terça-feira, 28 de agosto de 2012

Palitos

Na mesa de uma cantina, enquanto o conhecido sentado à sua frente palitava os dentes, lhe veio uma percepção óbvia. Falavam sobre como os políticos prometem e não revitalizam o centro paulistano. As teorias foram para outras esferas, passando por assuntos como a Educação que insiste em capengar, e pela desigualdade no país. Então emendou: “No Brasil, nunca houve um governante brilhante, à frente de seu tempo e de seus próprios interesses, em nível nacional ou estadual.” Sentiu-se aliviado com a conclusão. Implodiu herois como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Lula e qualquer outro idealizado como alguém maior do que sua condição mediana, apesar dos méritos. Mas se calou, constrangido pela ousadia das palavras, discrepantes para uma saída corriqueira, provocando silêncio na mesa. Viu que tal lacuna ainda não foi preenchida com um humanista que, acima da luta política, se desfaz da vaidade, até dos limites de sua personalidade em prol de um bem maior, o outro, em real mergulho na evolução da sociedade. "Conhecer filosofia e ter cultura é uma coisa", pensou. "Assimilar conceitos filosóficos e implantar na própria vida, transcendendo preconceitos e mesquinharias é outra", concluiu. E balbuciou para si, realçando a estranheza. "No fundo, todos alimentaram as mesmas conversas de sempre, nos corredores da política, nas decisões de gabinete, na relação por demais objetiva com as pessoas e inebriada com o poder". Foi o gesto de palitar o dente em público, que desconsidera de forma bem brasileira o incômodo alheio, que o levou a esta cena inusitada. Muitos destes políticos deviam palitar os dentes. São também reflexos de uma sociedade pouco evoluída - eles e o ato de palitar. "Por um desenvolvimento sustentável, mas acima de tudo efetivo, mitos e palitos precisam ser reciclados", falou para si, bem baixinho, já com a imagem de louco. E pediu a conta, desta vez falando bem alto.

sábado, 25 de agosto de 2012

Hipóteses

Todos reclamam da falta de generosidade. Ou a generosidade não existe, ou todos reclamam de si mesmos.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Benção

Velho rabino, barba branca, roupa preta, bengala envernizada. Cambaleia no andar, não no pensar e nem no sentir. Pisa no asfalto com passos duros, apoiado no ombro do jovem. Mãos pesadas e trêmulas regem seus movimentos, como se a vida fosse uma orquestra fragmentada que se encontra em sua lucidez. “Não vá vender sua alma, hein?”, diz, com sotaque russo, subindo com alegria os degraus da entrada. Ampara-se no porteiro, já de costas. Dá um aceno em forma de benção, em despedida, enquanto um caminhão passa na rua, bufando, fazendo o concerto tremer, no ritmo daquelas mãos.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Troca

A frase “não basta ser honesto, tem de parecer honesto” está sendo usada de uma maneira cínica ultimamente. Muita gente tem se mascarado nestes dizeres e, num instante de sombra, disfarça, surrupia, troca o basta pelo precisa como se não houvesse diferença entre um e outro.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Comodismo

As pessoas nem sempre têm olhos para o belo e o profundo. Preferem se acomodar no convencional.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Quadra

Fim de tarde de domingo.  Pai e filho jogavam futebol na quadra society. O adulto, magro e tímido, se empolgava em ver o menininho esbanjar alegria a cada lance. Seus olhinhos brilhavam como duas estrelas. De repente, um desabafo longínquo se misturou ao anoitecer. “Pena que eu não posso mais jogar”, gritou um homem de meia-idade, à distância, com as mãos agarradas nas cercas. “Nossa, como sinto falta daquele tempo, em que jogava aí, o dia inteiro, com os amigos”, disse, em tom suave, com a voz ecoando pela quadra quase vazia. E repetiu a frase. A noite seguiu o ritmo da prosa. Desceu serena, como toque de encerramento da conversa. “Você ainda pode jogar”, respondeu o pai, tentando incentivar. “Não dá, sou infartado, não dá. Mas eu corro, tudo bem, tudo bem, eu corro”, emendou o homem, baixinho, cabelos grisalhos e olhinhos saltitantes atrás de óculos arredondados. Então aquela figura pura foi embora rápido, falando algo para si. A cena não foi triste. Apenas verdadeira. O menininho logo quis continuar o jogo. E o pai ficou pensando, enquanto tocava de leve na bola, em como aquele desabafo não carregava rancor, mas ternura. Pensou nisso já antecipando o dia em que não puder mais jogar com o menino, quando seu coração não sustentar as necessidades da juventude. Olhou para a criança, cuja preocupação eram as jogadas a serem feitas. “Lança para eu dar de cabeça, papai”. Ele estava seguro com a companhia do pai. “Feliz dia dos pais. Te amo muito, muito, papai”. O pai admirou aquela figura típica de um livro de Tolstoi. Iria guardar o diálogo curto, absorver cada palavra daquela aparição. Nada de lamento. Um dia ele iria fazer como aquele homem. Evitaria a amargura. Começara desde já a amar a própria saudade.

Companheira

Dor, eterna companheira do homem. A dor crônica da artrite dos que se cansaram de andar. A dor aguda dos que se aventuraram em tentar e recuaram para prosseguir. A dor lancinante de uma facada. A dor inflamatória de uma ferida que não seca. A dor de se sentir longe do alarido da infância. A dor das promessas não cumpridas. A dor das mentiras não reveladas. A dor das verdades jamais percebidas. A dor de falar e ninguém ouvir. A dor de ouvir os que não sabem falar. A dor das despedidas obrigatórias. A dor da chegada, a dor da partida. Os jovens sentem dor no crescimento. Os adultos, no envelhecimento. E existe a dor das incertezas. Para curar a dor das certezas. A dor do nada, daquilo que não tem motivo para nos fazer chorar. A dor no estômago de tanto rir. A dor de dente que nos tira da reunião importante. A dor do que já passou. A dor do que ainda virá. Dor somática, atributo divino que faz a vida girar. E doer. A dor na coluna aponta para a idade, a dor de cabeça nos mostra a realidade. Somos sós, isso nos remete à dor da unicidade. Todas as dores são suportáveis, por serem dolorosas companheiras. Dolorosamente nos apontam o caminho. A única dor que não passa nunca é a de quem tenta fingir que não sente dor. É a dor de quem se cala diante do amor.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Descoberta

Primeiro foi no civil. Alguns anos depois, no religioso. Um dia, porém, ele sentiu saudades daquele mau humor feminino, que a deixava irritadinha apenas por perder uma chave. Foi quando ele percebeu, definitivamente, que estava casado.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Trave

Quando menino, as bolas que batiam na trave o fascinavam. Mais do que saber o resultado do jogo, perguntava para o pai quantas bolas tinham acertado o poste. Talvez associasse a finura da trave ao fato de ser magro. A importância da trave minimizava a sensação de ser frágil. Encantava-se com a sutileza deste limite entre a conquista e a frustração. Era um prazer ver seu time chutar na trave. Era a sensação de ter chegado até a meta. Era o sorriso de amor da linda menina, que já tinha namorado. Era a nota oito insuficiente para não ficar de recuperação em matemática. A bola na trave simbolizava um estímulo para seguir em frente. Possibilitava a criação. A trave, generosa, pede para que a acertem. De maneira bíblica doa seu corpo para que continuemos a acreditar em nossas capacidades. Para dividir com ela a responsabilidade por nossas agruras. A superfície dura, de ferro, traz uma mensagem doce, de esperança. A trave não permite o gol, mas faz nos sentir com o dever cumprido. À noite, quando o estádio fica vazio e silencioso, a trave segue impávida, sob o sereno, já sem a companhia das redes. Ela é convicta em sua missão. Chova ou faça sol não muda de posição. Insiste em nos mostrar o caminho. Aponta quando estamos perto do acerto. Bem que ele queria, nos dias que seu time perdia, ter uma no seu quarto, para consolá-lo. Ela enxugaria suas lágrimas e diria uma frase mágica, que só as traves nos induzem a pensar nos momentos mais difíceis: “da próxima vez...”

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Cientista

Einstein era um gênio não por causa de seu conhecimento científico. Ele sabia integrá-lo à sabedoria e à ignorância humanas, relativizando uma na outra. Einstein intuía sua ciência, na crença religiosa de que a relatividade existe tanto no universo quanto na vida terrestre. Nos movimentos cósmicos e nas batidas de nosso coração. Na pressão do vento e nas sutilezas da alma. A fórmula que Einstein apresentou resumia em números a dança do mundo visual com o oculto. Sua relatividade não se restringe à sua vaidade, à sua inteligência, aos seus estudos. Ele a compartilhou com todos nós. É nossa. Está no cosmos e na energia que nos move, na massa que nos compõe e na luz que nos ilumina.