segunda-feira, 25 de junho de 2012

Invenções

A obra-prima sempre esteve dentro de seu autor. Ele apenas a moldou, no momento certo, para que ela aparecesse diante dos outros. Um amigo me disse uma verdade: no mundo, a sabedoria não pode ser inventada. Ela só pode ser descoberta.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Exigente

O inconsciente é um ser consciente. Sabe que não quer ser descoberto. Mantém artimanhas para ludibriar a consciência, boicotar algumas soluções. Muitos inconscientes traumatizados até lutam para não superar o trauma, tamanho o medo do desconhecido. O inconsciente se esconde em sorrisos melífluos, sob gargalhadas exageradas, em palavras inconsistentes, em trajes aparentes, em gestos de repente. O inconsciente tem plena consciência de que não quer perder seu poder. Mas o inconsciente é iludido pelo seu próprio inconsciente. A vida se organiza numa sequência de caixas embutidas umas nas outras, dentro da mente. O inconsciente do inconsciente, no fundo, quer atenção permanente. Precisa ser compreendido, satisfatoriamente. Não existe ser mais carente, do que o nosso inconsciente.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Alienado

Ele gostava de ver o rosto contorcido de esforço de um jogador. De admirar o suor pingando da ponta do queixo. Da boca aberta ofegante após um pique. Do beijo na camisa, principalmente se fosse de seleção. Do abraço e de uma conversa sorridente entre adversários. De um carrinho duro, mas da mão que levanta o que tombou na luta. Do drible desconcertante em jogada secundária. Adorava imaginar o desenho que a linha da bola traça durante uma longa troca de passes. Da grama, surgiam cordilheiras, triângulos, parábolas, evoluções em espiral, traços e vazios infinitos. Tudo isso acompanhado pela trilha sonora de murmúrios, urros e silêncios retendo uma emoção muda. Desde a infância, seu olhar se distanciava léguas do moralismo da vitória ou da derrota. Passava pelos rostos dos torcedores. Pela energia do estádio. Pelas falhas na pintura da marquise. Pelo sol da tarde que polvilhava raios luminosos naquela catedral. O gol somente? A tática solitária? Eram apenas para especialistas. Os que diziam que ele não entendia nada de futebol.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Canarinho

Hoje faz trinta anos que uma das páginas mais belas do nosso futebol começou a ser escrita. A seleção brasileira de Telê Santana estreava na Copa do Mundo de 1982. Venceu a URSS por 2 a 1. Pelos soviéticos, além do grande goleiro Dasaev, jogava o atacante Blokhin, atual técnico da Ucrânia na Eurocopa. Telê e o capitão Sócrates já morreram, a URSS Soviética se desintegrou. “Voa, canarinho, voa”, era o refrão da música cantada pelo Júnior, do Brasil. Para mim, esse canário, que voa de e para tão longe, se chama Tempo. E, diferentemente de nós, não envelhece nunca.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Guardador

O seu pai bigodudo tratou o guardador de carros bigodudo com tanto respeito que o menino começou a falar a escalação do Corinthians cheio de orgulho, como se conversasse com o mais famoso cronista esportivo. “1 Tobias, 2 Zé Maria, 3 Moisés...” O guardador sorriu e elogiou o conhecimento do menino. Quis agradar pai e filho que o trataram com tanto respeito, no terreno baldio em frente ao estádio do Morumbi.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Silêncio

Um homem observa a chuva cair na poça da garagem externa. Silenciosamente. Uma corrente de nuvens agita o céu. Em silêncio. Na cama, o casal olha para o teto, em silêncio, refletindo sobre a vida após a transa. E o filho não sabe o que significou a ausência de palavras na resposta do pai, feita apenas com o olhar. O silêncio confunde, angustia. Mas é sagrado. Tudo acontece na sequência do silêncio. Dos calados de Raul Seixas emergem surpreendentes revelações interiores, pensadas, pouco expostas, presentes. Os tagarelas amadurecem na introspecção. Um silêncio pode ser sepulcral, nem por isso morto. Mas também pode matar. Maquiavélico. Faz isso para no cemitério nos dizer algo além das letras nas lápides. O silêncio descansa no avanço, revela temores, como uma serpente invisível que se expõe tentando se ocultar. O silêncio, irmão do tempo, também é infinito. Está na essência da música. A faz continuar quando acaba. Se ela for boa, silencia um ruído em nós. E se for ruim, tira a melodia de nossa esperança. Nem as estrelas escondem seu brilho no silêncio. O silêncio precede o choro do nascimento. Todo o universo se calou, antes da explosão inicial. E depois da vida na Terra, retornou a seu estado emblemático. Voltou a ficar em silêncio, deixando apenas os homens perdidos em seus barulhos.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Prisioneiros

No campo de refugiados no Chipre as condições eram precárias. Crianças andavam em meio ao calor. O clima era seco e o amontoado de barracas ficava sobre a areia. Havia torres de observação em cada extremidade. Arames farpados cercavam o local, como se os judeus sobreviventes dos campos da Alemanha fossem bandidos. A água era escassa, para beber e para tomar banho. O verde não existia. O sol escaldante sufocava e oprimia, mas a luz das estrelas reacendia a esperança. Ela nunca deixou de existir, mesmo sem água, mesmo sem vegetação. Quando a futura estadista adentrou ao local para visitar aquelas pessoas, recebeu um presente de duas menininhas. Elas se aproximaram com timidez para lhe dar um singelo buquê de flores, feito com a ajuda das professoras do maternal. Eram flores de papel. Muito melhor do que se fossem de verdade.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Dualismo

Ele viu a multidão ondulante o contemplando. Sentiu o calor da massa, a energia e a vibração daquele clube cheio de tradição. O pulsar abafado, ao som de bumbos triunfantes com sua chegada, fez seu grito ecoar e se amplificar naquela gente. “Flamengo é Flamengo”, disse, com a voz trêmula, como se de dentro dele saísse uma revoada de colibris. Um tempo se passou. Após ficar sem receber pagamentos, perceber a falta de planejamento em torno de seu nome, ser motivo de confusões e intrigas mesquinhas, sem nem se constranger com as regalias que culminaram com a sua saída, emendou, para os poucos que ficaram para ouvir outra verdade. “Flamengo é Flamengo”.

Mundos

Adoro futebol. Não quero, porém, falar só sobre isso com você. Não quero que nossa relação fique cristalizada em uma bola, em um jogador, e eu não possa conhecer mais seu mundo - e você o meu - principalmente quando você está com sono ou quando se esquece do meu carinho e não quer nem me ver. Então saio de cena uma, duas, três, quantas vezes forem necessárias, até que um dia eu me canse, de falar de futebol.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Gangorra

De um lado da alavanca havia a raiva. De outro, o medo. Eles se equilibravam. Ora um ora outro estava por cima. No eixo central, fruto desta interação estava a irritação. Era desta gangorra que ele queria saltar em sua infância. E sair pelo parquinho para procurar outros brinquedos, conhecer a diversão de apenas ser criança.