quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Quixotescos

O mundo anda cada vez mais quixotesco. Move-se moinhos de vento para a defesa das causas próprias. Culpa-se o outro por tudo: pelo próprio fracasso, pela tristeza que não vai embora, pelas dúvidas, pela falta de perspectivas. Isso, no fundo, é desespero. Não fosse pelo desespero as pessoas não feririam a ética, não chutariam a moral, não deturpariam as leis em busca de justificativas. Sem dúvida elas prefeririam ter coragem de encarar de frente a realidade, de assumir a honestidade, de caminhar com a verdade. Rousseau já dizia que o homem é um bom selvagem. Mas o Palmeiras, pobre Palmeiras, tenta se convencer, a si e aos outros, de que tem o direito de fazer gol com a mão. Não vai conseguir, para o seu próprio bem.

Interações

Muita gente vai a um centro político, religioso, comunitário ou social e tenta demonstrar para os outros a adoração que sente pelo líder. O ambiente se torna competitivo e pesado. Idolatria tem a ver com fanatismo. As raízes são as mesmas. As crenças e convicções vêm de fora para dentro. Fé, religiosidade e admiração genuína têm outras origens. São sentimentos que interagem com o ambiente, o fazem acolhedor, transitam tanto de dentro para fora quanto de fora para dentro das pessoas. Neste momento, elas ficam próximas da divindade.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Adormecidos

Calor no calçadão. Dia de campanha, militantes de bandeira azul próximos aos de bandeira branca. Andam, entregando panfletos, conversando em grupos. Então um de branco discute com um de azul. Outros chegam, confusão iminente. Gritos e ameaças de briga. “Ninguém rela a mão em mim não”, berra um. Outro reage: “Mano, fica na tua”. Não percebem que um homem dorme embaixo de um banco, no centro da via pública. Tem uma ferida no olho, barbas por fazer, camisa amarrotada e calça apertada. De tão perto, quase pisam nele. E a gritaria não para. Estão em campanha política. Mas ninguém pensa em levar o homem para cuidar da ferida. Querem é ganhar disputas, na urna, no calçadão. Eleição para eles é como um jogo. De interesses. De sobrevivência. Querem emprego, querem comer para não se transformar naquele pedaço de carne adormecido. Um coloca uma placa de seu candidato bem ao lado do moço. Como se ele fosse um poste tombado. A gritaria vai se dispersando junto com o entardecer. O mendigo já nem liga mais para isso. Sabe que nem em campanha olham para ele.Vira-se de lado, com a cabeça sobre um punhado de jornal. Os barulhos são apenas esparsos. Uma brecada, uma gargalhada vinda de um bar distante. O ritmo batido do salto de uma prostituta maquiada. Sua companhia agora são as luzes da cidade e um ou outro cachorro que vagueia pelos becos. O mendigo se sente aliviado. Este é o seu verdadeiro mundo. Agora enfim, no silêncio e na solidão, ele pode dormir tranquilo.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Balas

Dias antes do casamento, o noivo recebeu uma saraivada de balas. Sentiu no corpo o desconforto agradável de ser atacado por convidados e pessoas presentes à sinagoga para acompanhar a cerimônia da leitura da Torá. O rabino, com um sorriso maroto, mirou o seu rosto e acertou uma bala bem na ponta do queixo. Até doeu, mas o noivo logo sorriu. Desembrulhou a bala e a chupou, sentindo o sabor de morango se espalhar pela boca. Entendeu a mensagem.  Os que jogam atuam como os invejosos que tentam transformar os maus sentimentos em algo construtivo. Fazem o papel da realidade, transfigurada na bala, pura demonstração de que a vida é, ao mesmo tempo, dura e doce.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Palavra

Do teu corpo nasce a palavra. Ela reverbera em minha alma de várias maneiras. Uma palavra, mil sentidos. A palavra surge como um eco silencioso em uma cadeia de montanhas. A palavra é livre. Multiplica significados, sua identidade levanta vôos, de águia ou de colibri, se expande em um universo de dualidades, paradoxos, reflexões e sutilezas. Uma mesma palavra desperta lágrimas, provoca sorrisos, sugere, contempla, acaricia e fere. Depende de quem a ouve. Ou da intenção com que foi dita. O sussurro de cada uma delas é multiforme. Se dissemina como a refração da luz na água. Constrói um templo com peças de lego. Cada detalhe revela ou oculta um discurso. A palavra pode ser o fim do começo ou o começo do fim. Mas, no fundo, ela nunca termina.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Relação

No livro Razão e Sensibilidade, Jane Austen revelou como o pensamento tem toda a relação com o sentimento. A tristeza vem quando um tenta enganar o outro e, no fundo, nunca consegue.

Combinações

Deitei na grama do parque, me espalhei no tapete verde-musgo. Mistura de verde e marrom. Ao contemplar as alturas, vi o entardecer mesclar o vermelho do sol, o azul celeste e o branco das nuvens. Surgiu daí um lilás que desmaiava com o vento. Um menino no skate vai pular sobre uma barra de ferro. No momento do salto, desiste. Vi em seu olhar a sanidade, mistura de coragem e medo. Assim como a paixão que se mistura com o tempo vai se transformando em carinho. E a crítica, sem amor, vira crueldade. A ponto de urrar de raiva e estragar tudo, podemos utilizar uma pitada de vergonha para transformar a fúria em prudência. Esta fórmula, vista de outra maneira, pode ainda significar submissão. A tempestade desaba acinzentada. Para que a primavera seja rosada. O rubro estampa um rosto tímido. E a brancura revela quem se assustou. A essência humana vem da terra ocre. Emana do firmamento gris. Emerge do sêmen cor de areia. Liberdade que vive aprisionada pela mistura das cores e das emoções. Pelas tonalidades de cada instante. A regulagem de um sentimento gera outro sentimento. Não há vida sem a beleza e a tortura da combinação. Nada temos a oferecer além da química dos afetos e a matemática dos sentimentos. Na ausência de cor reina o luto.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Ciclos

A agente de aeroporto atende o cliente. Ela tem olhar sanguíneo e cara de raiva. Costuma responder mal, retrucar, não informar. Uma coisa nefasta é o autoritarismo de tempos atrás. Outra, ou no fim das contas a mesma, é a perda do respeito nos tempos atuais. Tornou-se hábito destratar o cliente. Jogador derruba técnico sem parcimônia. Aluno desanca professor. Professor ironiza os pais. Instituições perdem a força de referência. O marketing acena com mil possibilidades em um país que não pode ter ilusão. A violência busca alimentos na miséria e na desigualdade. Um homem, no meio da multidão, grita por serenidade. Ninguém o escuta. Todos andam ensimesmados, turbinados por seus i-pods, com passos apressados, numa marcha febril e sem destino, que os impede de olhar para os lados. Ele tenta respirar fundo. Pensa. “Não basta contermos a nossa raiva. É preciso também saber conter a raiva dos outros e não se inflamar”. Pega a mala e chama um taxi. Coitado, vai para o aeroporto, ser atendido pela agente.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Vazio

Escurece na praia. As ondas se tornam riscas brancas em movimento. O cheiro do mar se intensifica. Os navios no horizonte se transformam em pirilampos. A areia esfria, ganha o frescor da noite. A luz das estrelas e o brilho da lua se tornam referências. Emanam. Misturam-se à maresia e ao marulhar. O cenário aguarda o dia que virá, ensolarado, com o alarido das crianças e os guarda-sóis coloridos. E o sorveteiro, e o homem da queijadinha gritando um slogan para cativar os clientes. Como nos meus tempos de criança em Santos, com meus pais e meu tio. E tem ainda o barulho das raquetes batendo bola no frescobol. Estou na cidade, distante, imaginando as cenas. Lá estão minha esposa e meus filhos. Entro no apartamento vazio. Sinto-me só, envolvido no silêncio. Então escrevo este texto, sem nenhuma inspiração.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Escribas

Uns escrevem para demonstrar inteligência. Outros para desferir amargura. Existem os que escrevem com a presunção de ensinar. E os que buscam contar uma história para exibir suas qualidades descritivas e imaginativas. Textos agressivos e intolerantes nascem dos que precisam destilar desabafos venenosos. São poucos os que escrevem apenas em busca de uma verdade ou simplesmente para revelar a própria alma. Mas por mais que os escribas se iludam, ninguém é Deus. O único que consegue escrever certo, por linhas tortas.