segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Frase

Enquanto manuseava folhas antigas de um jornal, encadernadas em capa dura, viu o diretor do arquivo se aproximar. Foi surpreendido por uma bronca. “Não posso aceitar que você vire as páginas assim”, disse o burocrata, bem ao estilo de alguns ex-comunistas que, apenas com óculos modernizados e ar blasé, colocaram terno e gravata. Não acreditavam em Deus, hoje acreditam na política de seus chefes políticos. Ele se sentiu indignado com a interpelação. Manuseava de forma rápida, sim, mas com tanta devoção e segurança que seria impossível rasgar aqueles papeis amarelados pelo tempo e pela história que abrigavam. Sentiu-se invadido, acusado de forma vil, rotulado sem direito a explicação. O homem só fez aquilo para mostrar autoridade. O jovem ficou sem graça, nem continuou seu trabalho. Mas, passado algum tempo, percebeu que até gostou da introdução da frase. Ela serviu como uma epifania, um estalo em sua vida. “Não posso aceitar, não posso aceitar...” E passou a usá-la em seu manual ético, como instrumento para o seu dia-a-dia. Em várias circunstâncias, defendia-se e argumentava, consigo e com os outros, por meio destas três palavras. “Não posso aceitar que me cobrem essa taxa ilegal”. “Não posso aceitar essa mentira cínica”. “Não posso aceitar essa maneira leviana de lidar com as pessoas”. “Não posso aceitar a falta de gentileza”. “Não posso aceitar esse tipo de tratamento com esta criança”. “Não posso aceitar a fome da Somália”. “Não posso aceitar o dito pelo não dito”. “Não posso aceitar que me chamem de desonesto”. “Não posso aceitar que pensem que eu faço o que eles fazem, por acharem que todos são corruptos”. Muitas das coisas que ele não poderia aceitar, ele não pode modificar. Outras sim, ainda bem. Graças à tal frase, que o acabrunhou no arquivo e que ficou nele para sempre, padronizou um modelo útil de comunicação. Sim, é possível se tirar aprendizados de uma injustiça, extrair alguma sabedoria da insensatez. Isso, enfim, ele pode aceitar.

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