sexta-feira, 28 de março de 2014

Viaduto

A mulher jovem dorme, no colchão à beira de um gramado na rua. Lá embaixo, atrás dela, a avenida flui em seu trânsito indiferente. De moleton velho e camiseta azul, ela está um pouco contorcida. Estampa acima dos lábios uma ferida seca. O rosto sujo não esconde a tranquilidade do sono. Parece viajar em outro mundo, menos indigno, menos imundo. Seus cabelos claros e lisos não escondem a oleosidade. Um pouco à sua frente, mais à esquerda, um homem também dorme profundamente. Ele, porém, está na calçada, esticado no concreto. O que sonha aquela figura empobrecida, que exala uma feição embriagada, rodeada de sacos de arroz, garrafas de refrigerante vazias, sacos de plástico molhados e papéis de embrulho amassados? As pombas aproveitadoras exploram as migalhas de pão que se espalham ao lado do casal. O que posso fazer por vocês no egoísmo dos meus problemas mesquinhos? No meu mundo pequeno, talvez imundo também, começo a me irritar no carro, sobre a rua em aclive, na entrada do viaduto. O cara da frente, afinal, não anda. Olho para o casal e penso então que posso fazer algo por eles, a menos de três metros do meu lado. Tão longe e tão perto de mim. Como uns dos outros neste mundo. Resolvo ser o único a poupá-los de barulho, ou de um incômodo que os acorde. E mesmo que o farol feche sem que eu passe, não buzino.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Evolução

Chegou um momento em que ele não mais temia se afastar do que sempre chamou de amigos. Foi quando os defeitos pesaram mais do que as qualidades, que ele já não fazia questão de ver. Ele, que sempre foi um crítico dos que só viam a própria família, sentiu-se impelido a ser assim também. Mas de uma maneira mais afetuosa. Sem o ímpeto egoísta que o perturbava. E que só agora ele se dava conta de que não tinha a responsabilidade de corrigir. Ele, finalmente, evoluiu.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Sustentabilidade

Sustentabilidade é um tema mais do que atual. Mas acompanha o universo desde o seu início.  Nas conversas em geral o termo se relaciona aos aspectos ambiental, econômico e social do planeta. Para que haja sustentabilidade nesta biosfera é preciso, porém, haver uma outra sustentabilidade. Diz o Wikipedia que sustentabilidade é a habilidade de sustentar ou suportar uma ou mais condições, exibida por algo ou alguém. Isso significa, no nosso dia a dia, suportar frustrações, manter o equilíbrio diante de adversidades, respeitar a ética no jogo pelo poder, controlar o lado primitivo e egoísta que descamba para a corrupção e a indiferença. Também é não terminar um casamento porque um gosta de pizza e o outro de hambúrguer. Saber construir relações sólidas com as pessoas é outro item fundamental. As situações de sustentabilidade emocional são inúmeras, até infinitas. Estão em todo o lugar, não há como fugir. Como diz Renato Russo, o caminho é um só. É o de se empenhar para sustentar uma promessa, uma amizade, um objetivo. Aprender com os tropeços a sutentar uma família. E por que não, o sucesso? E a suportar as próprias limitações. No repertório entram ainda a reciclagem da inveja e da mesquinhez, transformando-as em material orgânico que favoreça a vida. Cada um sabe o seu próprio grau de sustentabilidade. Sócrates, que sustentou até o fim a sua convicção, diria: conhece-te a ti mesmo e verás se no teu corpo pulsa ou não um coração mineral. As pessoas confiáveis são sustentáveis. Já acordam emanando uma energia limpa e renovável. A maior das sustentabilidades está no sol que desperta a vida, nos mananciais que refrescam a alma, nas cavernas de onde ecoam as respostas mais profundas. Tudo isso, é claro, dentro de cada um.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Reprise

A novela Água Viva passa em reprise na TV. Remexe no curso da vida dele, restaurando sonhos que ondularam rumo ao mar. Deitado no sofá, o moço de meia idade olha para a noite e vê a cordilheira retilínea de prédios, iluminada por luzes que parecem acenar do passado. Seu universo de outrora se move por trás de todas as cenas.  Pelos diálogos, pelas  lágrimas e pela vista do Rio dos anos 80 ele vê projetados, por trás ou por dentro das telas, todos os gestos e sentimentos que vinham dele naquele tempo. As músicas de fundo dão um toque especial. Se fundem à imagens refletidas na porta de vidro da sacada. Se misturam com a noite, com a cordilheira, com aquela época tão distante e tão presente nele. Edyr caminha pela praia melancólico, ao som de Styx. Quem era aquele personagem? Cláudio Cavalcanti e sua ternura canalizada para a trama? Apenas um professor abandonado? Um homem esmagado pelos conflito entre humanismo e materialismo? A premonição do que ele, telespectador em sua sala escura, seria hoje? Ou o encanto inconsciente da sua própria infância, representado na tela? Intuía estas perguntas com placidez, como se todas as respostas fossem um uivo de solidão, como se todas elas fossem as belezas imperceptíveis da vida, apenas travestidas de dramas. Uma sinfonia de feixes de luz se mistura ao espelho da noite e refrata pelo vidro da porta corrediça diretamente em seu coração. O moço então respira o fresco orvalho da saudade, dança internamente com os personagens que também eram ele, a ressurgirem como espíritos, mesclando realidade e imaginação, evoluindo por ondas agitadas rumo à calmaria.  Este momento é uma viagem que o conforta. Sente sua vida como uma reprise que se renova. Uma novela que tece os fios de sua alma e urde sua identidade.  Sua memória é uma prece que se move pela brisa da esperança, rumo ao sono, à consciência leve, tal qual um navio carregado que se aproxima do porto para descansar de suas jornadas, acalentado pela névoa rósea de cada amanhecer.

Pedidos

Um dia ele acreditou que pedir era algo natural. Como subir no ônibus. Ou beber um copo d’água. Com o tempo, ele percebeu que pedir era um peso. Ficou descrente. Fechou-se. Então decidiu nunca mais pedir nada a ninguém. Nem pelo amor de Deus.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Brigas

Antes de atingir seu objetivo, ele achava que não valia comprar briga com o mundo. Mas continuou achando o mesmo depois, justamente porque havia atingido seu objetivo.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Crédulo

Não acredite no que outros falam, mas sim no que você faz.