quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Arquibancada

O torcedor, em muitos aspectos, é um frustrado. Projeta na vitória de seu time o seu próprio desejo de vencer. Mas ele nunca é o protagonista. É sempre um ser à mercê dos jogadores, os verdadeiros herois. É por isso que, na primeira oportunidade, ele achincalha os ídolos, iludindo-se que faz isso por amor à equipe. Ele se apega ao time por algum motivo íntimo, cujo significado é importante. Mas há muita inveja, há a raiva de se sentir de fora, apenas assistindo. Quando, na comemoração do título de 2009, vi um flamenguista agredir outro flamenguista, me veio o insight. O agressor transferiu para o agredido, que vestia a camisa vermelha e preta, toda a sua ira contra o clube. Uma conquista alheia não é capaz de mudar a vida de quem torce. Claro, a alegria transparecerá, mas ela será efêmera, às vezes falsa. Pode até ajudar a amenizar sofrimentos, mas não traz de volta o amor que se foi, nem o emprego que não vem. Os premiados são outros, os beneficiados também. O torcedor é um ser frágil, dependente. As conquistas de desconhecidos, tão distantes como as estrelas no céu, não se materializam em realizações do seu dia-a-dia. Há um lado ilusório no futebol, que esconde o ódio que o torcedor tem de seu time. Afinal, ninguém gosta de se sentir secundário na vida.

Dramaturgia 1

Um famoso jornalista empurra a mulher em público. Outro se sente no Olimpo ao noticiar os fatos na TV. Tem um olhar ameaçador e não pode ser contestado. O reconhecimento profissional não é suficiente para manter a auto-estima, em muitos casos. Em vez disso, a pressão da fama estimula a arrogância. O problema é que, no discurso, estas celebridades expõem algo falso. São capazes de posar em campanhas institucionais, na roupagem de gente humilde, como carpinteiros e motoristas. É quando a verdade vem à tona. Não combina a personalidade irascível que escondem em seu interior turbulento com a imagem santificada que procuram passar. Então eles se fragmentam como árvores despedaçadas, deixando à mostra a seiva ilusória de suas vidas. São bons apresentadores e são péssimos atores.

Dramaturgia 2

No fundo, todos nós somos atores, tentando atuar e encaixar personagens o tempo inteiro neste cenário que é a vida. As relações humanas são o alimento cotidiano de uma grande peça de teatro. Não é à toa que Shakespeare é o maior dramaturgo da história, por evidenciar a dificuldade do homem em conhecer seu real papel, em cumprir sua verdadeira missão. Em ser ou não ser.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Câmera

As imagens vêm como um filme em minha cabeça. Pessoas, a cada instante, tocando a campainha e entrando animadas pelo portão verde da casa, após alegres cumprimentos. Amigos sentados ao redor de uma mesa, no centro da sala. Transpareciam afeto e respeito, relembrando acontecimentos ou falando sobre futebol, casamento e política. Enquanto isso, na sala lateral, outros familiares se reuniam, também em animada conversa. Convidados interagiam, pulavam de um lugar ao outro, em meio a deliciosos salgadinhos e refrigerantes gelados. De repente, crianças rompiam pelo corredor, se esbaldando, gargalhando em alarido, como um pequeno exército mirim. O Parabéns a você, para o pequeno aniversariante nos braços dos pais, ressoou por quarteirões, tamanha a energia do canto devotado à felicidade da criança, que irradiava um sorriso, atônito e encantado, em retribuição. Este foi apenas um pequeno retrato daquela linda tarde. Um retrato feito por minhas retinas, trabalhado pela minha memória. Espontâneo e verdadeiro. Um retrato tirado lá de dentro de mim.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Profecia

Rivalidade será considerado um termo rude, inapropriado, que não existirá no futebol. Será trocado por complementaridade. Se o sol rivalizasse com a lua, não haveria dia. E os rivais no futebol seguem o ritmo da dança da noite com o dia. Quando estão em alta, brilham como o sol que se impõe na paisagem. Os períodos sem vitória são mais reflexivos, quando o manto noturno os envolve em contemplação e frescor. A beleza de tudo é que, nos movimentos da terra, o dia será noite e a noite será dia. Sempre, enquanto o universo existir. Portanto, quando não vier a vitória, a lua renascerá no céu e em sua placidez o derrotado se acalmará, aplacará sua ira, enriquecendo a constelação com o brilho de sua luta, transformando a lágrima numa estrela iluminada e serena que se chamará humildade.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Parabéns

Primeiro peguei você no colo na maternidade. Depois vi seu rosto de nenê. Ouvi você falar “gol”, aos nove meses. Então acompanhei seus primeiros passos, com um ano e quatro meses. De repente, vejo tudo isso hoje reunido em seu sorriso de menino. O rosto ganhou feição, linda, é verdade. Os olhos castanhos e a pele clara já revelam a harmonia de uma criança de três anos, iluminada, que causa perplexidade em todos. Vejo você agora como um conjunto de seu desenvolvimento, como uma paisagem de peças que se encaixam a cada dia, incessantemente, depois se transformam, neste quebra-cabeça mutante, colorido, impressionista que é a sua existência, a enriquecer, a cada dia, a minha própria existência. A traduzir minha vida, libertando-me de qualquer definição de tempo e espaço. Vejo-me alforriado e aprisionado pela paternidade. Fui conduzido para outro mundo, conheci outra dimensão da realidade. Estou envolto na obrigação de homem maduro, que não tem volta. Já não sou um bobo. Às vezes até me esqueço de quem fui, de quem sou, para tentar me lembrar o tempo inteiro quem é você. Levo comigo seu passado recente, baú encantado que parece tão longínquo, onde tranquei seu primeiro respiro, seu primeiro passo, seu primeiro choro. Eles adormeceram em mim, diluíram-se em imagens abstratas. Sim, eu as guardo, mas não lembro. Todos estes momentos estão devidamente acomodados nas gavetas de minha alma. Desapegados de definições, entregues à passagem da vida, presentes na beleza da natureza que me cerca. Este cenário absoluto é o único local onde, por ser infinito, meu amor por você se mistura, além dos meus limites. À noite, quando olho para o céu límpido o vejo em mim, filho, incendiado pela luz prateada de seu sorriso. Raul é luar ao contrário.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Latido

A dor se torna maior para quem se esconde e se afasta do mundo justamente com medo de senti-la. O cachorro late mais para aquele que não quer ser visto, como se o animal farejasse a fraqueza e, sabiamente, deixasse sua essência selvagem falar, em forma de latido: "venha, venha..." Mas como o homem tem medo e não entende a linguagem da natureza, nem a sua nem a do universo, ele pensa que o latido é uma ameaça. E foge, como se o cão lhe falasse: "sai daqui, sai daqui..."

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Carona

Telefonei para um amigo à tarde. A ligação estava tão clara a ponto de eu pensar que ele falava de sua mesa de trabalho. Mas ele dirigia na estrada, um carro que ia de Porto Alegre a Gramado. Não ouvi o barulho da brisa perfumada que devia estar entrando pela fresta da janela. Mas, de pronto, me transportei para lá. Vi-me no banco de carona, apreciando a paisagem bucólica da região, a chamada Rota romântica, cercada por vilarejos, vaquinhas pastando, carros de bois e flores. Senti-me na Europa ao me deparar, em suaves curvas, com árvores de plátano, vindas da Alemanha pelas mãos dos imigrantes, exibindo tons amarelos e laranja que colorem o cenário. Respirei a atmosfera de paz, ornada pela simplicidade dos trabalhadores rurais, andando na beira de estrada com pás, foices e um olhar profundo. Desemboquei em uma verdadeira caverna de árvores, até penetrar em uma alameda de hortênsias, já em Gramado. E então, do outro lado da linha, encerrei a ligação e o devaneio. “Boa viagem de volta”, desejei para nós.

Idealismo

A má interpretação do idealismo alemão influenciou de alguma maneira a ascensão do nazismo. O idealismo, em resumo, defendia no fim do século XIX a autonomia do espírito, destacando a subjetividade do sentimento como o mais importante. Fichte, Hegel, dois discípulos de Kant, encabeçam a lista dos idealistas filósofos, que viam na valorização ética do “eu” o caminho para as realizações humanas. Tal sensação de autossuficiência contribuiu para inflar o povo alemão de ilusão de onipotência. Foi uma das fagulhas na I Grande Guerra e, após a humilhação da derrota, se reinventou com mais ódio na II Grande Guerra. Logicamente, não era esta a intenção dos filósofos, muito pelo contrário. Tais preceitos cheios de sabedoria serviram como um pretexto para preencher lacunas de uma sociedade esvaziada. Mas essa questão é importante para nós, hoje, em busca de nossa afirmação no dia-a-dia. Por mais que estejamos certos e convictos, não convém tentar impor nossa opinião sobre a dos outros, nem nos irritar em excesso com fraquezas e defeitos alheios. Senão, rumo a essa autossuficiência libertária, podemos interpretá-la mal e liberar nossos instintos mais primitivos. Nossa felicidade não será plena se os outros não agirem como desejamos. Assim, sem perceber, nos transformaremos em nazistas. Ou, no mínimo, em chatos.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Desconhecido

Olhei o homem de bigode branco e cabelos volumosos no balcão da lanchonete e vi meu pai. Também vestia camisas sociais e calças antigas, que realçavam sua simplicidade. Suas pupilas em alerta reinavam nos olhos esverdeados como a luz no mar. Prestavam atenção ao doce que comia com satisfação. Após uma mastigada e outra, pensamento imerso no infinito, terminou. Amassou e jogou o guardanapo no lixo. Ao se virar, olhou para mim, mas não fez aquele aceno à distância, com as mãos espalmadas, que ele fazia sempre, entusiasmado por me encontrar de repente. Saiu como um estranho. Então eu percebi que ele não se parecia em nada com o meu pai.