sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Redenção

Uma estátua desponta em meio a uma cadeia de montanhas. Ela é ínfima, se comparada com o tamanho das abóbodas rochosas cobertas de mata na região. Mas acolhe, encanta, dá segurança, é referência, se torna esperança. Em seu desenho, de braços abertos para a realidade, segue firme diante das tempestades, do sol forte, das rajadas de vento e do som ameaçador dos trovões. A ideia de colocá-la lá em cima, exaltando o conceito de redenção, foi a epifania de uma cidade. Mudou a história do Rio, coloriu-o com um glamour único, abriu caminhos para um novo século, para a democratização das praias, para a transformação de semblantes sisudos em sorrisos. Todos esses valores, extraídos somente da alma de uma peça de concreto. Imaginem, então, a capacidade transformadora de cada homem que um dia resolve subir a montanha. E ficar de braços abertos para a vida.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Embarque

Da sala de embarque do aeroporto, ele pode ver, pelo vidro, o emaranhado de prédios na sua cidade. Ele parecia estar de fora daquela correria do dia-a-dia. Sentia-se alheio aos movimentos urbanos, como se o aeroporto fosse um muro transparente de isolamento e contemplação. Avistou algo especial nesta cordilheira de concreto, iluminada pelo sol quente da manhã. Era a antena triangular, de um edifício vizinho ao do seu analista. Podia, agora, vê-la de outro ângulo, bem diferente do qual estava acostumado quando a via da garagem externa. A antena serviu como uma referência. Da cidade e de seus vários enfoques. Percebeu a análise como uma travessia feita de viagens interiores. Independentemente de onde estamos. Vivemos em uma sucessão de aeroportos imaginários. Em cada um, uma nova paisagem, um novo detalhe a serem observados por nós através do vidro de uma sala de embarque. Sempre de passagem na mão. E rumo a um destino incerto.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Gato

Parou à beira da praia, observando a paisagem. Viu à sua direita o morro Dois Irmãos. À esquerda o Arpoador. A beleza local era estonteante, gente correndo ao seu lado, sol forte, céu azul, brisa refrescante. Ilhas brotando de um horizonte sedutor. De repente, uma onda estourou em seus pés. Água geladíssima, de doer os ossos. Nunca gostou de mergulhar neste tipo de mar. Uma resposta se esboçou no ato quando veio à sua mente o famoso ditado. “Gato escaldado tem medo de água fria”. E qual água fria em sua vida ele tanto temia? Qual dor aguda tocou seus ossos tal qual aquela sensação polar? Um acúmulo delas, experiências cortantes aqui e ali. Mas ele não sabia ao certo. Nem queria saber naquele instante. Mal a resposta se esboçou, ela logo se diluiu na maresia. A ele só restou uma certeza, que continuaria a carregar. Naquela água ele não mergulharia, de jeito nenhum.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Festas

A babá tinha dois empregos. Na terça e na quinta ia na casa do Edu, um garoto magro, pele bronzeada e olhos azuis. Cara de menino dengoso, quieto e esperto. Na sexta cuidava de uma criança de três anos, dotada de uma beleza cativante. O menininho sabia até falar "paladoxo"... Ela praticamente o vira nascer. Um dia o pequeno, com a babá, encontrou o Edu no clube. O Edu se comportou com ética, não interferiu no trabalho dela. Foi brincar por outras bandas. Mas ficou uma relação entre o pequeno e o Edu. Depois brincaram juntos na biblioteca, sozinhos, tentando adivinhar as figuras dos livros. A moça, que se tornou um elo entre eles, já tinha ido embora. Fora viajar no período de festas. Dias depois, na lerdeza do início do ano, o pai do garoto pequeno teve de ir ao clube, quase sem ninguém. Viu, porém, o Edu chegar à lanchonete, com aquele mesmo jeito introspectivo e atento do dia em que brincou na biblioteca. O Edu estava lá, mas não estavam o seu filho e nem a moça. Nem os gritos cheios de alegria, do seu filho, e a voz orientadora, com sotaque nordestino, da moça, que costumavam ecoar pelas quadras e alamedas de lá. O ecoar, agora, era um ecoar latejante de ausência. Algo misturado a uma imagem invisível, mas presente. E num pequeno milagre, o semblante dos dois se refletiu nos olhos do Edu. Olhos tão azuis, como um céu que, em sua infinitude, naquele momento era preenchido de saudade e de silêncio.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Engano

O corrupto é acima de tudo um fraco. Comemora decisões da justiça favoráveis a ele. Justifica o cinismo de muitos magistrados, que argumentam julgar com a razão, mas que fazem parte de um complô hipócrita. Não há dúvida de que a corrupção de valores, éticos e financeiros, é o núcleo dos males que assolam o país. Neste pântano de lodo enganoso, o corrupto comete o auto-engano de se achar esperto. De considerar que apenas faz o que os outros fazem. Ele está, na verdade, escondendo a sua depressão. Negando sua condição de mortal. É alguém que, por mais que viva com conforto material, já desistiu de viver realmente. Rendeu-se diante das adversidades da realidade. Resolveu vendê-las, mas na verdade é quem está pagando o preço mais alto por isso. Ele é um fraco porque acredita que não é capaz de ser reconhecido e de enriquecer com o esforço de seu trabalho, com seu talento, com seus próprios méritos.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Gritos

O velhinho abandonado na clínica de idosos não parava de gritar do seu quarto, deitado de pijama no leito: “enfermeira, enfermeira, enfermeira....” Fiquei com pena dele, porque, vendo seu olhar cansado, suspeitei que um dia ele desistira de gritar: “filho, filho, filho...”

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Treino

Puskas era amigo de Bozsik. Budai era amigo de Hidegkuti, que era amigo de Kocsis que era amigo de Czibor, que era amigo de Grosics, que ajudou Puskas a ser amigo de Kocsis. Foi desta maneira que a seleção da Hungria não se tornou apenas um time de futebol. Era uma ciranda de amizade. Cada preparativo era mais do que um treino. Era uma reunião de turma.

Enganos

Jean–Jacques Rousseau uma vez escreveu que não haveria nada mais irracional do que um mundo feito de sábios. Se existe o gênio é preciso que haja um povo para ser instruído. Disse ele, no século XVIII, que o mal da humanidade não é a ignorância, mas o engano. Os maiores equívocos são fruto de pensamentos e atitudes daqueles que acham saber o que não sabem. Antes, Sócrates afirmara: “Só sei que nada sei”. Juntando as duas filosofias, podemos encontrar uma luz. Seria mesmo irracional um mundo apenas de sábios. Mas seria importante que todos os ignorantes e os que se enganam tivessem a vontade de aprender. Como o conhecimento é infinito, eles aprenderiam cada vez mais a saber que nada sabem. Mas também poderiam ensinar ao outro o que aprenderam. Com o tempo, a sociedade ficaria mais equilibrada, com o ser humano atuando em múltiplas funções, como se diz no futebol. Nesse carrossel de informações, ficaria mais claro que a ignorância é o limiar entre a sabedoria e o engano. Então o homem aprenderia ensinando. Ensinaria aprendendo. Enganar-se-ia menos. Ensinaria a verdadeira sabedoria aprendendo a ser ignorante.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Goool

Às vezes penso que a imagem alegre do brasileiro esconde algo depressivo. Uma melancolia oculta que, em vez de dançar o triste tango, samba. E que gargalhadas até altas horas na mesa de bar, regadas a copos de cerveja, são sorrisos para espantar a tristeza. Muitas destas almas puras, tristes ou arrebatadoras, impulsivas ou comedidas, se foram eternizando sua fama de brasilidade: Garrincha, Noel, Ari, Sócrates, Nelson, Heleno, Flávio Costa, Telê, Zezé. Fui ao Museu do Futebol. Qualquer museu já é um lugar onde a contemplação namora o passado, eternizando o que no presente era efêmero e que concretamente acabou. Nos andares daquele galpão vi fotos, lances, ouvi narrações de muitos que já partiram. No fim, em 3D, há um filme em que Ronaldinho faz embaixadas em cenas intercaladas com um esqueleto humano controlando a bola. Cenas soturnas, com um fundo verdadeiro: a essência singela e triste do futebol brasileiro, feita de ossos e sonho. Bela alegoria que alivia e distrai. O futebol tenta driblar a morte. É uma negação dela. O gol simboliza a vitória da vida. Por isso o locutor demora tanto ao narrá-lo. O grito "Goooollll..." pode ser uma maneira de prolongar o quanto se puder a vida, até o último respiro. Antes dela morrer no fundo das redes. E se transformar em saudade.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Loucos

A ingratidão o feria, a mudança de humores alheia o esvaziava, o egoísmo descabido o chocava. Até que um dia ele resolveu compreender que o ser humano é complicado mesmo. E que ele deveria, primeiro, respirar e, depois, sorrir diante das adversidades. Para não enlouquecer sufocado de lucidez.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Turista

Disse o escritor Amós Oz que a obra de Jorge Amado o tocou muito mais na infância do que na maturidade. "Não sei se foi eu que mudei ou foi ele!", brincou. A frase me remeteu às vésperas de uma viagem que eu iria fazer com um grande amigo, anos atrás. Estávamos na praça de alimentação do Shopping Eldorado, um lugar muito frequentado por mim na época. Naquele momento, porém, via tudo com outro olhar. Um olhar mais contemplativo. Estava de férias, sem a pressão de quem vive na cidade. Observava tudo como se fosse um turista. Comentei isso com meu amigo, dizendo frase semelhante. "Parece que estou em outra cidade". Na verdade, a viagem me trouxe uma inusitada sensação de liberdade. Estava mais descompromissado com minhas amarras de habitante. Eu havia mudado. E por isso, o que me cercava mudou. De repente, Amós Oz também se sentiu livre de suas amarras. Viu-se ele, também, capaz de escrever obras-primas.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Questionários

Uma professora contou que certa vez fizeram uma pergunta a um escritor brasileiro, em Londres. "O que o sr. sabe sobre literatura inglesa?" Ele respondeu, com um leve sorriso. “Tudo”. O episódio foi relatado em um curso de redação do qual participei. Aos risos, a presunção do escritor ficou idealizada. Algumas pessoas, no trabalho e nas relações pessoais, gostam de se gabar do que pensam, do que fazem, de como fazem. O time que escolhem é o melhor, o carro que compram é o mais bonito. Padronizam um jeito de ser aparente. Às vezes até uma postura silenciosa esconde uma falsa discrição. E o modelo é seguido por colegas, alunos, parentes, fãs, levantando nos ambientes uma poluição invisível. Eu, que pareço conhecer tudo sobre futebol, sou todo momento questionado por dois meninos, um de três outro de nove. Em jogos pela TV, o mais novo costuma perguntar o nome dos jogadores mais desconhecidos, de times estrangeiros ou sub-20, esperando de mim uma informação precisa. Fico sem graça e digo: não sei, vou pesquisar. O mais velho já me perguntou por que o foguete não substitui o avião se ele é mais rápido. Gaguejei. A curiosidade infantil, cheia de sabedoria, insiste em me colocar diante da minha ignorância. Pequenos questionários se transformam em grandes lições. É, acho que o tal escritor nunca teve de responder à pergunta de uma criança.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Despedida

Um homem se despediu do ano correndo no parque sozinho, naquele dia nublado. O céu cinzento afugentou o público e deixou o local livre para ele. Deu prazerosas voltas no pequeno reduto verde, feito de trilhas pavimentadas, gramados e árvores baixas. A música, em uma retrospectiva da rádio, serviu para que relembrasse os dias vividos neste período, muitos deles neste lugar. Ouviu Adele e se lembrou dos momentos em que correu na mesma trilha, atribulado pela pressa de ir ao trabalho. Depois escutou canções de Beyonce, Bruno Mars, Lady Gaga, que tão bem retrataram o ano que se encerrava. Percorreu novamente os meses, os dias e as horas no ritmo de suas passadas. O ar leve estimulava. Ele se sentia parte da natureza. O parque e a amplidão do céu sussurravam frases, sopradas pela brisa suave, para sua reflexão. Em conversas consigo mesmo, ressoava um diálogo com o futuro, com o passado, com o universo que o cercava. Ele sempre foi assim nestes momentos de transição, em que a despedida de tempos antigos é um convite para novas descobertas. Desde criança. A paixão por esporte e música se mantinha. Assim como a habilidade de utilizar cada passo de sua corrida para pensar e superar fronteiras na passagem de seus anos. E se alguém de fora visse esta cena, poderia muito bem cantarolar para si. “Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo...”

Diploma

Um jornalista pode muito bem comentar um jogo, demonstrando conhecimento, sem ter sido jogador. Um professor de Educação Física também pode dar aulas em categorias de base sem ter atuado dentro das quatro linhas. Sempre há maior espaço para quem estuda. Boleiros que falam o contrário, na verdade, estão entrando na perigosa trilha, alimentada pelo baixo índice educacional do país, de desvalorizar o ensino formal e o aprofundamento por meio da pesquisa. Mais sensato, agora que podem, seria eles cursarem Jornalismo e Educação Física em vez de criticar os diplomados. Para ser comentarista e professor, de verdade, visão de campo não basta. É preciso ter visão de mundo.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Frios

As cartas de Voltaire são um prenúncio da era dos blogs na internet. Ele fala da vida, dos costumes e da filosofia da sua época, o século XVIII. Um observador que observa e pouco se envolve. Apesar de ter vivido em uma época duríssima para os críticos, parece-me uma figura estranha. Nisto ele foi um gênio involuntário. Esparramou uma série de informações intelectuais para o leitor e escondeu seus sentimentos atrás delas. Antecipou, ou simbolizou, um fenômeno atual, típico de um tempo em que jornalistas mal conseguem demonstrar tristeza diante da morte de um colega. Ficam rondando com frases racionais, do tipo, “tinha um texto sofisticado” ou destilando informações concretas, sem a eloquência, a humildade e a sabedoria dos grandes. Mesmo em artigos opinativos, não conseguem deixar de demonstrar uma frieza assustadora. Transformam-se em intelectuais que escrevem para competir uns com os outros, muitas vezes alfinetando os leitores. Teclam com dedos de aço. Não deixa de ser um preconceito achar piegas qualquer texto borrado com uma lágrima, que transmita algum conflito pessoal, humano. Voltaire, entretanto, tinha um caráter profético. Foi inábil para, sem querer, deixar sua sombra aparecer junto com a luz de seu conhecimento. Foi presunçoso dizendo-se humilde, na generosidade de seu cinismo. Por isso mostrou-se um ser humano completo. Por ter sido grande como os maiores filósofos. E também pequeno e invejoso (ok, não posso fugir agora) como eu.