quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Blindados

Enquanto eu dirigia, ouvia uma música no rádio quando um movimento brusco me deteve. Brequei para não ser esmagado, na lateral, por aquela massa de aço gigantesca, que passou como se nada tivesse acontecido.
Tive a mesma sensação de um marinheiro, em uma humilde embarcação, no momento antes dela ser abalroada por uma baleia em disparada.
Mas a sina e o susto continuaram a me perseguir. Criaturas assim aparecem à minha frente nos momentos mais inesperados.
Atravessei a rua, após se certificar-me de que o farol de pedestres estava aberto, quando, de repente, outro objeto metálico gigantesco quase me atropela, ao deixar a vaga em que estava estacionado.
Lá no alto do volante, vi Noé em sua arca. E acima dos mortais que se afogavam no asfalto, nem menção a qualquer pedido de desculpas. Nem um ressoante “tan-tan” da buzina, como um navio que apita na noite silenciosa dando sinal de vida e humanismo. O piloto da nave espacial continuou enfurnado em sua cabine blindada.
A definição de utilitário para o SUV, do inglês, "Sport Utility Vehicle", tem sido distorcida nestes tempos de modismos, em que a tentativa de aparentar força e poder ditam regras sociais.
Em vez de ser usado para levar famílias numerosas, de maneira plácida e educada, o meio de transporte se tornou símbolo de ostentação, com um aspecto de grandiosidade em que fica impossível esconder o desejo de ensejar superioridade.
Não é raro sair destes tanques de luxo, nos estacionamentos, apenas uma jovem de aspecto frágil, com roupas da moda e cabelos lisos, deixando atônitos os manobristas. A expectativa deles era ver, por de trás do vidro escuro com Insulfilm, sair alguém com aparência bem mais agressiva, talvez três ou quatro brutamontes que mal conseguiriam preencher o espaço do veículo.
Claro que não falo de todos que utilizam esses carrões pelas ruas esburacadas das capitais brasileiras. Mas falo de muitos.
Quantas não são as vítimas que já se sentiram agredidas por uma luz possante vinda na pista da esquerda, prometendo estraçalhar quem não sair da frente? Muitas vezes parecem blindados de guerra. A maioria inclusive deriva destes jipes.
E é dentro da guerra urbana que eles servem, como instrumentos de um conflito humano estacionado na ilusão da onipotência. Na ânsia em se mostrar forte, grande, vitorioso. Estes veículos combatem mais do que trafegam, obcecados por impor alguma mensagem de grandeza. Querem a todo custo provar que o porto seguro está lá em cima, na cabine. O ronco porém é menor do que dores que transitam escondidas.
Motorista e carro parecem uma coisa só. Os contornos poderosos do aço, a tração nas quatro rodas, as longas fileiras de banco, a possibilidade de andar em terreno on e off-road são partes integrantes de uma carcaça dura e de uma alma frágil.
Ó, benditas camionetes que nos conduzem por essa embriaguez material! Os danos de seus impactos sobre os outros são duplos: destroem mais, na forma de colisão e, aos mais inseguros, de opressão. Além de, espaçosos, prejudicarem ainda mais um trânsito em tempos de ciclovias. Em vez do cuidado, a ameaça em cada fechada.
O puro conforto e o prazer em dirigir batem de frente com a falta de conforto emocional. O labirinto de ruas e de angústia se frustra a cada acelerada potente.
Repito que não me refiro a todos. Há os que dirigem enraizados em motivos profundos: um desejo do falecido pai, uma realização verdadeira ou a consciência da ostentação, mas sem o objetivo de jogar na cara a superioridade sobre os que estão “lá embaixo”. São os que vão além da explicação “a vida é minha eu faço o que quero”. De qualquer maneira, sei que haverá oposição, buzinaço, panelaço ou o que quer que seja. E se alguém que dirige esses turbos se ofendeu, só peço uma coisa: calma! Eu lhe dou passagem.