quarta-feira, 30 de junho de 2010

Céu

Se eu fosse o céu noturno, você seria um véu. Abraçaria minhas estrelas e tantas nuvens ao léu. Acenderia corpos celestes, espalhando luz fugaz. Preencheria buracos negros, estimulando órbitas de paz. E lampejos resistentes fluiriam da minha mente. Alimentaria minha força gravitacional, a barrar quedas livres, no meio do descampado, de alguém desamparado, neste mundo turbulento, maluco, confuso, sem olhos para o tempo, sem tempo para o vento, de disputas por assento, de pichados monumentos, da rejeição da história, da falta de memória, da vista cansada, do olhar aflito, do canto maldito, no espaço restrito, da ferradura que prende, dissimula, inflama a chama da dor, e me impede sem pena, de olhar pra mim mesmo, de vislumbrar o universo, de mergulhar no meu céu, do lado de lá, e te encontrar, Eloá, quando você não está.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Números

Fico pensando nesses chefes, imaturos. Eles chegam engravatados, ou de salto alto, e logo se fixam na concretude da tela do computador. Fixam-se também em números, em horários inflexíveis, em detalhes irrelevantes, deixando de lado os relevantes, como um suspiro desgostoso que contamina um ambiente ou um sorriso discreto de um feito pessoal. Consideram-se modernos, alienados por se sentirem extremamente atuais.
São filhos de um dilema mundial. De um lado, a ética humanista, base da justiça social e de qualquer êxito político. Do outro, a tecnocracia, o mecanismo insensível que procura a eficiência. Conflito tão áspero quanto o atrito da foice com o martelo. Luta filosófica pela hegemonia cultural de Gramsci. Neste ponto da história, o comunismo não predominou. Nisso Marx errou. Acertou, no entanto, que prevaleceria o materialismo. Como se vê, na vida, tudo é relativo.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Desejos

Eu queria que os dias passassem mais devagar, para lembrar cada gesto, cada sopro de vida no ar. Ter tempo de enxergar almas que não vejo, entender argumentos, razões, até mesmo más intenções. Desarmar rancores com amor e paciência, sem o orgulho da convivência, desapegado da aparência. Queria ter tempo para encontrar soluções, me estabilizar financeiramente, ajudar mais os outros, poder visitar um parente. Queria ser menos egoísta, por querer tanto tudo contra o tempo que corre surdo. Não queria deixar o meu filho, todo dia quando vou trabalhar. Gostaria de estar sempre com ele, na praça, com graça, lembrar mais do meu pai com saudade, desfazer no fio dos dias o peso que me traz a idade.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Motorista

Carro e bicicleta entraram juntos em uma ponte. Era noite. O motorista, logo adiante, notou algo estranho. Acelerava fundo, mas via pelo retrovisor a bicicleta se aproximar. A sensação foi das piores, como muitas que já teve. Sentiu-se fraco por não conseguir, nem com o motor do possante, se distanciar de um veículo de pedal, movido por pés de alguém que aparentava ser desnutrido, vindo da favela que piscava nas cercanias.
Sempre foi assim em sua vida. Sentimentos de perseguição, de ameaça, de fragilidade. Era ele o derrotado em todas as pendências que surgiam. No trabalho, em vez de se desenvolver, era rebaixado. Nas letras, pouco frutificava. Olhava cada semelhante com a certeza de ser inferior. Seu brilho se apagava com a primeira cara amarrada. E eram muitas. O texto do outro era melhor, o astral daquele era insuperável, sua autoestima se desmilinguia diante do primeiro gesto do interlocutor. Era como se tivesse nascido apenas formalmente, sem poder existir.
Agora, nem de carro conseguia ser mais rápido que uma bicicleta. Parecia um pesadelo, ele pisava e mesmo assim o ciclista chegava mais perto. Até que o ultrapassou, já na alça de acesso à avenida. O carro, por sua vez, parou. No marcador, um sinal de alerta. O ponteiro mostrava tanque vazio. Tanta era a cobrança, que a máquina e sua inoperância se materializaram em seu corpo. Seu coração bombou mecânico. As veias transportaram óleo sujo. Do pensamento, faíscas de curto-circuito. Seu estômago roncou. E na boca sentiu sede de gasolina.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Palavra

A verdadeira palavra escrita tem movimento. É como um casulo que abre e permite os vôos de uma borboleta colorida. É a palavra que toca, transporta, se torna imagem. Penetra na alma de quem a lê, esmiúça os sentimentos, mobiliza a intuição. Remete ao paladar, visão, olfato e audição. Não é a palavra morta, opaca. Esta é alimento sem conteúdo, que finge enriquecer, mas afasta. Exime-se, mantém a distância. Não transforma, apesar das aparências de erudição ou imparcialidade. A impressão da palavra vai além do papel. O papel da palavra é revelar uma impressão.

Selvas

Ele navegava em um barco turístico no coração da África. O entardecer se fechava lentamente pelas águas cintilantes do Zambezi. Revoadas de pássaros emergiam da vegetação abundante. Nas margens, hipopótamos preguiçosos mantinham apenas a cabeça de fora para respirar ou espiar. E no leito do rio, o sol lançava seus últimos raios.
Aquele momento tranquilo e selvagem foi uma referência para ele. Não tinha um supermercado para recorrer em caso de necessidade do mundo moderno, mas trazia uma mensagem.
Prometeu que quando estivesse em um engarrafamento na cidade grande iria se lembrar da beleza primitiva do mundo. Jurou não mais esbravejar sob o calor do carro, pensando ser aquele o único lugar da Terra, embebido de uma pressa venenosa. Além da rotina asfixiante havia uma África do outro lado do planeta. Com objetivos e busca de felicidade bem diferentes. Lá, a ânsia e a luta pela sobrevivência tinham outro ritmo, mais lento, natural. Adormeceu sob o luar imponente, ouvindo apenas o murmúrio da selva que se recolhia. Deixou-se levar pelo tempo até acordar com as buzinadas, em um cruzamento qualquer.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Sopro

O filho da puta entrou na sala e encontrou a puta que o pariu. Ela o acolheu em seus braços flácidos. O rosto barbudo e atormentado se aqueceu no corpo sofrido, ainda resistente. No pálato, o amargor deu lugar a um gosto de ternura. E sem dizer palavra, o olhar grato se expressou como um sopro, bem lá de dentro. “Mãe.”

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Trem

Três amigos andavam pela linha do trem. A neblina campestre encobria o cenário de vultos, ao ritmo dos sapatos em atrito com pedrinhas. Até que um outro elemento entrou em ação. Um trem, vindo em alta velocidade furou a montanha e se avolumou monstruoso por de trás deles. Só perceberam após o apito da morte, ensurdecedor. Como se sabe que os três eram amigos? Naquele momento, eles se deram as mãos.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Platônico

Aristóteles dizia que a arte é uma saudável imitação da realidade, encenada ou escrita. Seu professor Platão era radical contra os artistas: propunha o ostracismo para os poetas da República, por considerá-los enganadores. Mas, sem saber, Platão criou uma obra de arte. Genial, o Mito da caverna projeta uma verdade em forma de representação. Nesta metáfora o homem vê um mundo fictício, submetido a paredes de pedra que o impedem de perceber outras imagens, iluminadas e reais, predominantes lá fora. Surge aí um dos primeiros paradoxos da filosofia. Platão não foi mais além.
Aristóteles é que fez este papel. Sua definição de arte serviria perfeitamente para tirar os homens das cavernas platônicas. Artista para ele imitava a vida quando criava uma tragédia, uma epopéia ou um diálogo. Por de trás das obras residia um tesouro que falava sobre ética, filosofia, moral e amor. Não se tratava necessariamente de mentira. E Platão não conseguia ver que criatividade e catarse artística são um eficaz instrumento para a saída do escuro. O discurso do aluno, portanto, superou o do professor. Platão, no fundo de suas cavernas, mostrou ter vários dilemas e deixou parte de suas teorias presas apenas a um discurso que ele resistia a por em prática. Algo de seu inconsciente o traiu, a arte parecia tocar em trauma profundo do pensador. Seria muito bom para a filosofia, e para a arte, se na época Platão pudesse ter sido atendido por Freud.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Latidos

Os cachorros da minha irmã latem muito, pulam, enchem a gente de arranhões. É só buzinar lá da rua para se ouvir uma sinfonia de uivos, ganidos eufóricos por encontrar gente, receber carinho, brincar. Sopra da sala da casa um furacão de impetuosidade e afeto. Duas fêmeas pretas, uma peluda, outra de pelo liso. O macho é lépido e desobediente, tem a cor embranquecida, pelos desordenados na cabeça, corpo esguio e olhar de criança levada.
Os três foram retirados da rua, onde viviam sofrimento e abandono. Transformaram a dor em ânsia por amigos. Deixaram a revolta à margem, uma ferida bem guardadinha lá dentro. Até se assustam com movimentos mais bruscos do pessoal da casa. Thomas Mann escreveu um conto em que um homem pobre e frustrado tortura seu cachorro até a morte. Com crua sabedoria ele descreveu um lado humano muito comum ao se deparar com as agruras da vida. O de descontar, perversamente, nos mais fracos. Transferir a eles, em diferentes níveis, o cenário das próprias mazelas pessoais. Isso também vale para o dia-a-dia das relações humanas. Na verdade, estou fazendo uma homenagem à minha irmã.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Arrependimento

O homem que se arrependeu entrou na bolha do tempo feita de sabão. Girou no ar, envolvido pela esfera transparente. Viu raios de luz se intercalarem. Abriu as mãos para interceptar mistura tão colorida, como se isso desfizesse acontecimentos que o levaram até ali. Em vão. Ploc, a bolha explodiu, instantes de azul, verde e dourado se desmancharam à sua frente. Sentiu-se sonho, antes de morrer no suave vislumbre do que não foi.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Maresia

Drummond vagava pelas ruas de Copacabana com passadas suaves. Em seu rosto magro e por trás dos óculos de intelectual, estava estampado o mapa da paz. Cumprimentava conhecidos com discrição pelas esquinas. E desfilava sua simplicidade nas ruas bucólicas do bairro. Enquanto atravessava as sombras acolhedoras da região, parecia mergulhar em sombras internas em busca de inspiração. Muitos versos surgiram durante aqueles passeios pelas manhãs amenas. Eram ondas estourando em um mar turbulento de emoções. Ele nasceu onde não havia mar, precisou ir morar na costa para juntar dois oceanos. Sua estátua de bronze permanece lá à beira da praia contemplando a vida. Copacabana tem cheiro de verso de Drummond. Tem cheiro de maresia, mistura de mar com poesia.