segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Malandragem

Quando ouço alguém, em geral homem, bradar que a fidelidade a um clube é maior do que a fidelidade a uma mulher, desconfio do machista. Fico com a impressão de que ele tenta revelar a lealdade do torcedor e não percebe que está expondo com isso um desvio de caráter bem comum nos tempos de hoje: o de se gabar de ser malandro. Ele tenta fugir da sua realidade frágil, mas na verdade se aproxima dela sem perceber. O futebol é mesmo um espelho da sociedade. Às vezes invertido.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Medieval

Serei aqui advogado do diabo, só para utilizar um termo bem medieval. Unir o racionalismo científico à fé não é fácil. Requer uma abertura de espírito, para os espiritualistas, e de mente, para os racionalistas, que por si só já é um avanço para a humanidade. É uma forma de conciliar lados opostos. Lembrei-me do embate visceral do medievalista Léo Nafta com o progressista Ludovico Settembrini em A Montanha Mágica. Nafta, em sua violência verborrágica, não soube expressar de forma clara o lado iluminado da Idade Média. Apenas tripudiou o lado iluminista de Settembrini, até a sua própria autodestruição. Nafta suicidou-se no duelo final. Não quer dizer que ele estivesse totalmente errado. É comum nos tempos atuais se jogar o bebê junto com a água, como se diz o jargão popular. Por isso a Idade Média é tratada apenas como Idade das Trevas. Justo o período em que surgiu a escolástica para unir a ciência à religião. Representada por Santo Agostinho, no início, e São Tomás de Aquino, no fim, só por isso esta era já pode ser considerada iluminada. Depois vieram o antropocentrismo, o Renascimento e o Modernismo com suas cores frenéticas e certa arrogância questionadora. Que pregava uma ruptura de dogmas, mas negava a tentativa semelhante que a própria escolástica buscou realizar. Criou assim seus próprios dogmas, com ares de novidade. Esses modernos são muito presunçosos mesmo...Mas, calma, não vou me suicidar. Prefiro tentar a conciliação, da minha fé com a minha razão.

domingo, 21 de agosto de 2011

Párias

Deu um abraço afetuoso no menino e sentiu-se repelido. Ninguém olha para o padrasto. Ela nem sabia que ele era casado e agora não quer se separar da esposa. Ninguém olha para a amante. Desde jovem dedicou sua vida à religião, fez voto de castidade pelo bem e o chamam de retrógrado. Ninguém olha para o padre. O mendigo tem aparência tão repugnante que já é considerado um espantalho na cidade. Ninguém olha para o pobre. O pobre tem um pouco de padrasto, de amante e de padre. Mas todos nós também. Acontece que muitos de nós fingimos que nosso lado padrasto, amante e padre são figuras bem-sucedidas. Pobres coitados de nós.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Fantasmas

Fantasmas podem ser entidades sobrenaturais não-visíveis, esquecidas pelo mundo dos vivos. Somente de vez em quando são lembradas, gerando mais terror do que compaixão. Há pessoas que são como fantasmas para os outros. É como se não existissem, apenas flanam sua desmaterialização pelo mundo. Para esses outros, quando não aterrorizam, fantasmas são apenas fantasmas. “Deixem eles lá”, dizem. Há pessoas que dizem isso sobre outras pessoas. “Deixem elas lá”. Para tais pessoas, esses “fantasmas” não ouvem, não choram, não sentem. Elas só acreditam no que elas vêem. O outro é uma sombra, uma alucinação. Por isso elas não acreditam nos sentimentos. Os sentimentos são invisíveis. Por isso elas pensam que os sentimentos são fantasmas.

Sonhos

Sentaram na mesinha ao lado da janela. Nunca tinham tomado café juntos. Ele, atribulado pelo trabalho cheio de competitividade, que deixava sua rotina sem cor. Ela, ocupada produtora de moda, estilo moderno e independente. Tinha cabelos lisos, loiros, pele alva, olhos escuros e brilhantes, como uma noite luminosa. Por esbanjar simpatia, a moça logo despertou o interesse dele, um eterno romântico. Ele pode falar de coisas sobre sua vida, de suas ideias, sentindo-se leve e fascinado. Sentia-se flanar ao lado dela por entre as mesas, enquanto degustava o café sem perceber. Ficou tão livre e empolgado que não viu o tempo passar na lanchonete. Ela, de repente, olhou para o relógio. “Tenho de ir”, disse. Ele, como se tivesse despencado na terra, vindo de um lindo sonho, disfarçou. “Claro, também estou atrasado”. Lembrou-se naquele momento da frase de Pirandello, em que as mulheres, como os sonhos, nunca são como as imaginamos. E voltou para sua dura realidade cinzenta, inconformado. Sem deixar de questioná-la, em pensamento. “Por que em encontros assim tem de haver sempre a despedida?”

Babe

Hoje faz 32 anos que perdi minha vó materna. Ela morou na minha casa por anos, era doce, paciente e carinhosa. Eu ficava no seu quarto enquanto esperava minha mãe chegar da faculdade à noite. Sua companhia era adorável, ela transmitia tranquilidade, após ter vivido experiências difíceis de solidão, quando deixou a Polônia ainda jovem em um navio. Encontrou lá na minha casa um porto seguro, alegrando-se com a luz que brilhava nos olhos de seus netos, crianças com a vida pela frente. Em retribuição, dedicava seu amor sincero, que se perpetuou em mim. Hoje faz trinta e dois anos que não a vejo. Foi no dia que acabou a novela Pai Heroi. Com 32 anos, um homem já pode ser um pai heroi, o meu objetivo hoje, também em homenagem a ela.

Futebol

Recebi a seguinte mensagem do meu melhor amigo, Vidigal. "Putz, o jornalismo e o futebol (visto do ponto de vista das torcidas e dos jornalistas em geral) têm me cansado tanto, Eugenio, tanto. Por isso gosto de jogar bola com o Raul, falar de Neymar etc. e tal com ele, ele tem uma outra visão, uma visão romântica, visão de quem está descobrindo o mundo, visão diferente dos demais". E o Eugenio responde que, por causa do Raul, voltou a amar o futebol.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Frase

Enquanto manuseava folhas antigas de um jornal, encadernadas em capa dura, viu o diretor do arquivo se aproximar. Foi surpreendido por uma bronca. “Não posso aceitar que você vire as páginas assim”, disse o burocrata, bem ao estilo de alguns ex-comunistas que, apenas com óculos modernizados e ar blasé, colocaram terno e gravata. Não acreditavam em Deus, hoje acreditam na política de seus chefes políticos. Ele se sentiu indignado com a interpelação. Manuseava de forma rápida, sim, mas com tanta devoção e segurança que seria impossível rasgar aqueles papeis amarelados pelo tempo e pela história que abrigavam. Sentiu-se invadido, acusado de forma vil, rotulado sem direito a explicação. O homem só fez aquilo para mostrar autoridade. O jovem ficou sem graça, nem continuou seu trabalho. Mas, passado algum tempo, percebeu que até gostou da introdução da frase. Ela serviu como uma epifania, um estalo em sua vida. “Não posso aceitar, não posso aceitar...” E passou a usá-la em seu manual ético, como instrumento para o seu dia-a-dia. Em várias circunstâncias, defendia-se e argumentava, consigo e com os outros, por meio destas três palavras. “Não posso aceitar que me cobrem essa taxa ilegal”. “Não posso aceitar essa mentira cínica”. “Não posso aceitar essa maneira leviana de lidar com as pessoas”. “Não posso aceitar a falta de gentileza”. “Não posso aceitar esse tipo de tratamento com esta criança”. “Não posso aceitar a fome da Somália”. “Não posso aceitar o dito pelo não dito”. “Não posso aceitar que me chamem de desonesto”. “Não posso aceitar que pensem que eu faço o que eles fazem, por acharem que todos são corruptos”. Muitas das coisas que ele não poderia aceitar, ele não pode modificar. Outras sim, ainda bem. Graças à tal frase, que o acabrunhou no arquivo e que ficou nele para sempre, padronizou um modelo útil de comunicação. Sim, é possível se tirar aprendizados de uma injustiça, extrair alguma sabedoria da insensatez. Isso, enfim, ele pode aceitar.

sábado, 13 de agosto de 2011

Cinema

Não sei conviver com o mau-humor. Estou para ver alguém que saiba. Mas eu sei menos do que os outros. Nesse caso, o velho conselho de que devemos sair de nós mesmos e nos vermos em um palco, para abstrair as situações, é pura retórica. Ninguém gosta de ser criticado porque filosofa sobre a vida. Ninguém gosta de ser interpelado quando ensina algo a uma criança. E ouvir cobranças em demasia? Não vai ao banco pagar conta, trabalha menos do que eu, não sabe se vestir direito...Já seria ruim ouvir isso se fosse verdade. Mas são falácias. A cada acusação, uma distorção autoprojetada. E a cada resposta, ainda que dura, uma acusação. Abstrair tudo isso e se colocar em uma comédia romântica não é a saída. Está mais para drama de Pier Paolo Pasolini, na desconstrução de famílias, do que para enredo adocicado em que Sandra Bullock briga feio com o namorado, faz birrinha de menina, para divertimento do público, e depois tudo termina bem. Não, não sei conviver com o mau-humor. E se algum diretor atrapalhado for fazer disso um romance ideal, daqueles em que os opostos se atraem, estará cometendo um pecado cinematográfico. Sob pena de, a cada sessão do filme, ver a plateia sair no meio, revoltada, e ir direto para a bilheteria pedir o dinheiro de volta.







sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Vovô

O menininho um dia soube que tinha tal avô, mas estranhou nunca receber visitas dele. O pai lhe contou que ele se chamava vô Miguel. E o menino, antes de dormir, passou a perguntar sempre sobre o vô Miguel. O pai contou que o vô Miguel o levava a jogos de futebol. Num deles, o vô Miguel acertou quando disse que o Vaguinho era o “mapa da mina” para o time. O Vaguinho fez o gol do Corinthians, naquele empate com o Santos, em um Morumbi lotado. Na saída, ele só se lembrava do seu pai, o vô Miguel, o conduzindo no meio da multidão. Contou então que o vô Miguel o levava, junto com a irmã, todos os dias para a escola, antes de ir para o trabalho. Ele era médico, atuava em três lugares e trabalhava o dia inteiro. Voltava para casa para almoçar, pegar algumas contas e sair na correria daqueles dias atribulados. No fim do dia, ele sempre voltava para casa com um exemplar do Jornal da Tarde. O filho abria na parte de esportes e ficava admirando os desenhos que dois cartunistas faziam dos gols da rodada. Eram desenhos da realidade, transformados em linhas artísticas que davam vazão à imaginação. Contou para a criança que o vô Miguel sempre lhe dizia, em tom de conselho, para ser “bom de bola e bom na escola” e que, um dia, ele saltou o alambrado baixinho do ginásio para atender o filho que se machucara em um jogo de futsal. Todo mundo viu e achou legal a cena, comparando-a com o slogan de uma propaganda do Gelol, que dizia “não basta ser pai, tem de participar, não basta ser remédio, tem de ser Gelol”. Contou até que o vô Miguel ostentava um imponente bigode, que contrastava com seu jeito terno e sensível. Pois bem, o menininho soube de tudo isso e um dia se calou. Nunca mais perguntou nada sobre o vô Miguel, nas noites que o pai o acompanhava para dormir no berço. A imagem do vô Miguel, que já não estava entre nós, se diluiu como um sonho na mente do menino. Mas algo de real permaneceu, junto com o silêncio premeditado. O menino agora já conhecia, sem necessitar de palavras, a história do vô Miguel. Não queria mais falar sobre ela, para evitar qualquer tipo de dor. Queria apenas intuir. Então, o vô Miguel se despediu dele, para se transformar em lições e ensinamentos do dia-a-dia, durante a longa jornada que ele teria pela frente. O vô Miguel ficou em algum lugar lá dentro da criança, sempre à disposição. Como um amigo que nunca vimos. Como uma saudade de alguém que não conhecemos.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Revisão

Tentei escrever sobre Israel (no post Sinai). Enrolei-me. Quando o texto fica muito longo e eloquente, é porque os argumentos estão definhando. E é porque o assunto é complexo. No início, critiquei as recentes manifestações por mais habitações e qualidade de vida. Usei como mote o idealismo e o socialismo-trabalhista que construíram o país. Então me deparei com o capitalismo desenfreado que está gerando concentração de renda e injustiça social, ainda que pequena se comparada à de países pobres. Senti que os manifestantes têm suas razões. O governo pode estar enganando o povo, com o axioma de que precisa controlar gastos em função do alto investimento em segurança. E, não falando a verdade, é ele que pode estar ameaçando a continuidade do país. Deparei-me com a neurastenia daquela atmosfera. Essencialmente socialista, a nação judaica possui aberrações capitalistas, especulação imobiliária e uma evasão alta de divisas. Desenvolveu-se mesmo com as rusgas entre religiosos e trabalhadores, desde os idos de 1940. Os religiosos não percebiam que o suor, enevoado por argumentos céticos, era um símbolo de fé e espiritualidade. E os trabalhadores não viam que a religião é um ato de solidariedade. Os conflitos existem até hoje e ecoam pelo resto do planeta. Todos os países carregam, em sua essência, essas contradições neuróticas. Não é à toa que tudo acontece naquela região milenar e bíblica. Israel é, afinal, o umbigo da humanidade.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Sinai

Imigrantes judeus já moraram em amplas tendas de acampamentos para construir Israel nos anos 40 e 50. Médicos europeus tiveram de aprender a plantar cebola, dentistas e intelectuais se esforçaram para saber como colher laranjas e trabalhar em obras, com pá e inchada nas mãos desacostumadas com a labuta. O idealismo fez Israel renascer, se defender de países hostis, em busca de suprir as necessidades básicas e humanas de um povo. Quando Israel venceu a Guerra dos Seis Dias, a população saiu às ruas aliviada, festejando a continuidade do país, que esteve seriamente ameaçada. Hoje, a hostilidade ainda existe, porém aliada ao fenômeno da globalização, que trouxe junto o consumismo, as exigências materiais - muitas delas fúteis -, modificando o perfil do povo israelense. Por outro lado, a corrupção, a ganância e a especulação crescem em proporção semelhante. Parece um pouco o episódio dos judeus adorando a estátua de ouro, se esquecendo de seus períodos difíceis, melindrando-se como crianças mimadas contra o líder Moisés que não regressava do Monte Sinai, trazendo as tábuas da lei, o código de moral que valoriza a ética, o respeito ao próximo, o desapego de bens materiais não tão relevantes, a solidariadade. As reivindicações hoje são por moradias melhores, em maior número, em um país com desemprego controlado, que não tem desabrigados. A Saúde e a Educação, apesar das dificuldaes, se mantêm em um patamar de primeiro mundo. O governo, bom ou mau, diferentemente da maioria dos países do Oriente Médio, foi democraticamente eleito. Nestas manifestações, cada um parece estar falando por si, o que não é bom para Israel. Não será surpresa se daqui a pouco a população exigir melhores i-pods, blues skies, ou aparelhos cibernéticos de última geração. A mistura entre essência trabalhista, socialista e a realidade capitalista estão confundindo a identidade do país, cujo foco principal deveria ser o judaísmo, que abarca com sabedoria tanto o socialismo quanto o capitalismo. Manifestações são direito de qualquer sociedade. Porém, a humildade precisa voltar a esta Israel distanciada de seu espiritualismo, envolvida pelas tentações e conflitos da modernidade. Tempos bem mais difíceis ficaram para trás, o país se consolidou como potência tecnológica, porém é preciso manter os pés no chão. Sem paranoia, mas com serenidade e um pouco do antigo idealismo. O mundo mudou. Israel, com ele. Mas duas coisas se perpetuam: uma é a necessidade de o governo financiar a segurança, o que demanda grande parte do orçamento. Outra é o Monte Sinai. Ele continua o mesmo. De lá, a voz trovejante de Deus e os passos decididos e cansados do velho Moisés ainda ecoam. E se espalham por todas as sinagogas, como a razão de ser do judaísmo - o combustível de uma nação. A verdadeira morada onde habita o coração de um povo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Roqueiro

Além de vocalista de rock, Bruce Dickinson é piloto de avião, dos bons. As melodias que canta ecoam pelas nuvens, aterrissam em palcos estranhos, vindas de suas entranhas, em viagens intermináveis, percorrendo o infinito por meio de sua voz, até o grito intenso, rouco e melodioso se calar, depois subir novamente, em pulmões turbinados, como se o pássaro metálico transportasse um rugido de dor devido a pancadas nas suas costelas e como se as suas costelas fossem a guitarra fazendo o som aumentar, em proporção às batidas de seu coração, enriquecendo naturalmente a relação lírica entre a rebeldia e a paixão, na dualidade da existência, que só se unifica de verdade quando o ídolo se vê homem, condutor do destino e conduzido por ele, entoando acordes que transpõem o horizonte de sua história, tocam a veia de uma pessoa e até das multidões, levando a elas uma mensagem incontestável. De que nesta vida somos todos pilotos e passageiros.