecendo conosco. Tempos secos, amores presos. Do céu não cai a chuva assim como do homem não sai o choro.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Esquecimentos

Chegou com pressa à garagem, estacionou o carro e entrou correndo no elevador. Engraçada a ironia da corrida contra o tempo... Se ele tivesse sido menos apressado, teria percebido que deixara a chave do apê no veículo. Sorte que esquecera lá e não na empresa que ficava em outro bairro. Enfim, demorou mais porque precisou descer tudo de novo para apanhar a chave. Quando subiu novamente se deu conta de que, de instante em instante, já perdera um bom tempo naquele dia. Primeiro, quando, no supermercado, percebeu que tinha deixado o cartão de crédito em cima da prateleira da sala. O que havia acontecido com ele? Nunca se esquecia de nada, nem de quitar a mais irrelevante conta... Precisou pagar com débito que, por sorte, tinha deixado dentro da carteira. A senha estava na ponta da língua, ufa! Ao sair do banco, um susto. Cadê meu i-pod? Apalpou o peito, esquecendo-se de que a camisa não tinha bolso e só sentiu novo alívio quando percebeu que estava no bolso de trás da calça social. Aproveitou para se certificar de que a carteira estava no direito. E de que a chave do carro estava na pasta. Voltara para casa apenas para pegar o cartão de crédito, pois iria precisar usá-lo mais tarde. Para comprar o presente do amiguinho do filho. Mas onde estava o convite, mesmo? Recuperado o cartão, aproveitou para apanhá-lo e ter certeza do endereço. E se certificar de que o passaporte estava na gaveta da cômoda, para não ter problemas na viagem de segunda. Antes, porém, haveria eleição: o título de eleitor estava na gaveta do escritório. Já no hall, à espera do elevador, conferiu tudo: cartões, chaves, celular, óculos. Óculos? Desde quando começou a usá-los? Não se lembrava direito, talvez foi há 15 anos. Sim, houve um tempo em que olhava o mundo sem eles. Como havia um tempo em que acreditava em coisas que há muito não pensava: amizade, esperança, compaixão, RPM, a voz de menina de Nikka Costa, bailinhos, infância, o sorriso da mãe, o abraço do pai, a primeira vez em que foi ao futebol. O guardador até se admirou por ele saber decor o time do Corinthians, com apenas seis anos. Ele, ao lado do pai, ficou orgulhoso, como se recebesse um prêmio. “Nossa, uma criança, já sabe tudo isso”, disse o homem, que o fez experimentar, em meio à pobreza dele, o doce sabor da generosidade. E hoje, o que ele sabia neste mundo de chaves, i-pods e senhas secretas? Planejar um investimento perfeito em CDI, manusear os truques da planilha eletrônica, teclar com rapidez, almoçar com pressa, buscar vitórias a qualquer custo, que, no fundo tinham não tinham aquele mesmo gosto doce. A ausência de celular provocava um imenso vazio em seu íntimo. Algo dele ficara para trás, em algum lugar. Assim como a busca pelo verdadeiro aperfeiçoamento, quando ainda reconhecia para si sua timidez, suas fragilidades e seus reais desejos. Quando olhava no olho de uma pessoa sedento para extrair daquele brilho a palavra amigo. Tinha de ir rápido, estava com pressa. Mas resolveu voltar um pouco, respirar. Foi para o quarto, deixando o dia que virava frenético lá fora. Adormeceu na cama. Acordou sem saber quanto tempo dormira. Percebeu que foram algumas horas quando viu o lusco-fusco do entardecer penetrar pela janela. Escurecia. Acendeu a luz, entrou no banheiro. Lá fora já podia sentir o perfume da noite na cidade. E ouvia à distância o som de buzinas alucinadas. Tudo parecia longínquo. Os barulhos da rua, o céu que começava a se polvilhar de estrelas, a infância, os valores. Agora era ele, seu rosto cansado frente a frente com o espelho. Vivia para se lembrar de tudo. Mas se esquecera de quem era. E até das chaves, na porta do apartamento aberto.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Mudanças

Eu me achava solidário. E não me considerava egoísta. Colocava-me no topo do idealismo. Quer saber mais? Tinha certeza de que eu era mais romântico até do que o Romantismo. Até que tive um filho. Nos tempos de gravidez, eu já falava com ele, encostando meus lábios na barriga da minha esposa para lhe mandar palavras de incentivo. Desde então, fui percebendo alguma transformação no que eu achava de mim. Via a barriga das mulheres grávidas e as respeitava mais ainda do que na minha retórica anterior. Observava o atendente rude e engolia em seco. Afinal, ele era um filho de alguém que um dia o olhou com a mesma ternura que olho o meu. Sempre me achei solidário com a população pobre. Até que senti algo mais profundo do que minhas convicções superficiais indicavam. Foi quando, entrando na padaria, vi um homem e o seu menino sentados na lateral da banca de jornal, me pedindo comida. Enquanto o homem falava, o filho abraçava sua perna dobrada em V. Agarrava sua canela com devoção, divertindo-se naquela situação, mostrando que sua fome de carinho estava saciada, o que era o mais importante. Tinham alguns pacotes de pão e uns brinquedos. As pessoas também se sensibilizavam e isso parecia tranquilizá-los um pouco. Olhei o menino, despenteado, mas com olhos volumosos e brilhantes, como os do meu filho. A princípio, ele era para o seu pai algo como o meu filho é para mim. E o seu empobrecido pai era para ele um heroi legítimo. Entendi que eu não estava acima deles, como muitas vezes um discurso de pura pena pode camuflar, involuntariamente. Senti a dificuldade imensa que era para o homem estar ali, na frente do filho, sem outra opção no momento. Não era somente alguém pobre me pedindo ajuda. Era também um pai. Eu me achava solidário, até que tive um filho. Pensava saber sobre o egoísmo. Não quero com isso excluir os que não têm filhos da possibilidade de ter esta percepção. Também não me refiro à solidariedade dos que se fecham em sua família e sempre tentam levar vantagem, porque acho que isso é uma solidariedade irreal. Falo de uma sintonia que surgiu desde que minha criança nasceu, quando foi parar em meus braços e o vi abrir os olhos pela primeira vez.  Naquele momento, eu também abri os meus. Passei a ver o mundo com o olhar duplicado pelo amor que sinto por ele. Ter um filho não é apenas se solidarizar com os seus. É receber da vida um presente muito maior. Tudo mudou quando eu tive um filho porque ele me ensina, a cada dia, a ver o outro.