quinta-feira, 29 de abril de 2010

Ambições

O doutor Luís Paulo se acostumou a operar sem necessidade por pressão do hospital. Foi promovido por atender pacientes renomados. O assessor de imprensa José de Barros nem se incomoda quando o chefe, político, defende dar o mesmo veneno à oposição, falando que se fez até aquilo que não foi feito. Pretende ganhar com isso. O jornalista Tito Márcio concorda que seja importante o engajamento das pessoas em defender seus patrões, suas empresas, seus interesses. Só acredita que este envolvimento não deve ser maior do que o compromisso ético com a profissão. Não, ele não está desempregado.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Véu de noiva

Na infância, atravessava a cidade a pé para ir aos jogos do São Paulo. Trabalhava muito costurando o couro de bolsas. Casou-se, teve filhos, sua mulher o deixou. Sempre foi de falar pouco, em suas feições sérias, sorriso leve e andar tranquilo. Por isso não transparecia seu sofrimento. Em qualquer situação, no entanto, não deixava de acompanhar a trajetória de seu time.
Eis que conheceu uma moça, ainda solteira, já na casa dos 30. Com uma beleza a ser descoberta, por de trás de óculos grandes, ela o aceitou, numa comunhão de fragilidades, entre pessoas que temiam ser estigmatizadas em uma época de preconceitos. De um lado, o desquitado, com fama de traído. De outro, a mulher de 32 anos com medo de nunca se casar.
Viveram juntos por 47 anos. Montou uma fabriqueta de bolsas, que dava o sustento suficiente para se manterem. Formavam um casal que parecia se entender, em uma cumplicidade muda que ocultava a fragilidade de ambos. Não era raro trocarem carícias e suaves olhares de afago, timidamente, em público. Era um casamento mantido sob um véu de noiva, doce, encoberto, frágil.
Pois há alguns dias, foi ele, o rejeitado de outrora, que a deixou. Sem expressões, bem ao estilo que o marcou. Deixou-se ir como uma folha ao vento, para aterrissar no conforto e na riqueza da casa do filho, à beira-mar. Já com movimentos lentos, ela, envelhecida, chorou nos primeiros dias, dizendo-se viúva de marido vivo. Nunca tiveram filhos, não deixaram rastros da longa união. Nem no aniversário de 80 anos dela ele ligou para dar parabéns.
Foi mesmo um prenúncio de morte. O encontro acolhedor, aquilo que construíram, a cumplicidade, a fabriqueta de bolsas, o véu...tudo parece ter desvanecido em sua memória, quando ele, olhar distante, contempla da varanda um horizonte ilusório à sua frente. Sabe que aquela amplitude convidativa não o levará longe, como pensava outrora, quando, contente, brincava com os sobrinhos no mar de Santos. As ondas agora se desfazem sobre suas retinas, como muitos dos seus sonhos deixados para trás. É, acho que ele nem é mais são-paulino.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Começo e fim

Amigos de infância podem ser meros desconhecidos em tempos futuros. E colegas podem se tornar, com o amadurecimento, bons amigos. Há um espaço transitório em que essas premissas se misturam. Pensou nisso outro dia, quando se lembrou daquele rapaz, outrora um companheiro de escola.
Recebeu-o no dia do enterro de seu pai, na entrada do velório. O moço se desculpou, primeiramente, por não ter ido à circuncisão do seu filho. E disse fazer questão de compensar sua falha com a ida ao funeral.
Na hora ele compreendeu a atitude. Claro, mal podia pensar. Até agradeceu, comovido. Meses depois é que veio a dúvida. De repente refletiu. Era inversa a relação entre um enterro e um brit-milá. O fato de ir a um não compensa a ausência no outro. Pode ser mais fácil e cômodo consolar um fim do que celebrar um começo.
Então ele pensou na vida como um espaço transitório até a morte, nessa passagem cheia de alegrias e tristezas. Travessia implacável, sem volta. Somos obrigados a ser tolerantes diante das dúvidas insolúveis. E aceitar o enigma das pessoas. Que nos impedem de decifrar se elas são realmente nossas amigas ou colegas.

Origem

O nome Corinthians é de origem inglesa, assim como o futebol. Ambos chegaram ao Brasil pelos caminhos da história e se popularizaram. Entrei nessa miscelânea com minha origem russa. Em 1976, na sala de casa, pedia insistentemente uma bicicleta para meus pais. Sonho comum a todos os meninos de sete anos.
Sem recursos momentâneos, meu pai, em frente à TV já colorida, me apontou para tela e, com seu jeito terno e conciliador, me apresentou outra opção. “Vamos ver o jogo do Corinthians.” Aceitei o acordo. Corinthians e Fluminense, semifinal do brasileiro fizeram um jogo histórico.
A chuva dava um toque épico, abençoando os 120 mil presentes no Maracanã. Mais da metade era de corintianos, o que me empolgou. Ver, mesmo à distância, aquela vibração de uma massa humana por um time, uma causa, um símbolo de identidade, me tocou. Assim como a luta dos jogadores corintianos para superar a maior técnica do adversário. E vencer.
O auge desta saga, vivida em minha imaginação sentado no tapete, ocorreu ainda no primeiro tempo. O Corinthians perdia. Após um escanteio, a bola sobrou para um tal de Ruço, desengonçado, quase caindo fazer um gol de puxeta, na pequena área.
Ele tinha um cabelão permanente e ruivo. Fez o golaço mais feio que já vi. Discreto, disciplinado, fazia seu estilo rude parecer doce. Como se estivesse conformado, e feliz, com suas limitações. Como jogador e como brasileiro, carioca do subúrbio de Madureira.
A discrição russa, no brasileiro Ruço, mesclaram mais um ingrediente neste caldeirão do futebol. Este tempero, no entanto, foi feito só para mim. E assim me tornei corintiano. Passei a vivenciar todas as implicações desta nova paixão. Em vez de uma bicicleta, ganhei para sempre um presente melhor. Graças a uma meia-bicicleta.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Degustação

Logo que cheguei à mesa, em um aconchegante prato, me surpreendi que os clientes eram dois cachorros. Ambos tinham expressões faciais serenas com as quais simpatizei. Sentia o calor do molho em minhas costas. Mas outra energia ainda mais intensa irradiava no olhar do casal.
Ele era bem mais descolado. Percebi sua intimidade com as ruas, que se sentia à vontade naquele restaurante escuro, incrustrado em uma viela londrina. Eu sabia que estava em Londres porque, nos tempos em que era apenas trigo, nascido nos aveludados campos de Dover, fui transportado até aqui e nunca mais viajei. Cheguei, acredito ao meu destino. Mas não temo por isso. Esta é a minha função, como a de outros tantos pelo mundo. Servir, dar prazer, alimentar. Ser esquecido, fio anônimo.
Bem, voltemos ao casal. Ela tinha um olhar brando, vinha de uma classe social alta. Pouco conhecia da vida. Nem sabia o que era uma carrocinha, quando ele contou que foi preso em uma, ela não entendeu. Tão linda aquela cocker... Sorria, com timidez, das falas ousadas do companheiro, admirada pela falta de apego a convenções sociais. Mesmo assim via nele uma generosidade que jamais encontrara.
Meu colega Fio Gordo partiu antes de mim. Ele o abocanhou com o focinho aberto e o engoliu rapidamente. Então eles conversaram sobre a noite, sobre o que ela estava achando da aventura, sobre a visão de mundo dele. Falaram de liberdade. Ela nunca teve. Ele, por outro lado, teve demais, a ponto de transbordar para o lado da solidão. Sentia falta de carinho. Mas não dependia de dinheiro para se satisfazer pelo concreto das sarjetas. Sempre soube se virar. Afinal, era um vira-lata.
Depois de um silêncio profundo, ela deu um suspiro. Como se estivesse baixando sua resistência, aderindo ao desafio de se render ao desconhecido. E riu, novamente, antes de baixar a cabeça e se dirigir a mim. Vivi escravo de minhas características, com uma trajetória traçada, para muitos sem graça. Fui manipulado, moldado, às vezes maltratado. Nunca me consideraram como um ser individual. No entanto, eu sei que tive muita importância. Ele, sem perceber, me abocanhou pela outra extremidade. Fiquei esticado, entre duas bocas, tão cheio de orgulho do meu papel. Veio um certo constrangimento, então os dois sorriram. E começaram a me degustar, um de cada lado, até irem se aproximando rumo ao beijo. Enquanto unia dois mundos, enquanto efetivava um vínculo, eu ia desvanecendo, dando tudo de mim por uma causa nobre, empenhando minha existência pela felicidade alheia, mas na roupagem de ser secundário. E então sumi, sem que percebessem meu ato heróico, como fazem com a maioria dos obscuros que cumprem um papel precioso. É, os cachorros quando amam são mesmo cegos.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Sócrates

Meu pai me dizia, em tom de ensinamento, que o Sócrates era alto, esguio e magro. Eu ouvia intrigado aquela frase sobre meu maior ídolo. O estilo de jogar elegante e a postura libertária na vida eram um enigma para mim. Não combinavam com aquela estrutura física e mental estranha ao futebol. Esta mistura era fascinante. Seus toques entravam em minha alma de criança com a luz do céu, o marulhar das ondas, a poesia das palavras. Hoje acharam óbvia a opinião de meu pai, dada há tanto tempo. Mas ser alto, esguio e magro no futebol não é óbvio. Ainda por cima craque. Meu pai já antevia isso. Meu pai também era um craque.

Camisa de leite

Até hoje, de vez em quando, o cheiro de maresia, meio frio meio doce, penetra em sua respiração. As vezes até quando dorme. Então acorda, vê no abismo escuro do quarto uma espécie de linha cintilante, transição entre seu passado e o hoje.
Passado de quando ia sempre para Santos, nas férias, e por lá ficava. Enquanto via grupinhos de amigos reunirem-se no entardecer, no terraço do prédio, e preferia ficar isolado. Ou ao lado da família que era o seu porto seguro.
Numa das poucas vezes que se aventurou a ir brincar com a molecada, assustou-se com as conseqüências. Um menino vizinho, de classe social inferior, cabelos volumosos acostumados com o vento e chinelos havaianas envelhecidos, mordeu seu dedo médio, deixando marcas. Ele reagiu, mas ficou aquela impressão de que tudo era ameaçador. Impressão perene em sua infância. E que se misturava com o cheiro da maresia daquele balneário. Que tornava nebulosa a beleza da cidade litorânea, que conduz à leveza, incrustada nas escarpas da serra do Mar.
Naqueles tempos de susto também visitava a Vila Belmiro. Era corintiano, mas, em seus ideais, vislumbrava uma harmonia entre os rivais e, mesmo incomodado com provocações de torcedores mais agressivos, via algo de positivo no time do Santos.
Pelé mesmo era um exemplo. Chegou ao lugar certo, na hora certa, já que, nos anos 50, o clube praiano era tranqüilo, avesso à pressão que já existia nos futuros rivais da capital e que estragaria bastante o clima que um dia foi facilitador. No tempo de Pelé ainda não. Ele por isso foi acolhido, pôde desenvolver seu potencial sem aquela competitividade acirrada e maligna.
Mesmo confuso, já percebia essa essência na equipe santista, sempre que, ao lado de seu pai, se deparava com as arquibancadas envelhecidas da Vila Belmiro, vazias, mas que pareciam contar em seu silêncio um pouco de cada instante intenso das partidas abarrotadas de gente, de gritos, de calor. Um estádio sem jogo é como um armário que, em vez de objetos, guarda um acúmulo de momentos, passados e futuros.
O Santos sempre esteve aberto a meninos. Pelé despontou com 16 anos. Edu, com 15. E nos anos 70 acompanhava Nilton Batata, Juary e João Paulo, os Meninos da Vila. Intuía que, deixada de lado toda aquela turbulência emocional aterrorizante, também era um menino que precisava ser descoberto. Sua intuição, no entanto, perdia-se em cada contato com o outro, e ele se fechava.
Somente agora, já adulto, pôde se refazer. Não que hoje tenha se livrado de seu lado escuro. São outros os contornos e aquele temor antigo cabe apenas em um corpo mirrado e um coração palpitante de sete ou oito anos.
Então o que poderia ser um transtorno se transformou em uma espécie de terapia retroativa. Gosta de despertar de repente, de madrugada, envolvido naquela maresia. Purificado, bebe do leite de sua meninice, outrora amargo, agora alimento. Leite branco, que lembra a camisa de Santos e lhe remete àquelas férias.
O futebol alegre do Santos o encanta. Mais garotos foram descobertos, Robinho, Diego... ele. O encanto prevalece sobre os gritos agressivos da garotada na época. Eleva-se sobre lembranças turvas.
A beleza da cidade litorânea, deturpada por sua visão intimidada de antes, passa a ser sedutora. Meio fria meio doce. Olha para o dedo médio. A marca da mordida ainda está lá. Ela conta, como um retrato impregnado, sua história, sua dor. Por entre as faixas suaves das divisórias, sobre a pele agora amolecida, ele contempla uma mudança na trajetória. Como o tempo, ela está fazendo uma curva. Ele respira, maresia. Ela parece um sorriso.

Contornos

Escurece em Santo André.
Luzes pingam em vários pontos.
Nas lâmpadas das praças, nos prédios bem longínquos.
Outras se apagam, no fim do expediente, na Câmara Municipal.
O Fórum já fechou, silêncio de fora vem aumentando, englobando o Fórum, as ruas, as esquinas quase vazias.
Vozes ainda no departamento falam de política do concreto esquecido no dia seguinte. “Vou marcar para amanhã a reunião, que horas?”
Sons distantes de ônibus freando trazem uma sensação de liberdade, paz que se mistura ao som da chuva leve namorando o vento. Trovõezinhos sussurram como a percussão suave da orquestra.
Vento da noite, movimenta nuvens que vão tingindo o céu cinzento, desembocando no preto.
Da janela ele olha para trás dos prédios, não vê, imagina, e sua vista desliza para além do último para-raio vermelho.
Onde as montanhas se fazem serra, etapa derradeira rumo ao mar.
O teclado da menina ao lado soa emburrado.
Mas ele resiste à limitação estética da aparência.
Ele trabalha, sim, e muito.
Faz poesias na política de Santo André, pela escuridão que vai caindo, desfazendo mais um entardecer.
Escreve linhas olhando as árvores do Paço, onde está o seu espaço? Noite azul escura, cinzenta, abstrata.
Mergulha no cenário e trabalha. Vê sua imagem refletida no vidro com o fundo negro lá de fora. Parece sério, seu semblante ainda estampa tristeza.
Mas ele já sorri para o breu, que agora só traz o contorno desigual dos prédios. O breu sugere. Ele segue. Encontra o passo, espaço no Paço.
Trabalha o verso. Passeia pelas palavras, as esculpe, tateia aqui e ali, vai seguindo no caminho, transportado por luzes que pingam em seu interior, pela noite.

Mundos

Teu silêncio entrecorta o véu da noite
No semblante esculpido em pedra rude
As palavras entoadas como gotas
No veneno ensaguentado do chicote

Minhas carências te acenam no vazio
E meu peito se desfaz em mil pedaços
Do meu corpo emerge um canto de oceano
De pedidos que deságuam no meu pranto

Tão penosa é a travessia pelas horas
Na insônia que não cala tua angústia
De gemidos inauditos em quarto escuro
Nos lençóis que suam sombras interiores

Meus anseios transvarridos pelo vento
De uma fúria pelos roncos das cavernas
Tempestade de torrentes quase insanas
A golfarem pelos becos da minha mente

Tuas vidas divididas em continentes
Incontinentes desligados fragmentos
Borbulhando pelo magma do inferno
Nuvens cobrem tua ponte que une mundos

Minha luta obstinada de equilíbrio
Perde o chão neste abismo infinito
Pela linha que se rompe dolorida
Explosão que faz do amor uma quimera

A estrada

Guardava em si rastros de suas viagens a Santo André, para visitar seus tios e primos que lá moravam. Era uma longa travessia que ele fazia, levado por seu pai. Sua mãe viajava ao lado do motorista, ajudando-o a “pilotar” o carro. E com sua irmã, também no banco de trás, dividiam sonhos e divagações que emanavam enquanto olhavam a paisagem pela janela. Às vezes, cantavam, outras conversavam. Algumas dormiam no ritmo de solavancos protetores. Não era raro ouvir comentários do pai com a mãe, a destrinchar os indecifráveis caminhos da capital ao ABC.
Já na casa dos tios, apreciava, mesmo se intimidando com a presença de adultos e crianças mais velhas, um pouco de seu mundo isolado. No quintal, olhava o céu inebriado com as variações de cores, sob os murmúrios de um terreno baldio atrás do muro. Na pequena sala da entrada, assistia a jogos inesquecíveis, como a final do Brasileiro de 1976, entre Corinthians e Inter, e a derrota do Cruzeiro para o Bayern, no Mundial, diante de uma TV preto e branco. Lembrava-se também de um jogo entre Brasil e Colômbia em que seu pai, na honestidade sem barganhas que o marcava, comentou que o gol do Brasil veio através de uma jogada irregular, após o Valdomiro cobrar a falta com a bola em movimento.
As conversas com seu primo mais velho também não se apagaram. Recebeu bem intencionadas lições de educação sexual, com o rapaz lhe explicando algumas regras básicas do relacionamento entre homem e mulher. Recordava-se que o tio e a tia tinham um bem cuidado Fusca vermelho, sempre estacionado na garagem da entrada, feita para um carro. E que, apesar da presença semanal, nunca conseguiu se abrir diretamente com eles, nem com seus primos, sufocado por seus temores e colocando-os em um patamar muito distante do dele.
Os tios tinham uma cachorrinha, pequinês, chamada Xereta. O fato de a Xereta ser cega de um olho o afastava dela. Assustado, não conseguia ver que o animalzinho também precisava de carinho e atenção.
Até que, de repente, novos caminhos não mais o levaram para lá. Aquilo tudo ficou muito longe. Nem se lembra de qual foi a última visita que fez àquela casa. Nem de quando viu a Xereta pela última vez. Como que mergulhando em um longo sonho, foi acomodando aquelas cenas em algum lugar, sem encaixar respostas, nem encontrar explicações. Gostava ou não daquela torrente de emoções que o impediam de pensar?
Algo começou a se esclarecer quando retornou a Santo André, mais de 30 anos depois, contratado para trabalhar no município. As recordações passaram a emergir com mais frequência em flashes em sua memória de adulto. Ele, intrigado, não conseguia se lembrar com precisão do caminho que percorria nem o local em que a casa ficava. Tudo permanecia apenas uma sequência de sensações. Tentava em vão refazer o trajeto, agora conhecendo, com olhos de adulto, as ruas da cidade. Como será que meu pai chegava até lá? Lembrava-se que a casa ficava em uma rua longa, uma espécie de estrada margeada de sobrados classe média.
Casou-se, tornou-se pai. E o orgulho de mostrar suas conquistas o levou a convidar todos os tios para sua casa. Desta vez era ele quem tomava a iniciativa, mudando a configuração de outrora quando, ou visitava, ou recebia visita de aniversário na residência dos seus pais.
Então irrompeu a coragem de perguntar ao seu tio e primo o nome da rua em que moravam lá em Santo André. O tio demorou para responder, falando motivado de vários lugares da cidade, querendo ele também refazer sua trajetória, agarrar o tempo como se este não escorresse como água pelas mãos. O primo, entretanto, foi preciso: estrada João Ducin. Só com essa resposta, feita com o mesmo timbre amistoso da adolescência, percebeu também no parente uma relação emocional com aquele local, aquela casa em que morou, aquele tempo que passou.
Soube então que a imagem de um prédio amplo e acinzentado, um dos pontos do trajeto, impregnada em sua cabeça como sendo o Paço Municipal de Santo André era o de São Bernardo, de construção similar. E conheceu melhor a cabeça de seu pai, entendendo que ele entrava em Santo André via São Bernardo, que servia como uma espécie de ponte para encurtar a travessia.
Ouvindo-os falar de Santo André se aproximou tanto como nunca imaginara antes. Compartilhou reminiscências, alcançando respostas por meio de uma sequência que novamente o levava a algum lugar.
Reconstruiu uma trajetória, integrando-a à sua atual condição paterna. Entendeu, com muito mais intensidade, seu papel de primo e sobrinho. Neste seu aniversário ele pôde se apropriar de muita coisa. Dos jogos na TV preto e branco, da visão da Xereta, que não devia ser tão cega assim. Do tio e da tia, sempre zelosos cuidando do Fusca, do primo em busca da afirmação, da memória de seu pai. E de si mesmo.
Nesta nova Santo André, palco de sua atual rotina, pôde entender que a vida é feita de pontes, entre histórias pessoais, na costura entre cidades. E que aniversários são feitos de presentes. De novos, que, nos tempos de menino, pareciam inatingíveis, como filhos. E de antigos que nunca foram abertos, como um baú precioso, como uma velha família.

Passarela

O tempo afaga uma saudade vaga na serena serenata da paisagem dourada que se apaga com a noite das pessoas que passaram e da janela espiaram tantas paisagens tantas noites com o mar e o pôr do sol e o céu róseo desbotando as flores alvas perfumadas de pétalas aladas, em moinhos de vento, em sopros de afeto, no vazio do deserto, na pergunta perene a um decano profeta que entrou pela porta e saiu sem resposta.

Estrelas

Meu menino quer abraçar as estrelas. No meu colo na noite de verão ele olha para cima com um ar de surpresa, buscando entender cada ponto luminoso que explode um pingo de luz prateada. Pode ficar horas, mãozinhas erguidas para o alto, observando o céu e seus movimentos silenciosos. Em pé, o seguro com firmeza. Quero deixá-lo à vontade para que espalhe seus sonhos, suas indagações pelo espaço infinito, neste seu primeiro ano de vida. Até que ele conheça a realidade dos homens, as dificuldades de nosso mundo, gosto de vê-lo procurar respostas cheio de curiosidade, desenvolver sua esperança, alimentar sua pureza. Ele balbucia, dá gritinhos, solta sílabas em frases ainda indecifráveis, que eu chamaria de cósmicas.Faço até meus braços se cansarem. Até que a carga de sonhos para mim, que também já olhou inebriado para o céu, fique pesada. Disfarço então, tentando deixá-lo com a impressão de que nada disso está acontecendo. De que ele nunca irá se cansar. Assim espero. E antes de entrar em casa, sorrio satisfeito com o que consegui. Deixamos o quintal, entro pela porta e lhe dou um abraço, querendo eu abraçar as estrelas bem lá no fundo de seus olhinhos brilhantes.

Coração mecânico

Tua tecnologia cerebral, oculta o lado sentimental. Expande ferramentas e máquinas, que desligam sua infraestrutura vital. Emperram o funcionamento de seus gestos.Mascaram seus conhecimentos mais secretos. Rígidas como o hardware, diluem em si os amores,escondem em mim dissabores. Travam a resolução de seus dilemas. Processos matemáticos em enunciados problemas. Onde está tua alma, onde estão teus poemas?