sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Escapada

O dedicado funcionário precisou um dia ir a um trabalho estilo free lancer. A proposta era boa, de última hora. Faria uma entrevista com um jogador renomado, que concedia coletiva em um badalado restaurante. Almoçou e foi para lá, sentindo-se culpado por se afastar do trabalho, mesmo que por algumas horas apenas. Não deixou, porém, de informar o chefe. Poderia até conseguir um falso atestado médico para explicar a escapada, tentado pelo comichão do disfarce. Suas palavras, no entanto, se desviaram para outro caminho. "Estou aqui em um restaurante badalado, tive de sair e você não estava, deixei recado, mas estou ligando novamente para dizer que não demoro. Precisei vir porque a entrevista era importante e a oportunidade, única". O chefe pareceu não gostar. Fez um muxoxo, como se estivesse torcendo o nariz. E passou a persegui-lo após o episódio. Muitos chefes são assim. Valorizam muitas coisas: a aparência, a obediência cega, até a enrolação. E deixam escapar de suas vistas a valiosa qualidade de um funcionário esquisito, só porque ele o chama de você e, por outro lado, lhe diz apenas a verdade.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Bigger

Noite densa em Aventura. Cidade aberta, cercada de luzes e de vento suave. Entro com minha familia em uma pizzaria que ja fomos outras vezes, em ampla e arborizada rua. O dono ja nos conhece. Seu fisico corpulento, atarracado contrasta com sua leveza de espirito. Empolga-se com a presenca de meu filho. Brinca com ele, o pega no colo. O olhar radiante do menino de quase tres anos o contagia, ele parece agradecer por se sentir iluminado, por potencializar a vida em si ao ver a inocencia a sua frente. Ele fala alto, faz brincadeiras com a crianca, pergunta se esta satisfeito. E cai na gargalhada com os trejeitos cheios de graca do garoto. Orgulho-me porque ele e parte de mim. E na despedida, o homem solta uma frase, parecendo comovido pela nossa partida. "I'll see you bigger". Assim e a vida, cheia de chegadas e partidas, de encontros fortuitos que duram para sempre. Prometi para mim que, quando meu filho crescer, ver o mundo de outra maneira, aprender com outros encontros fortuitos, voltarei la, para aquela pizzaria. O menino, talvez, nem se lembrara que um dia foi la pequeno. Mas duas pessoas se lembrarao: eu, e o dono da pizzaria - um grande homem, um bigger.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

City

As ruas de Miami nao tem buracos. Suas praias sao claras, seu mar turquesa seduz. Seus vizinhos sao cidades bem cuidadas, como Aventura, e Sunny Isles, em que o mar convive com construcoes imponentes, de forma harmonica, parecendo que o homem entendeu e respeitou os designios da natureza. Me senti tao acolhido neste cenario, que entendi completamente a musica-tema da famosa serie Miami Vice. You belong to the city.

Parque

Ha filosofos que dizem que a Disney e um lugar de alienacao. Discordei desses intelectuais quando me vi em ruas ao estilo de interior, entrei em um castelo, viajei com piratas, percorri o velho oeste, cumprimentei o Mickey, caminhei pelo mundo da fantasia, do amanha, da aventura, por lagos placidos, por jardins floridos ate a noite, quando as luzes do parque se apagaram realçando a passada, quando os carros e personagens desfilaram em trajes luminosos e quando, depois de toda essa alucinacao, pude ver um sorriso, real e iluminado, estampado no rosto dos meus filhos.

sábado, 22 de outubro de 2011

Cedilha

Com um pequeno trator, um trabalhador apara a grama de um jardim em Orlando. O hotel onde ele trabalha precisa ficar muito bem cuidado pra atrair mais hospedes e gerar mais renda para a empresa e para o pais. O homem sabe que e peca importante de uma engrenagem. Ve sentido no que faz. Os Estados Unidos possuem tres diferenciais. Uma e a civilidade do povo, em um grau mais acentuado do que na media. Outra e a organizacao social e economica, na qual todos tem importancia. Por fim, o comprometimento do povo se inclui como fator importante. Em Orlando, nao se suja a calcada porque se sabe que outros irao utiliza-la. Construcoes irregulares sao severamente punidas. E muito mais dificil para qualquer empreiteira dar um jeitinho como no Brasil. Ha, no fundo, um lado do capitalismo que e corporativista. Neste comunismo as avessas, a solidariedade entre os trabalhadores funciona tambem em busca da justica social. Nos antigos paises comunistas, o comprometimento vinha na base da forca. E da forca. Como nos Estados Unidos o alfabeto nao tem cedilha, e a mesma coisa.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Relatividade

Um físico vê um raio de sol como a emanação de uma onda. Na visão de um romântico, esta onda é poética, explode em sete cores e remete ao arco-íris. A penetração dela em uma cachoeira, então, é de uma beleza estonteante. O romântico, inclusive, pode ser o físico. Tudo se entrelaça nas combinações do universo. Os fenômenos da física desembocam em poemas, que discorrem sobre a magnitude de uma paisagem e sobre a doçura dos sonhos, independentemente das explicações psiquiátricas para estes impulsos freudianos. Os elementos da ciência são astros no universo da poesia e do romance: o sol, a lua, as estrelas, o mar, o cosmos, o infinito. O racional e o subjetivo caminham juntos. O amor não passa de reações químicas de um organismo em turbilhão, na linguagem da química e da fisiologia. Mas um químico apaixonado conhecerá bem a outra visão. Entenderá como mágica a palpitação no encontro com a pessoa amada. Como milagre a chegada de um filho. E suspirará enternecido ao testemunhar o pôr-do-sol no topo de uma montanha. As fórmulas são também versos sobre a poesia da vida, variam de acordo com a atmosfera, a pressão e a velocidade, sempre em busca da solução de mistérios. Imaginação, sentimento e conhecimento se entrelaçam como cadeias de DNA e extraem de qualquer teoria a sua própria relatividade. Portanto, respiro fundo, sinto o ar entrar refrescante em meus pulmões, enquanto meus olhos estão lacrimejantes de emoção quando recito, do fundo do meu coração: ê é igual a emecê ao quadrado.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Desenhos

Minhas palavras não alcançam a sonoridade do universo. Não são as ondas marulhando na praia. Tampouco o raio de sol que beija a copa de uma árvore no entardecer. Seu alcance não descreve o estímulo penetrante de uma música que encanta. Minhas palavras são pobres em comparação aos meus sonhos malucos e coloridos. Podem falar em cenários, mas jamais desenham perfeitamente pontes movediças, portões ornamentados, tapetes aveludados que só a minha imaginação vê. Feliz e genial é o escritor que consegue desenhar, pintar e cantar com as palavras. Mas se não consigo fazer desta maneira, também não posso deixar de me manifestar. Então esta atividade se torna mais importante para mim até do que para o meu leitor. Aprendi a me conformar enquanto não desenho, não pinto, nem canto. Eu escrevo, apenas.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Roupa

Com o tempo ele perdeu a ingenuidade. Antes, no primeiro contato com um Rato de redação, animal jornalístico que se autodenomina um vencedor, abria totalmente o jogo. Não que falar a verdade não seja imprescindível. Mas a exposição transparente de certos pensamentos que contrariam a indústria cultural soa estranha aos "vitoriosos": nada de dúvidas, nada de questionamentos, nada de fragilidade. Isso remete à necessidade de o homem se vestir antes de sair de casa. Ele coloca uma camisa social, sua calça bem cortada, o sapato de camurça, devido a exigências da sociedade. O asseio pessoal é inclusive um fator de status social. Pois o comportamento também precisa de uma vestimenta adequada. Não é indicado sair por aí desnudado emocionalmente porque, neste mundo competitivo, isso cria um sério risco de destruição. É preciso se proteger em tons harmônicos, com textura correta, nos relacionamentos pessoais e profissionais. Não deve ser à toa que o conjunto destas convenções leva o sugestivo nome de etiqueta.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Graxa

Ele acabara de fazer a regulagem do motor de um Fiesta. No galpão da oficina, sentiu-se cansado logo pela manhã. Precisou, novamente, dar uma paradinha. Lembrou-se da infância, pensou em como sempre foi apaixonado por carros, pelo universo das peças, pelo cheiro de combustível que a ele lembrava os mais requintados perfumes. Ficou recostado na frente do carro que consertara, com o capô erguido. Voltado para a rua, seu olhar alcançava o infinito. Cabelos penteados para trás, nariz retilíneo e queixo longo. Aquele estilo italiano já despertou muitas paixões na juventude. Agora, perto da velhice, ele continuava com o hábito da divagação, de avental e com as mãos sujas de graxa. Sobre a vida, sobre como podia ser feliz e infeliz naquele lugar, em que os carros, apesar dos roncos, não são ferozes, tampouco surpreendentes, como aqueles que os dirigem. Lembrou-se de um personagem de Voltaire que dizia algo a respeito da nobreza do trabalho. “O trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade”. Nada de ambições desenfreadas, que só levam o homem à loucura, distanciando-o do engrandecimento pessoal. Pensou nisso e virou-se para a máquina, agora perfeita graças à sua dedicação. Sentiu-se satisfeito, e não apenas conformado, com o seu mundo. Tinha como principal ferramenta a reflexão. Ele era mecânico. Mas seu pensamento, não.