quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Yesterday

Paul McCartney gosta de sair às ruas, anônimo. Anda de metrô, sente-se bem ao se ver envolvido, não como um astro, pela multidão. John Lennon era diferente. Mais radical, mais isolacionista. Um pacifista, ídolo genial que se autodestruiu em sua ilusão libertária. Aprisionou-se na tese de dominador contra dominados, para ir caminhando lentamente para a morte. McCartney parece não ter o medo de ser assassinado na rua, como seu antigo parceiro. Estou apenas tentando recompor o inconsciente dos Beatles. E me lembro que, na composição famosa de ambos, já havia sombras perseguindo. Lennon pareceu ser a vítima maior, quando o ontem chegou de repente, trazendo fantasmas do passado. Como o rugido tétrico do metrô, que leva pelo subterrâneo uma multidão embrutecida, anti-social, solapando sonhos, fazendo eles se acabarem em meio à concretude ruidosa do túnel escuro. Outros remanescentes permanecem inteiros quando passeiam na estação, sobem e descem do trem, livres, reconhecendo-se nas pessoas e respirando o anonimato de seu sucesso, evitando rupturas entre o homem e a celebridade.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Oração

Meu filho, eu tenho, o mais oceânico, o mais cósmico, o mais lunático, o mais solar, o mais luminoso, o mais radiante, o mais contemplativo, o mais silencioso, o mais sábio, o mais preocupado, o mais firme, o mais ponderado, o mais justo, o mais preciso, o mais injusto, o mais impreciso, o mais irracional, o mais consciente, o mais presente, o mais desapegado, o mais permissivo, o mais rigoroso, o mais milimétrico, o mais grandioso, o mais transparente, o mais cristalino, o mais límpido, o mais gotejante, o mais caudaloso, o mais quente, o mais natural, o mais puro, o mais simples, amor por você.

Senhoras

Dona Bilai e dona Tatiana eram senhoras idosas. Tinham ar maternal, maquiavam docemente o rosto envelhecido, transpareciam no brilho do olhar e nos trajes sóbrios a sabedoria tranquila que só a idade traz. Atuavam, sob o traje da intelectualidade, para apunhalar pelas costas.
Guardavam em seus porões o medo da proximidade da morte, o fel da inveja dos jovens, a ânsia de manterem a imagem de docilidade para atacar sorrateiramente aqueles que feriam sua vaidade. Para elas, a própria obra era o pedestal inalcançável. Um palco. E sorrateiramente fecharam as cortinas da própria mente e caminharam para um local ermo, silencioso, escondendo-se de si mesmas. Um túmulo.

Rodeios

Celebridades consideram que amigos antigos são uns chatos que só os rodeiam por causa da fama. Amigos antigos consideram estas celebridades chatas porque elas presumem que amigos antigos são uns chatos que só os rodeiam por causa da fama.

Suicida

Por três vezes ela se jogou lá de cima de seu prédio. Do alto, uma mulher loira, cabelos longos e lisos, olhos arregalados e claros, avistava o entroncamento das ruas, onde à tarde o rush deixava o engarrafamento aumentar. Eu estava em uma roda de amigos. Da primeira vez, ela pulou e passou quase despercebida. Seu salto no ar teve movimentos acrobáticos, mas ao chegar ao chão sua pele emborrachada amorteceu a queda. Da segunda vez o impacto foi maior, mas insuficiente para atrapalhar o bate-papo em frente à Blockbuster. Na terceira, porém, seu olhar mórbido e insistente desviou a atenção do grupo na conversa. E a queda foi forte, ela se estatelou no chão ensangüentando o asfalto. No meio da poça vi seu rosto desfigurado, satisfeito por ter alcançado o objetivo. Finalmente a mulher suicida vencera a vida. Eu me assustei, rolando na cama, tentando vencer a noite.

sábado, 6 de novembro de 2010

Feridas

A abertura lenta, gradual e segura desembocou na anistia, ampla total e irrestrita. Que repatriou exilados exaustos, magoados e maduros; soltou presos tristes, marcados e ofendidos; escamoteou os broncos, covardes e ressentidos e enterrou a história, mortos e feridos.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Chute

O chute na bola é como um grito, expressão vinda de dentro. É o murmúrio dos sonhos, um sopro, um solfejo, uma nota musical. A trajetória que a bola toma é melódica, não importa onde ela parou. Se no pântano, na areia, no mar ou no gol. Ele chuta como canta, com suavidade, ternura, na precisa indecisão dos meninos que amam. No contato com a bola flui sua intuição.
A cada chute vejo seus contornos, sinto seu perfume, entendo seus anseios. Se chuta forte está com raiva, se faz de leve, está em paz. Se chuta para cima tem projetos de ascensão, se chuta reto, tem objetivos firmes. Seus chutes com curva mostram a superação das barreiras, os de calcanhar remetem a uma saudade. Sua comunicação está ali, impregnada na bola rolando, voando, flutuando, acima do jogo, da glória, ao balanço de suas risadas, molhada por suas lágrimas.