segunda-feira, 5 de abril de 2010

Camisa de leite

Até hoje, de vez em quando, o cheiro de maresia, meio frio meio doce, penetra em sua respiração. As vezes até quando dorme. Então acorda, vê no abismo escuro do quarto uma espécie de linha cintilante, transição entre seu passado e o hoje.
Passado de quando ia sempre para Santos, nas férias, e por lá ficava. Enquanto via grupinhos de amigos reunirem-se no entardecer, no terraço do prédio, e preferia ficar isolado. Ou ao lado da família que era o seu porto seguro.
Numa das poucas vezes que se aventurou a ir brincar com a molecada, assustou-se com as conseqüências. Um menino vizinho, de classe social inferior, cabelos volumosos acostumados com o vento e chinelos havaianas envelhecidos, mordeu seu dedo médio, deixando marcas. Ele reagiu, mas ficou aquela impressão de que tudo era ameaçador. Impressão perene em sua infância. E que se misturava com o cheiro da maresia daquele balneário. Que tornava nebulosa a beleza da cidade litorânea, que conduz à leveza, incrustada nas escarpas da serra do Mar.
Naqueles tempos de susto também visitava a Vila Belmiro. Era corintiano, mas, em seus ideais, vislumbrava uma harmonia entre os rivais e, mesmo incomodado com provocações de torcedores mais agressivos, via algo de positivo no time do Santos.
Pelé mesmo era um exemplo. Chegou ao lugar certo, na hora certa, já que, nos anos 50, o clube praiano era tranqüilo, avesso à pressão que já existia nos futuros rivais da capital e que estragaria bastante o clima que um dia foi facilitador. No tempo de Pelé ainda não. Ele por isso foi acolhido, pôde desenvolver seu potencial sem aquela competitividade acirrada e maligna.
Mesmo confuso, já percebia essa essência na equipe santista, sempre que, ao lado de seu pai, se deparava com as arquibancadas envelhecidas da Vila Belmiro, vazias, mas que pareciam contar em seu silêncio um pouco de cada instante intenso das partidas abarrotadas de gente, de gritos, de calor. Um estádio sem jogo é como um armário que, em vez de objetos, guarda um acúmulo de momentos, passados e futuros.
O Santos sempre esteve aberto a meninos. Pelé despontou com 16 anos. Edu, com 15. E nos anos 70 acompanhava Nilton Batata, Juary e João Paulo, os Meninos da Vila. Intuía que, deixada de lado toda aquela turbulência emocional aterrorizante, também era um menino que precisava ser descoberto. Sua intuição, no entanto, perdia-se em cada contato com o outro, e ele se fechava.
Somente agora, já adulto, pôde se refazer. Não que hoje tenha se livrado de seu lado escuro. São outros os contornos e aquele temor antigo cabe apenas em um corpo mirrado e um coração palpitante de sete ou oito anos.
Então o que poderia ser um transtorno se transformou em uma espécie de terapia retroativa. Gosta de despertar de repente, de madrugada, envolvido naquela maresia. Purificado, bebe do leite de sua meninice, outrora amargo, agora alimento. Leite branco, que lembra a camisa de Santos e lhe remete àquelas férias.
O futebol alegre do Santos o encanta. Mais garotos foram descobertos, Robinho, Diego... ele. O encanto prevalece sobre os gritos agressivos da garotada na época. Eleva-se sobre lembranças turvas.
A beleza da cidade litorânea, deturpada por sua visão intimidada de antes, passa a ser sedutora. Meio fria meio doce. Olha para o dedo médio. A marca da mordida ainda está lá. Ela conta, como um retrato impregnado, sua história, sua dor. Por entre as faixas suaves das divisórias, sobre a pele agora amolecida, ele contempla uma mudança na trajetória. Como o tempo, ela está fazendo uma curva. Ele respira, maresia. Ela parece um sorriso.

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