quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Natal

Levantou-se do divã e se despediu do psicanalista com algo que nunca havia falado nos anos de análise. “Feliz Natal”. Era antevéspera deste importante feriado. Mas não foi só por isso que ele soltou a frase. Haviam descoberto coisas importantes. É como se uma nova criança nascesse por um sopro de luz do céu, trazendo novos paradigmas de Salvador. A sala se tornou um presépio. O divã, uma manjedoura. O psicanalista, com seu cajado e o bigode branco, era um misto de profeta, anunciador de uma era, e de pastor, em sua humildade de observador pronto para servir. O nascimento de alguém, um ser frágil e dependente, é um ato que remete mesmo a um cenário de humildade. Como um estábulo simples, mas caloroso, símbolo que resiste à ganância e perversidade humanas através do suplicante balido do carneiro, do olhar dengoso de uma ovelha e do choro vital de uma criança. Impulsionado por novas possibilidades, ele deixou a sala rumo ao século XXI, mecanizado, tecnológico, urbanizado. Desceria por um elevador moderno. No frenesi da rua cheia de carros, não sabia se encontraria reis magos inebriados pela luz da estrela que anunciou este nascimento. Nem se deles receberia presentes, como incenso, ouro e mirra. Ele só queria proteger suas retinas da claridade insensata do mundo. Precisava de um alívio para sua indignação. Chegara o momento de enxergar algo por de trás dos gestos competitivos e insanos das pessoas. Um pouco de paz na terra e homens de boa vontade.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Vivências

Alegria de viver é pisar na areia da Praia do Futuro, avistar o mar brilhante e ver, por de trás do horizonte, um outro mundo, outros continentes, o futuro. Alegria de viver é correr livremente na companhia do pôr-do-sol. É beber água gelada, sentindo a brisa refrescante, após a corrida. E depois fazer planos consistentes, inspirados, iluminados por uma força que se permitiu emergir de nosso interior. Alegria de viver é conseguir seduzir com um sorriso. É não depender do dinheiro e, ao mesmo tempo, ter o anseio e a confiança em ganhar dinheiro. É sair falando tantas coisas interessantes, a fluírem como água límpida vinda da memória. E conseguir contagiar com essas palavras, cativar, comunicar algo, numa troca viva e contínua com o outro. Alegria de viver é ter o lampejo na hora certa. É se sentir como o herói de um lindo filme. É conseguir desculpar-se dos próprios erros. É se fortalecer com os desafios. E poder ler um bom livro, tranquilo, por entre as pessoas que transitam ao redor. Alegria de viver é conseguir ensinar e ter a permanente sede de aprender. É ter a generosidade de dar e a humildade para receber. É chorar de saudade. E se recolher no doce recanto da tristeza. Alegria de viver é ter a liberdade de ligar para a pessoa amada a qualquer hora. E se reconciliar. E se recuperar. E se esquecer. Alegria de viver é a irradiação em nós de todo o universo. Alegria de viver é ver no olhar do filho a alegria de viver. Alegria de viver, em francês, é joie de vivre. Em inglês, é hapiness of life. Em italiano, gioia di vivere. Mas alegria de viver é ter você, alegria de viver, em todos os lugares, em todas as linguagens.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Segredos

Pensei na frase “Conte-me seus sonhos”, famosa, título de livro de Sidney Sheldon. E logo vi o prazer do mundo ao ver conversas sigilosas entre diplomatas publicadas em um site. Segredos dos outros eram revelados, para o júbilo de boa parte da sociedade. Mudei a frase. “Conte-me o segredo dos outros”. Todo mundo quer saber. “Conte-me seus segredos”. Ninguém quer contar.

Camisas

Era corintiano, mas vestiu uma camisa do Santos, estilo retrô, com a assinatura do Pelé. No clube, um conhecido, corintiano, o interpelou, largado no banco ao lado da piscina. “Tá louco?”, disse, em tom raivoso. Parecia que ele havia cometido uma heresia, quando sua intenção era apenas homenagear um símbolo que estava acima das paixões clubísticas e até do futebol. Não era humilhação. Humilhação é o fanatismo, em qualquer circunstância: religiosa, política, clubística. Humilhação é fugir da vida e esconder o que está por de trás da camisa que vestimos.

Escuros

A escuridão controlada é diferente daquela que o ameaçava antigamente. Quando a luz acabava, na sua casa, era como se ele caísse no abismo. Uma sensação de descontrole o rondava, alimentada pelo silêncio que pairava na atmosfera sem luz. Sua mãe acendia velas e o reflexo das chamas fazia a silhueta de cada um se transformar em sombra monstruosa tremeluzindo na parede. Era como se a casa estivesse habitada por fantasmas que, apesar de existirem, não apareciam no dia-a-dia. O lado sombrio do ser humano emergia no escuro, quando a luz faltava repentinamente. Agora, estar no controle da escuridão é outra coisa. Dá a sensação de que este lado viscoso e traiçoeiro finalmente está em nossas mãos. É bom ficar no quarto, com a luz apagada, sonhando com músicas do passado, se perdendo na imensidão imaginária que o escuro traz. Ou olhar para o céu noturno e viajar por suas estrelas, amparado pelo cheiro de brisa e o toque da lua. Até o céu cinzento e misterioso é acolhedor, sugerindo um fundo de luz por trás de seu manto diáfano. Nestas situações há o controle do homem, que pode entrar em casa, acender a luz ou simplesmente dormir. E enquanto ele está diante desta escuridão acolhedora, sua sombra arrefece, dá trégua. Fica parecendo que o escuro é um enorme útero e que o céu, tal qual o nome do filme, nos protege. Se esta noite fosse eterna, seria uma solução tranquilizante. Não haveria um breu ameaçador. Só os bons pensamentos viriam para fortalecer, com projeções românticas no teto ou no firmamento. Seriam desenhos de nossa auto-estima, nossa criatividade, lado mais nobre que nos conduz e que não conseguimos mostrar, à luz de nossos conflitos internos.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Dizer

Quem sabe a maneira certa de dizer o que quer, aprende, respeitando-se a si mesmo, a ouvir o que não quer.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Dominador

A frase balbuciante, repleta de consciência, superou o alarido da pizzaria. Estavam sentados no fundo, em uma confraternização familiar. A velha senhora, gestos lentos, pediu que ele se aproximasse. E sussurrou: “Aproveite enquanto você é jovem”.
Já com 40, ele até vinha pensando sobre isso ultimamente. E quando ela continuou a lhe falar, lembrando que o tio dele não gostava quando ele batia o saleiro na mesa, uma sensação o envolveu. Tempo. Era uma época em que o tempo parecia ser infinito, em que ele se sentia no domínio das ações. A infância e suas peraltices cheia de sonhos nos trazem essa impressão.
O tempo nos modela. No início, achamos que o dominamos. No fim temos a certeza de que ele nos domina. Como um sábio que coordena a vida, ele dá a cada um a capacidade de aceitá-lo de acordo com as possibilidades do momento. Já não podia cometer as extravagâncias de outrora. Já não seria mais astronauta, tampouco presidente do Brasil. Nem teria mais os milhões de amigos que ouvia na infância. Seu mundo se reduzira. Seus dias se consumiram nos instantes, sua vida se misturou com o tempo. E muitos dos seus sonhos se transformaram em lembrança, uma marca do tempo. Uma prova em nós do que ele foi, de como ele passou. Lindas paisagens que imaginávamos percorrer agora estão introjetadas em nós, na arte do tempo de metabolizar a esperança e a saudade, tornando-as um alimento que corre nas nossas veias até a última batida do nosso coração.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Yesterday

Paul McCartney gosta de sair às ruas, anônimo. Anda de metrô, sente-se bem ao se ver envolvido, não como um astro, pela multidão. John Lennon era diferente. Mais radical, mais isolacionista. Um pacifista, ídolo genial que se autodestruiu em sua ilusão libertária. Aprisionou-se na tese de dominador contra dominados, para ir caminhando lentamente para a morte. McCartney parece não ter o medo de ser assassinado na rua, como seu antigo parceiro. Estou apenas tentando recompor o inconsciente dos Beatles. E me lembro que, na composição famosa de ambos, já havia sombras perseguindo. Lennon pareceu ser a vítima maior, quando o ontem chegou de repente, trazendo fantasmas do passado. Como o rugido tétrico do metrô, que leva pelo subterrâneo uma multidão embrutecida, anti-social, solapando sonhos, fazendo eles se acabarem em meio à concretude ruidosa do túnel escuro. Outros remanescentes permanecem inteiros quando passeiam na estação, sobem e descem do trem, livres, reconhecendo-se nas pessoas e respirando o anonimato de seu sucesso, evitando rupturas entre o homem e a celebridade.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Oração

Meu filho, eu tenho, o mais oceânico, o mais cósmico, o mais lunático, o mais solar, o mais luminoso, o mais radiante, o mais contemplativo, o mais silencioso, o mais sábio, o mais preocupado, o mais firme, o mais ponderado, o mais justo, o mais preciso, o mais injusto, o mais impreciso, o mais irracional, o mais consciente, o mais presente, o mais desapegado, o mais permissivo, o mais rigoroso, o mais milimétrico, o mais grandioso, o mais transparente, o mais cristalino, o mais límpido, o mais gotejante, o mais caudaloso, o mais quente, o mais natural, o mais puro, o mais simples, amor por você.

Senhoras

Dona Bilai e dona Tatiana eram senhoras idosas. Tinham ar maternal, maquiavam docemente o rosto envelhecido, transpareciam no brilho do olhar e nos trajes sóbrios a sabedoria tranquila que só a idade traz. Atuavam, sob o traje da intelectualidade, para apunhalar pelas costas.
Guardavam em seus porões o medo da proximidade da morte, o fel da inveja dos jovens, a ânsia de manterem a imagem de docilidade para atacar sorrateiramente aqueles que feriam sua vaidade. Para elas, a própria obra era o pedestal inalcançável. Um palco. E sorrateiramente fecharam as cortinas da própria mente e caminharam para um local ermo, silencioso, escondendo-se de si mesmas. Um túmulo.

Rodeios

Celebridades consideram que amigos antigos são uns chatos que só os rodeiam por causa da fama. Amigos antigos consideram estas celebridades chatas porque elas presumem que amigos antigos são uns chatos que só os rodeiam por causa da fama.

Suicida

Por três vezes ela se jogou lá de cima de seu prédio. Do alto, uma mulher loira, cabelos longos e lisos, olhos arregalados e claros, avistava o entroncamento das ruas, onde à tarde o rush deixava o engarrafamento aumentar. Eu estava em uma roda de amigos. Da primeira vez, ela pulou e passou quase despercebida. Seu salto no ar teve movimentos acrobáticos, mas ao chegar ao chão sua pele emborrachada amorteceu a queda. Da segunda vez o impacto foi maior, mas insuficiente para atrapalhar o bate-papo em frente à Blockbuster. Na terceira, porém, seu olhar mórbido e insistente desviou a atenção do grupo na conversa. E a queda foi forte, ela se estatelou no chão ensangüentando o asfalto. No meio da poça vi seu rosto desfigurado, satisfeito por ter alcançado o objetivo. Finalmente a mulher suicida vencera a vida. Eu me assustei, rolando na cama, tentando vencer a noite.

sábado, 6 de novembro de 2010

Feridas

A abertura lenta, gradual e segura desembocou na anistia, ampla total e irrestrita. Que repatriou exilados exaustos, magoados e maduros; soltou presos tristes, marcados e ofendidos; escamoteou os broncos, covardes e ressentidos e enterrou a história, mortos e feridos.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Chute

O chute na bola é como um grito, expressão vinda de dentro. É o murmúrio dos sonhos, um sopro, um solfejo, uma nota musical. A trajetória que a bola toma é melódica, não importa onde ela parou. Se no pântano, na areia, no mar ou no gol. Ele chuta como canta, com suavidade, ternura, na precisa indecisão dos meninos que amam. No contato com a bola flui sua intuição.
A cada chute vejo seus contornos, sinto seu perfume, entendo seus anseios. Se chuta forte está com raiva, se faz de leve, está em paz. Se chuta para cima tem projetos de ascensão, se chuta reto, tem objetivos firmes. Seus chutes com curva mostram a superação das barreiras, os de calcanhar remetem a uma saudade. Sua comunicação está ali, impregnada na bola rolando, voando, flutuando, acima do jogo, da glória, ao balanço de suas risadas, molhada por suas lágrimas.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Paciência

Enquanto tua fúria evolui em erupção, recolho-me em um canto, perplexo. Vejo lascas de fogo chamuscarem minha alma e nada posso fazer. O calor da queimadura arde. Sufoco meu grito para evitar o pior. Torno-me uma locomotiva a vapor, exalando a fumaça da raiva, fruto de material orgânico que consome meus órgãos. Também fervo. Escuto blasfêmias infernais, gritos demoníacos se avolumam em minhas fantasias infantis.
Sinto-me sugado por um furacão de injúrias, triturado em um liquidificador de insultos, soterrado em uma mina escura. Vejo-me solitário em um deserto amplo. A secura de meus lábios começa a ser invadida por um gosto de fel a emergir de meu estômago. O coração palpita, minha visão é tomada pelo vermelho do ódio. Então me lembro do teu sorriso nos momentos de ternura. Intuo por trás de tua chama flamejante o olhar doce e companheiro nas festas de sábado. Ergo-me das trevas. Acima das nuvens enxergo o outro lado do teu tempo, a paisagem da tua cidade pacificada. Inspiro o aroma perfumado da tua essência de flores. E como viajante pelos teus segredos, decifro-os como frutos de tua carência, dos teus medos. Acabo por perdoar-te, já equilibrado em meu recanto adulto. E deixo a cólera passar, paciente, compadecido de tuas dores quase incuráveis, convicto das duas faces da tua natureza feminina.
Então, já assentado à beira de um riacho tranquilo, deito-me na relva, até que tu retornes, renovada, correndo para me abraçar por campos cintilantes. A tempestade passa. O feitiço se acaba. O ciclo termina. Por isso te espero, para sempre.

domingo, 24 de outubro de 2010

Internet

Enviou um e-mail falando de maneira afetuosa a um conhecido. Em outra mensagem, ressaltou a importância de uma atitude afetiva para outro colega. Comunicou, para várias pessoas, a existência de um blog que abordava questões humanas, que apresentava uma profundeza estranha às conversas rotineiras. Ninguém viu, nem respondeu. Pensava que o mundo da Internet, como se costuma dizer, servia para que as pessoas, por de trás das telas, pudessem se sentir mais livres para falar delas. Debates se sucederam para criticar a fuga da sociedade para dentro do computador. Isso, porém, se tornou um engano. O mundo virtual foge do contato afetivo assim como o mundo real. A ausência de respostas às mensagens que se desviam do corriqueiro mostram isso. O silêncio impera nesses casos. O ser humano internauta se cala da mesma maneira, tão temeroso quanto se apresentaria nas relações face a face. Não adiantou buscar a autoestima sonhando controlar o teclado, tampouco apertando o insert ou delete. Medos não são deletados facilmente. A Internet não serviu como esconderijo, muito menos como porto seguro. A Internet não poderia escapar da sombra de seu criador: o homem. Ela só apresentou ao mundo a legião dos “neomudos”.

sábado, 23 de outubro de 2010

Dilema

Sartre buscou definir o conceito de existência humana configurando a identidade a partir da consciência, que, do nada, entra em contato com as coisas do mundo. Derrida, Barthes e Foucault encontraram caminhos através dos descaminhos, desconstruindo textos e conceitos para aferir a sua essência verdadeira, filtrando-os das artimanhas do poder. Shakespeare criou toda uma trama, em Hamlet, para dramatizar este embate filosófico que se dá no interior dos homens todos os dias. De um lado, o ser, contra o não ser. Ambas as correntes se complementam. Ser ou não ser, eis a questão. Ser e não ser, eis a solução. Hipotética, diga-se de passagem.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Prima

Minha prima mais velha passou uma temporada na praia, com a minha família. Eram minhas férias escolares. Eu, no entanto, não deixava de pensar em uma menina de minha classe. Estava apaixonado. A garota passava férias perto de mim, mas nunca eu conseguia vê-la. Eram desses sentimentos juvenis que se tornam torturantes, nos arrebatam e nos deixam nas cordas bambas de nossa insegurança. Destacavam-se em minha prima a pele bronzeada, em harmonia com os cabelos lisos e castanhos. Sua beleza, porém, não me assustava. A voz suave, feminina, desta moça, que vivia o fim da adolescência, é que me acalmaram.
Naqueles dias, me confessava com ela, abria meu coração. Confiava em seu acolhimento e até hoje o tenho como verdadeiro. Depois, nunca mais conversamos com tanta profundidade.
O namoro com a menina nunca ocorreu. Talvez envergonhado pelo trauma, e por outros futuros, afastei-me da minha prima. Cansei-me de desabafar com outras pessoas não tão confiáveis.
Somente agora, passados muitos anos, pude me aproximar dela novamente, ainda com receio. Deixei-a me ver trocar a fralda de meu filho, no quarto de seus pais. Enquanto ela via a criança desnuda, de pernas para cima, senti-a tão próxima como outrora.
Tive vontade de desabafar sobre meus temores. Mas palavras de menino não caberiam mais em um adulto. Meu filho já se desnudara por mim. Se eu falasse algo, sabia que ela iria entender. Sua ternura era a mesma. Eu é que já não era.

Colônia

Eu era uma colônia de exploração. Por anos me vi enredado em uma cultura de extração de riquezas. Com poucos recursos, entrei no caos. Mergulhei em abismos insuperáveis. Quase sucumbi à falta de planejamento. Precisei mudar meu paradigma para sobreviver. Passei a cultivar plantações em locais apropriados. Em outros me industrializei. Encarei os tempos modernos sem me esquecer das tradições mais importantes. Depois me libertei da escravidão das minhas culpas. Permiti que cada órgão se desenvolvesse à sua maneira. Estimulei a atividade de um cérebro são e de um coração livre. Destinei toda a produção à formação de uma identidade. Transformei-me em uma colônia de povoamento. E dei meu grito de independência.

Gálapagos

Nunca deu muita atenção à pergunta "com quem gostaria de estar em uma ilha deserta?" Até o momento em que se viu solitário na ilha de Galápagos. Lugar inóspito aquele. Assustador. Ao seu redor, picos vulcânicos, praias desertas, animais exóticos, como na antiguidade. Tudo se mantinha como há cinco milhões de anos.
Sem alternativas, ele montou uma barraca com a lona que restou do navio. E lá ficou por anos. Fez fogueira, olhou o horizonte. Avistar um celular móvel com TV digital boiando sobre o mar transparente foi um milagre. Ainda maior quando conseguiu ligar o aparelho e sintonizar na TV do Equador.
Voltou à infância ao assistir as novelas que o marcaram, agora em outra linguagem: Baila Comigo; Pai Herói; Sétimo Sentido. Quando viu uma água-viva tentar abocanhá-lo sem sucesso, lembrou-se da trama com aquele nome. Em cada enredo havia vida, emoções, romances, beijos, personagens iluminados, em busca de objetivos, como se fossem reais.
As cenas se configuravam uma ponte dele com o mundo. A resolução dos dramas televisivos demorava, mas sempre no final se fazia a justiça. O amor vinha para os que mereciam, assim como a punição ao vilão se transformava em aprendizado eterno.
Aquele retrato, na verdade, era o cenário onde ele se desenvolveu. As novelas sempre foram sua salvação. Ao ver-se aprisionado nos Gálapagos de sua existência, compreendeu a pergunta inicial. O porquê de seus figurinos, de seu roteiro taciturno e sem fim. Entendeu que gostaria é de estar consigo, mas silenciando ruídos ameaçadores da sua ilha. Com outra paisagem. Das pedras emergiria uma vegetação. Já estaria bom ter a chance de despertar paixões com a sua paixão, mostrar sua face em um cenário fértil. Vislumbrou a tela imaginária como uma janela. Era mergulhar e se reconhecer finalmente como um heroi de novela, sendo apenas ele mesmo.

sábado, 16 de outubro de 2010

Falésias

As falésias da praia de Morro Branco um dia não mais estarão lá. Serão dissolvidas pela maresia e pelo desgaste no contato com água, quando sobe a maré. Soube disso em conversa com um guia, andando pelas trilhas por entre aquelas montanhas de areia colorida. Já no buggy, seu filho adormeceu no seu colo. Conversou com o motorista luso sobre futebol português. Contemplou, com o vento envolvendo seu rosto, o mar turquesa, a brancura da praia, a luz cortante do sol. De repente um contorno surgiu à sua frente, uma áurea, como uma estampa em movimento, revelando imagens de seu atual momento: pai, adulto, busca da independência financeira e emocional. Desafiou então a implacável fala do guia. Superou aquela ideia fatídica do fim com um profundo respiro. Inspirou aquela maresia com intensidade, como se interiorizasse todo seu instinto vital. Aquilo tudo iria acabar, mas ainda havia tempo.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Criaturas

Filho que tem raiva do pai, político que rompe com seu mentor, jogador que derruba o técnico que o promoveu. Psicóloga da esposa, indicada pelo marido, que alimenta a discórdia do casal. A história de Frankenstein, de Mary Shelley, se repete aos montes. É a criatura se tornando monstruosa e se voltando contra seu criador. Ingratidão? Vingança? Pode ser também a sanha competitiva do ser humano a aflorar desenfreadamente na tentativa de extinguir a própria origem, se esquecer da fragilidade inicial. Mas a fraqueza se mantém, escondida, apesar da ilusão da onipotência. Há uma passagem bíbilica que diz do pó vieste e ao pó voltarás. Quando odiamos a fagulha que nos originou, pode haver algo errado. O sopro tomou ares de tempestade. As faces do criador se tornam incômodas, espelhos de nossa própria condição humana. E, ao invés de agradecermos pela força criativa que nos fez, fremimos nossa fúria contra ela, anestesiamos a dor do parto diário que é viver. E perdemos a beleza de termos sido criados à sua imagem e semelhança.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Vizinho

Já tinha medo de lobisomem. Morria de pavor ao ver a Cuca nos seriados. Acordava gritando pela noite quando sonhava com o lobo mau. E ainda um adulto lhe contou que, se fizesse bagunça, seria castigado pelo “vizinho”. Vizinho se tornou um protagonista de seus horrores, figura sinistra com cara de bravo e um martelo na mão, usado para pregar meninos nos porões do prédio. Então, por muitas vezes, ao ouvir batidinhas nas portas de sua vida, o coração palpitava na sala. Seria ele? E a única resposta a emergir em balbucio trêmulo era: “Não tem ninguém”.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Hoje

A frase lembro-me como se fosse hoje desfaz o abismo do tempo em um instante. Revela o hoje como um permanente eco do passado. O hoje é o cansaço da nossa pele, o acúmulo de nossas vivências, nosso quarto antigo, a velha sala de aula, um amigo de infância que pensávamos ter esquecido, na ilusão de que seu nome nunca mais deixaria de ser Ontem.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Esplendor

Raul Pompéia, no esplendor artístico de O Ateneu, dizia que a arte está acima da moral. Por outro lado, algumas pessoas, em geral autoritárias, repudiam qualquer questionamento jurídico a qualquer pretensa manifestação artística, até mesmo aquele que coloca em dúvida a existência de arte em certa manifestação. O senso estético para estes está na provocação, na ameaça de ruptura a qualquer custo de valores e padrões de um monstro permanentemente hipócrita chamado sociedade. Poderiam assim até achar bonito um quadro de nazistas assassinando judeus em um campo de concentração, em prol do que chamam de arte. Em seus tribunais de conceitos, diriam que aquele que se opõe a tal obra não passa de um defensor de regimes ditatoriais. A verdadeira arte, no entanto, supera estes desafios astutamente colocados pelos homens em sua cegueira de buscar o auto-engano, de não tentar resolver suas mazelas, mas sim negá-las através de um conceito, questionável sim, de arte. É preciso tomar cuidado com estes embustes falsamente democráticos. A verdadeira arte prima pela estesia e é essencialmente corajosa. Está acima da moral quando não se verga canhestramente à moral corrompida dos patrulhadores.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Turma

De repente o redemoinho do tempo lhe trouxe antigas vivências. Na escola, era o brincalhão. Soltava-se, para esconder alguma fraqueza, mas, mesmo assim, permitia-se criar, ainda que para esconder seu lado obscuro, de forma precária. E a alquimia dos dias transformou a pedra filosofal da imaginação, que deveria ser lapidada, em medo de novamente ser tachado de babaca, infantil pela sociedade competitiva com a qual se deparou depois de ultrapassar os muros da infância.
Congelou algo em seu íntimo, sentiu uma mancha taciturna em seu peito até saber que reencontraria, mais de 30 anos depois, aquela turma do ginásio e do primário, em um bar. Sabia que poderia se deparar com alguns cabelos embranquecidos, barrigas salientes, faces abatidas pela pressão da vida. Mas esperava também reencontrar sorrisos sinceros que talvez não tenha captado na alegoria frenética em que se via naqueles tempos antigos: estudar, conviver, se expor sem se mostrar frágil, sem esmorecer. Era difícil ser colega. Era difícil ser aluno. Então novamente voltou a brincar, fez piadas como há muito não fazia, despiu-se da roupagem diáfana que o descoloriu por décadas. Provocou um, outro, de forma lúdica, tal qual crianças em uma guerra de travesseiros. E ao ler as mensagens se multiplicarem nesta corrente eletrônica da internet, em que cada um falava de sua vida, exalando satisfação com a reunião, apagando mágoas, reconstruindo o passado, percebeu finalmente que não estava só. E que, na verdade, nunca esteve.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Canção

A música Eu quero você como eu quero traz em sua melodia doce um toque de melancolia. A cantora quase se desfalece em um choro cantado. Fica no ar um sentimento de frustração, na harmonia da sedutora canção, caminhando em contraste com o desejo de transformar o outro, um amigo, um amor, um filho, à nossa feição. Desejo que teima em não se realizar plenamente, menosprezando a si mesmo, numa irônica reação à sua essência efervescente, até ingênua. Borbulha, borbulha e esfria no diapasão da dor, desvanecendo-se na impossibilidade que cansa. Em seu rastro fresco vem um quase gemido, em tom de lamento. “Uuuuuu eu quero você como eu quero...” Ele se esvai tristonho em forma de ondas sonoras, saudoso do êxito jamais obtido, neste movimento que engrandece o homem, o torna mais forte, mais esperançoso, mais bonito. É bonito sonhar.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

MP3

Deitou-se no antigo sofá. Era noite, via pelo lusco-fusco os contornos da cortina balançarem com o vento que vinha da janela. A cabeça manteve-se erguida, no braço do móvel. Sentia-se reconfortado com o cobertor de lã a aquecer seu corpo. Antes de dormir, ouviu as músicas de seu mp3. Eram melodias antigas, que o remetiam a momentos remotos. Passeou por várias épocas, divagou, remeteu-as à sua atual fase de vida. Percebeu então que colocara o aparelho no lado esquerdo de seu peito, ouvindo pelo viva-voz, sem fone, músicas que se fizeram pedacinhos de sua existência. Na sala escura, seu coração estava cantando.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Estudante

Bom dia menino rebelde, cabelos lisos, franjeados. Dentro do carro batuca um rock, lá fora vê passos acelerados. Para ele chegar à escola, me pergunta por que tanta pressa. Joga futebol, brinca e se envergonha, come chocolate que é bom à beça. Pula do banco levando a mala, sobre rodinhas ao estilo Pinóquio. Perninhas brancas, bermuda e tênis, cada momento para ele é heróico. Cumprimenta aqui e ali, a caminho do portão grande e liso. Vai sumindo no meio do agito, vai entrar e me manda um sorriso.

Propaganda

Prefiro descrever uma onda sonora a uma escrivaninha de um escritório de luxo. Não sei bem montar diálogos corriqueiros, tendendo obcecadamente a divagar sobre conflitos da alma. Só se eu fosse um protagonista da moda, daqueles bem-sucedidos, dinâmicos, arrojados, antenados, com expertise, cheio de termos atuais, vestiria um blazer casual com uma camisa com estampas alegres. Manteria os cabelos raspados, ou repicados, sempre com um look moderno. Nem me preocuparia se minha imagem irrepreensível me escondesse de mim mesmo. Como escritor, publicaria cenas como se fossem fotografias, diálogos reproduzidos, após ficar anotando o que escutasse na rua. Seria cool, undergraound, me orgulharia de meu veio irônico, sarcástico e debochado, alardeando perversidade em tom de decreto. Se fosse fazer uma propaganda, andaria com passos firmes ao encontro da câmera, por canyons paradisíacos. E quando chegasse próximo da lente, olharia fundo e falaria com cara de bravo, implacável como os fortes devem agir, bradando meu grito de vitória, sem titubear. “Este é o meu estilo, esta é minha marca”. Depois, não deixaria ninguém me ver chorar.

Centenário

O futebol parece teimosamente viver de polêmicas. Mais uma surgiu no centenário corintiano. É a velha história do copo meio cheio e meio vazio, que pode servir como reafirmação pessimista ou esperança otimista. Os torcedores adversários disseram que o Corinthians só celebrou a data em um evento na rua, junto à população, porque não tem estádio. Como réplica, poderiam ouvir de um corintiano sociólogo que o sentimento de paixão corintiana extrapola os limites de um campo de futebol e os anéis de uma arena. Não consegue, como água a escorrer pelas fendas de uma montanha, ficar restrito a eles. Sua essência harmoniza o sentimento por um símbolo e a própria identidade de cada torcedor. É uma crença, massificada, mas que conta histórias individuais, se mistura à fé de cada um, única na luta de seu dia a dia para se curar da dor e para viver o amor. O palco maior do corintiano não é o estádio, onde seu canto uníssono reflete um cotidiano acumulado vindo lá de fora, dos escaninhos da cidade. Seu cenário é feito dos dramas e das vitórias fora das quatro linhas. O uniforme preto e branco e o emblema de um timão são apenas roupagens deste enredo. E tudo isso, nas semanas que antecedem os jogos, emana na rua, e é lá o melhor local para os festejos. As calçadas e as sarjetas são a verdadeira arquibancada do povo, como o carnaval é para o brasileiro. Ser corintiano é um sentimento mais carnavalesco do que futebolístico.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Quartier

Tentei recordar o nome de um hotel barato no qual fiquei em Paris. Era em uma ruela, entre prédios antigos. A rua desembocava em outra movimentada, com uma casa de crepes aconchegante e branca. Paralela, corria a boulevard Saint Michel, à noite iluminada por luzes amareladas, transmitindo o glamour nas mesinhas espalhadas nas calçadas e nas obras de arte expostas a céu aberto, junto com livros e discos. Voltei ao local dez anos depois. O hotelzinho era o mesmo, ainda pertencia a uma família portuguesa, acolhedora. Aproximei-me do dono, então mergulhado em papeletas atrás de um balcão, na saleta de entrada escura. Diferentemente de São Paulo, ele não tinha uma caneta presa na orelha. Usava sim um par de óculos mal acomodados. Estava despenteado. E não se lembrava de mim. Seu sorriso espontâneo, porém, permanecia inalterado, ainda que pertencente a um rosto envelhecido. Não enriquecera, mas mostrava-se satisfeito com sua rotina. Parecia estar aberto às novidades e não ligar para os esquecimentos. Dele emanava uma admiração pela própria simplicidade, o que o tornava um ser humano genial. Agora, por ironia, não me lembro do nome do hotel. Não por vingança, mas por solidariedade. Meu esquecimento é um pedaço de mim. E ficou eternamente hospedado, bem ao lado do dele, num cantinho bem escondido de Paris. Lá ainda existo muito bem acompanhado de todo aquele cenário por onde outras figuras geniais e relaxadas como Sartre, Barthes, Foucault pensaram e se esqueceram, também com óculos desajustados. Posso dizer que estou ao lado de todos eles, num reflexo invisível de criações esquecidas. Estou esquecido por lá, mas lá existo. E todo o dia quando acordo, tento seguir o exemplo do que aprendi naquele inesquecível Quartier Latin, onde morarei para sempre, mesmo não usando óculos. Não me lembro do nome do hotel, mas não esqueço de me levantar.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Confiança

Teu olhar é um oásis no deserto urbano. A tarde escapa por trás dos prédios, deixa em seu rastro o atrito entre o asfalto e o homem. E teu olhar é a vegetação a se estender pelas paragens de minha consciência, enquanto vago pelas ruas secas. Hidrata minha pele para o bem do metabolismo de minha alma. Vejo em teu olhar a nascente de água doce que sacia minha sede no calor arenoso. Percorro dunas ondulantes de solidão para me refrescar na brisa do teu olhar. E no seu núcleo côncavo e rajado, me renovo, ouvindo o doce canto da menina de teus olhos. Teu olhar está em tudo. É religioso quando se faz prece. É sensual quando inspira um beijo. É psicanalítico como um sonho encantado. Ensina tal qual um mestre. Acolhe como uma mãe compreensiva. Traz a paz, se revela na palavra amiga, cicatriza tecidos de meus órgãos feridos, aparece nos momentos mais difíceis. De dentro de tuas retinas emergem fios energizantes. Teu olhar é real. Teu olhar é um oásis, não é uma miragem.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Leituras

Bialik era o nome da escola em que seu pai o colocou na infância. Bialik era um escritor judeu russo, conhecido, do início do século passado. Bialik, para ele, foi a história da história. Lá aprendeu a ler e escrever. E enquanto seu pai estava deitado na cama, no hospital, ele sentou-se à beira do leito e começou a ler em voz alta o início do livro A trombeta envergonhada. Em uma das passagens Bialik relata em tom sensível momentos de sua infância, seu medo dos adultos opressores, sua saudade dos campos e matas que podia contemplar como um abraço do universo. O pai, atento, buscava resumir cada trecho, destrinchando detalhes, ainda que com a voz enfraquecida pela doença. O filho, emocionado, sentia-se levado também a tempos antigos, quando o pai, na melhor de suas formas, ficava até tarde o acompanhando nos estudos. Enquanto ele lia, as lembranças vinham, junto com o soluço, atropelando suas palavras, trazendo de volta as lições tomadas à noite, em outras leituras, numa reminiscência bialikana que substituiu seu adeus.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Vocações

Na tarde de quinta-feira, ensolarada e seca na cidade, a médica utilizou-se do instrumento da dedicação para operar o milagre e conduzir o paciente de volta à vida. E nesta mesma tarde, o maestro, em gestos cênicos, transfigurou-se nas ondulações sonoras da orquestra apaixonada. Como espectador, um escritor se inspirou na magia, relativa àquele momento, ao elaborar em sua mente um enredo fantástico, em que um escultor procurava pela mãe que o esculpira no ventre. Um arquiteto, então, baseou-se nestas ideias, para desenhar uma casa com lajes, colunas e telhados que representavam curvas esculturais de uma mulher. Não demorou para um escultor de verdade, ao saber desta realização, moldar o desenho de uma doce ninfa ao lado de serafins, copiando algo do estilo do arquiteto. Até um agricultor entrou nesta ciranda, regojizado pelo lampejo de vida, que de outra forma o levou a plantar uma safra inigualável, tamanha a perfeição dourada de seu trigo...Mas na tarde de quinta feira, regojizado pelo lampejo de vida, o maestro se inspirou na magia da orquestra ao lado de serafins esculturais, copiando algo do estilo de uma mulher. Um arquiteto, então, entrou nesta ciranda de outra forma ao elaborar em uma casa nas ondulações sonoras e moldar sua mente apaixonada. Nesta mesma tarde, um escultor de verdade utilizou-se do instrumento da dedicação para desenhar um enredo fantástico com curvas que representavam lajes, colunas e telhados. Até um agricultor transfigurou-se como espectador do arquiteto, para operar o desenho de uma doce ninfa ensolarada e seca na cidade. Não demorou para o paciente, ao saber desta realização, e de volta à vida, conduzir o milagre que o levou a plantar uma safra inigualável, tamanha a perfeição dourada de seu trigo. Um escritor baseou-se nesta ideia, relativa àquele momento, em que um escultor procurava pela mãe, a médica que o esculpira no ventre, em gestos cênicos.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Divagações

O jornal deixou de publicar as crônicas de um famoso músico sobre futebol. Suas palavras sensíveis e poéticas foram consideradas divagações. Falavam do subjetivo justamente para aqueles que repetem já sem pensar que “futebol é uma caixinha de surpresas” e que, paradoxalmente, não entenderam a imprevisibilidade dos textos. Se o futebol imita a vida, e a vida às vezes é injusta, não é justo que o futebol se torne um esporte justo. Mas para o homem é difícil aceitar a frustração de uma derrota injusta. Por isso o mundo do futebol detesta a injustiça e ao mesmo tempo tenta negar que seja tão injusto.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ponto

Quero meu filho, quero meu filho! Os anos passam voando, os dias correndo, os minutos se arrastando. É duro ter de esperar a hora de bater o ponto, para não ser descontado, escancarando a submissão da figura do pai herói à do reles funcionário.

Gabriela

Abri um livro de poemas, tentando me encontrar neste mundo. Precisava de palavras precisas a me levarem a outro horizonte. Eis que enfiada entre as páginas, bem na fronteira da dobra, percebi uma migalha de pão. Estava envelhecida como meus sonhos. Seca como meus olhos afundados. Não aguentaria uma lágrima, tinha o tamanho de uma joaninha. Sinalizava um momento em que alguém por lá passou, o tal poema leu, com uma fatia na mão. Pensei em mil hipóteses sobre o que este alguém estaria fazendo. Seria meu pai, em um momento de ternura? Ou estaria ele angustiado com seus plantões desgastantes? Poderia ser a minha mãe que por lá passou, para relaxar à noite, depois de chegar da faculdade. Foi se graduar com quase 30, num esforço que me fazia ir dormir, à sua espera, na cama da minha avó. Ela assistia Gabriela, novela com a Sônia Braga, o Armando Bogus e o José Wilker. Deitávamos ao lado da pequena televisão em preto e branco. Eu mergulhava na noite, acalentava minha solidão sentindo o seu calor perfumado e envelhecido. O local escuro ficava azulado pela luz da tela. E aquela música tão melodiosa, tão sedutora, parecia remeter a doce velhinha a emoções antigas. Eu não sabia bem o quê, apenas sentia que ela respirava mais fundo, quase suspirava de emoção quando ouvia “Eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, Gabriela....” na voz da Gal. Penso que pode ser porque ela veio da Europa, sozinha em um navio, não teve muito tempo para aproveitar a alegria da vida naquela época de perseguição aos judeus, onde até a hierarquia familiar obrigava a filha mais velha a se casar antes. Parece que minha vó, mais nova que algumas irmãs, era a mais bonita. Todos queriam se casar é com ela. Por isso foi obrigada a se mudar para o Brasil. Contava que viajou só, de navio, chorando apenas na companhia do céu e do mar. Sofreu mas se recuperou. Acho que eu era um dos seus motivos de júbilo. Ela devia criar uma ponte ao se equiparar à linda Gabriela, vendo-a esbanjar sensualidade no entardecer da Bahia, para ir aterrissar, ou navegar, lá naquele quarto, comigo, tranquilizada e trocando sua feição idosa, com os cabelos prateados e curtos, pela empolgação juvenil refreada no torvelinho dos acontecimentos. Ela dizia, sempre que me despedia antes de ir para a escola, que eu tinha postura de presidente. Não cheguei a tanto. Mas se me visse com este livro na mão, acho que não se decepcionaria. Veria-me um tanto conformado. Ou melhor, orgulhoso. Por conseguir me manter como ela neste mundo com outras conturbações, mas também difícil. E ainda sorrir, acompanhado das lembranças, alegre por viver de migalhas.

Gladiador

Alguns filmes representam um lado do ser humano que não evoluiu como outros. Tropa de elite, por exemplo, toca na violência nos morros, na carnificina brutal que a rotina por lá se tornou para certos moradores. Comparando-se com a Idade Média, com a época do Império Romano, o homem realmente aprimorou algo de seu espírito selvagem. Mesmo com um aspecto animal ainda latente, predomina pelas ruas um certo controle. Já não se mata por qualquer motivo, como nas eras citadas. Exceto, é claro, nestes palcos propícios para a miséria humana, onde um código de ética paralelo ainda tem voz ativa. O protagonista do tal filme é um policial que faz justiça pelas próprias mãos, desabafa um pouco da ira sublimada de cada um de nós. Entretanto, ele apelou para uma opção cruel, permitindo-se se tornar um moralizador pelo ódio, ceifando vidas como um gladiador moderno. Curioso que seu nome na trama seja Nascimento.

Burocrata

Há funcionários que trabalham em um local durante 30 anos e mal criam laços afetivos. É aquele que atua ao lado de uma mesma pessoa durante esse longo período e o vínculo nem de longe esbarra em uma amizade, permanecendo alimentado por cumprimentos formais e conversas profissionais. Chega à sua mesa diariamente, coloca sua bolsinha de couro com documentos na gaveta, olha com esmero para seu celular adormecido ao lado do computador, fala oi para os presentes, e se enfurna em seus problemas. Enquanto passam os dias, fica submerso em uma rotina amedrontada, vive fugindo da ideia de descobrir em seu íntimo o porquê deste aprisionamento. Torna-se um autômato de seus hábitos enraizados, padronizados pela sociedade que o cerca, que age de maneira idêntica, calando-se diante de injustiças, cúmplice desta tortura da omissão.
Sempre que anda pelos corredores, teme que ouçam suas conversas, até seus pensamentos. Passa o tempo inteiro com medo de perder o emprego. O tema mais abordado pelos cantos da redação é justamente esse, demissão. “Este foi embora por isso”, ouve em uma conversa no banheiro. “Aquele por aquilo”, escuta na baia ao lado. Desenterra-se, na arqueologia desta paranoia, casos de décadas anteriores. “Há 17 anos o tal fulano saiu porque escreveu com erro de ortografia”, chegou a escutar. Mas ele mesmo se entregou a essa atmosfera de permanente fritura. De auto-fritura. E se mantém nesta frigideira contínua, na oleosidade de caráter que frita seu espírito. Um dia ele perderá até a oportunidade de sair da caverna, colorindo seus dias com mais ousadia, criatividade e amor. Será a realização de seu anátema, a derradeira demissão com a chegada da morte.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Fases

Jura, que nunca mais viajarás pelas nuvens, me deixando descalço, em terra batida, sem te enxergar pela noite perdida. Jura, não ser como Cecília no poema da lua, onde ela posa crescente, vai a minguante, se torna reclusa, depois amante. Se isso um dia acontecer, ficarei invulnerável, controlarei com um botão as ondas do teu universo, sintonizarei o teu espanto, compreenderei sereno a cadência do teu pranto. Terei eu poderes sobre o firmamento. Viajarei pelo teu mais profundo sentimento. E acreditarei piamente na doçura do teu juramento.

Gargalhada

Mãos fechadas em torno da boca. O menino cochichou no ouvido do vizinho na mesa e em seguida viu, entusiasmado, a chispa de sua mensagem se espalhar em roda. Sussurros, olhares ávidos, sorrisos contagiantes. Um falou para o outro que contou para o do lado. O jantar, de tedioso se tornou radiante, imerso neste telefone sem fio. Na palavra final, todos libertaram uma estremecedora gargalhada, que, de tão forte, me fez esquecer até qual era a frase dita inicialmente.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Traves

Lá na praia de São Vicente, há umas traves cravadas na areia. Sempre que ele passava de carro por lá, ficava entusiasmado com a ideia de jogar futebol, com traves e de graça. Falava para o seu pai sobre isso. Numa tarde foram juntos jogar bola no incrível local. Ficaram até anoitecer, sentindo a brisa no rosto. Ele no gol, o pai chutando de longe. Eram chutes fracos, para que o menino pudesse defender. Num deles, o garoto pediu que a bola fosse alçada por cobertura, para ele defender, salvando o gol com um chute de calcanhar para o alto. Muitos anos depois Higuita fez algo assim em Wembley, em uma jogada marcante. Marcante. Essa é a palavra para descrever cada um daqueles momentos do anoitecer, sob a brisa de São Vicente.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Insônia

Pela madrugada ele se revirava na cama, sem conseguir dormir. Sua vida estava mudando. Sentia-se mais forte e isso gera responsabilidade. Cuidar dos filhos, ganhar dinheiro e conservar seu gosto pela liberdade. Precisava conciliar tudo isso nesta nova fase. Teria de intervir em um conflito familiar em que um dos filhos de seu antigo tio agia grosseiramente. Virou-se para um lado, para o outro. Sua esposa deve ter percebido. Os primeiros pássaros da manhã já cantarolavam. O canto fino atormentava, como um sinal de uma noite perdida. Sentiu medo de se levantar. Queria pedir ajuda, mas não havia mais ninguém.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Perfume

Os raios da manhã lascavam a fronde de uma árvore, como se esta estivesse sob o ataque de lanças de fogo. Recostado ao pé do tronco, um menino bebia água de côco. Desfrutava da sombra e dos perfumes refrescantes da mata verde. Levantou-se apenas à tarde, sentindo na face o brilho acolhedor em que se transformara o sol. Assim sou eu, filho. A fronde da árvore que te protege e te liberta pela trilha da vida na companhia de um beijo iluminado.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Realidade

Acabara de discutir com um alcoólatra. Foi na saída de um bar na Vila Madalena, já na noite funda, mergulhada no silêncio sem luar. Envolveu-lhe uma sensação de humilhação por ter proferido palavras raivosas, cuja origem até era legítima, mas que perderam seu brilho ao alimentarem tão inócuo diálogo. Não adianta se confrontar com um alcoólatra, ralhá-lo porque bebeu. Ofender-se com o que falou. Entrou em casa, deitou ainda trêmulo com a confusão. Sonhou com um antigo amigo, de escola. Estavam juntos, indo e vindo por uma série de salas, pertencentes a um clube recreativo. Conversavam com diretores, sócios, sentindo-se plenos e seguros. Em outra ocasião, ouvia sua esposa, em um saguão de hotel. Ela lhe falava com serenidade e tom conciliador, acalmando-o. Na sequência, vencia uma corrida de carros de passeio, pelo trânsito paulista, contra competidores que iam de ex-colegas até o piloto Felipe Massa. Os afoitos concorrentes batiam, seduzidos por mudanças repentinas de trajetória, por arrogância e ambição. Ele se manteve reto, com perícia, na pista da esquerda. Desviou-se só o necessário e se surpreendeu com a vitória. Chegou antes a um prédio com uma escadaria na entrada. Esperava no saguão quando os organizadores já iam dando a vitória para outro. Ele não permitiu a afronta, fruto do descaso alheio. Argumentou sem perda de tempo e finalmente conseguiu o reconhecimento, ainda que sem impedir os ares de desprezo. Não fazia mal, estava feliz. Conseguia enfim se comunicar e obter retorno. A trama foi uma paradoxal obra-prima de sua mente, numa fusão harmoniosa do inconsciente com a sensatez da consciência. Ajudou-o a se sentir aceito por si mesmo, suportar a rotina de realidades que não podem ser sonhadas por outros. Sonhos são resoluções individuais. No dia seguinte, ao acordar, soube por telefone que o alcoólatra tinha morrido atropelado.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Travessura

O garoto nunca mentia para a sua mãe. Com frequência ele aprontava na escola. Faltas leves, até criativas. E a cada anotação de um professor em sua agenda, era um desabafo de contrariedade. “Ah, não, vou ter de contar para minha mãe...” Era de sua índole admitir suas culpas, às vezes até exageradamente. A mãe, por outro lado, irritava-se com a série de estripulias do menino levado, mas honesto. Porém, sempre em seguida a uma reclamação particular, ela o defendia em público. Não permitia que o estereotipassem, como mãe, e também porque conhecia suas qualidades. Talvez ela intuísse alguma razão oculta, uma fraqueza enviesada na direção de uma necessidade de aparecer, justamente para não descobrirem uma dificuldade de relacionamento. Sentia-se, possivelmente, culpada por uma falha, por uma desatenção qualquer. Uma vez, após ele ter jogado da escola uma casca de mixirica no quintal do vizinho, junto com seus amigos, foi punido sozinho. Desta vez a mãe se cansara. Um pouco em função das dificuldades da rotina, que põe os nervos à flor da pele. Bateu-lhe firme, não com violência. O suficiente para deixá-lo magoado. Horas depois, ela foi ao seu quarto, onde permanecia deitado, no escuro, ouvindo um jogo do Corinthians no rádio da cabeceira. Inerte, ele apenas moveu o olhar para avistar o contorno de seu corpo, aureado na luz coada pela fresta da porta. Ela lhe pediu perdão. E perguntou se ainda a amava. Ele respondeu que sim, e muito. Sentimento que, junto com a gratidão, perdurará pelo resto de seus dias. Afinal, ele não poderia mentir para sua mãe.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Dimensões

A terceira dimensão chegou de forma definitiva ao cinema. Imagens inebriantes surgem na tela quando mais de um foco de luz se dissipa para convergir em uma única imagem em nossas retinas cobertas por uma lente especial. O espectador sente-se participando das cenas, impele-se a se colocar no lugar dos personagens. O maniqueísmo da visão em duas dimensões fica enfraquecido. O espectro do universo se amplia em forma de paisagens, cenas simultâneas, movimentos. Dá para se perceber os pássaros revoluteando em sincronia, no fundo de um campo em que os protagonistas interagem.
Pode-se dizer, sem generalizar, que escritores vêem em três dimensões e jornalistas, em duas. O outro lado, tão propagado em redações, pode no fundo ter vários outros lados incógnitos. É insuficiente, e cômodo, se ater a ele, geralmente uma resposta padronizada a um ataque. O futuro promete novos horizontes a desafiarem cada vez mais a capacidade humana de absorção do universo, com a possibilidade de nossos olhares captarem uma gama maior de pontos de vista. A tecnologia 4D surge com volúpia para incluir o tempo às três dimensões. É possível que venham no rastro a 5D, a 6D, até um dia enxergarmos o que hoje nos é invisível. Novas percepções revolucionariam a civilização, em uma situação similar ao momento em que a escuridão conheceu a luz, os mares, os céus, a vida animal, a modernidade, as novas tecnologias. Um ciclo pode estar se encerrando para o início de vários outros. Até chegarmos a algo como a sétima dimensão, a 7D. Sete dias, o intervalo que durou a criação do mundo. Número sete, letra D, de dias. De Deus.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Análise

O paciente, por um lado, necessitava reconstituir um vasto repertório de hábitos enraizados em sua mente, que o levavam à angústia, ao desamparo e ao medo do contato social. Mas ele não podia deixar escapar, nesta enxurrada, suas qualidades nobres. A sua rica sensibilidade era, justamente, quem o deixava vulnerável. Não queria perder este encanto, instrumento para as mais criativas divagações. Por isso tinha de evoluir sem mudar. Precisava se transformar.

Andarilhos

Encontraram-se novamente em Nova Iorque. Ele chegou naqueles táxis amarelos. Mal apertou o número 10 da botoneira e lá estava o velho amigo, abrindo-lhe as portas do pequeno edifício da rua 52, east side. Foi um tanto constrangedor, isso ficou perceptível no sorriso amarelo de ambos. Afinal, viam-se, antes da viagem, quase diariamente, e aquela familiaridade pareceu esquivar-se no reencontro. Dos olhares, no entanto, hauria uma alegria incandescente.
Logo recuperaram a afinidade. Não precisavam conversar para intuir o que sentiam. O hóspede, amparado pelo núcleo acolhedor que simbolizava aquele apartamento, desfrutou a cidade com prazer especial. Enquanto o companheiro trabalhava, ele andava pelas ruas repletas de todo o tipo de gente, admirando a peculiaridade de cada um. Passeou pela beleza das tardes douradas no parque. Entrou nos museus, visitou locais tradicionais, outros desconhecidos, procurou captar todos os detalhes daquela metrópole pungente.
E à noite, iam jantar em restaurantes, colocando a conversa em dia. Quando não havia o que falar, voltavam a pé por quarteirões, embebidos pelo luar, ouvindo músicas do Sting, imersos cada um em seus fones de ouvido. O diálogo, nessas ocasiões, era feito pelo ritmo dos passos, pelos vultos andarilhos dos dois, que se revezavam, distorcidos e efêmeros, nas paredes iluminadas, dando a confortável percepção da presença do outro.
Foi uma temporada intensa, passou rápido. Serviu para que ele se revigorasse ao fortalecer ainda mais aquele vínculo. Na volta, rumo ao aeroporto, após se despedir, olhou para trás e viu, da ponte, a cordilheira de prédios candentes. Sentiu uma enorme gratidão por aquela massa urbana imprevisível, construída à imagem e semelhança dos seus habitantes, os cidadãos do mundo. Pensou que deixara lá um pouco de si, naqueles momentos de pura amizade. Pensou no parceiro que ficara, mantendo a cidade com o calor de sua individualidade. O cenário, naqueles dias, pareceu ter se contagiado com aquela empatia mútua, que já não acalentava a necessidade fremente da presença física. Experiências deste tipo, boas ou más, devem ocorrer com todos os turistas e moradores de lá, porque são as relações humanas que constroem uma cidade. Se não fosse assim, e sem o seu melhor amigo, Nova Iorque não seria tão linda.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Stones

A história caminha em nuances que se assemelham à lenta transformação do dia em noite, e vice-versa. Assemelha-se à lenda de Sísifo, obrigado, por castigo, a rolar uma grande pedra morro acima para, a cada fim de jornada, vê-la retornar incoercível para o chão. Assim é a sucessão de fatos, um eterno roteiro de onde emergem novas ideias, muitas remodeladas, a reaparecerem rolantes pelos caminhos da humanidade.
Na Grécia Antiga, o ascetismo de Epicuro buscava e acreditava no homem ideal, livre de seus dramas, valorizando a amizade. Guerras se sucederam e fanaram aparentemente essas aspirações. Por estes hiatos, entretanto, a chama do bem sobreviveu com seu brilho fulvo. E já no Renascimento, a obra Paulo e Virgínia, foi um dos bastiões do retorno da crença na alma generosa do ser humano. Ilustrou os conceitos iluministas concebidos por Rousseau, na defesa do humanismo e da possibilidade de que a boa fé prevaleça sobre conflitos terrenos. Shakespeare também buscou desnudar a hipocrisia em suas obras dramáticas. No século XX, pelos anos 30, despontou o inglês Aldous Huxley, autor de livros que remetem à esperança, como A Ilha, descrevendo aspectos de uma sociedade ideal.
Utópica ou não, essa força construtiva nunca desaparece e, durante períodos desconstrutivistas, céticos e amargos, emerge para superar a ambição, o ódio e a inveja corrosiva. E, sobre o cenário enfumaçado de Sodomas e Gomorras arruinadas, esta energia vital ganha a forma de um anjo, a estender a mão aos que estão no chão, chamuscados e avariados, para que se levantem e sigam adiante, amadurecidos, arrependidos, tonificados pelo amor. Resta a nós, companheiros da era atual, em que o século XXI dobra sua primeira década melindrado pelo sensacionalismo, pelo terrorismo, pelo egoísmo tecnológico, uma alternativa: esperar que a pedra comece a rolar, aliviada, morro abaixo.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Mictório

O aluno fez pirraça com o colega. Chacoalhou-o enquanto urinava no mictório. “Vou dedar”, disse a vítima, com a camisa molhada. E foi ao diretor, na sala do andar abaixo. Todos os professores estavam reunidos quando o arteiro foi chamado. Esperava uma advertência, já ciente de que errara. Mas não. O homem, trombeteando voz grave, decretou, ao estilo da ditadura então vigente. “Tira a sua camisa agora e bota esta molhada”. O menino ficou constrangido, na frente de todos, enquanto se arrepiava com o gelado meloso em sua pele. “Você vai trazê-la limpa até quinta-feira”. O repressor poderia até achar que estava fazendo o certo. Mas para um educador, não é bom deixar mágoas. E desde então, até virar adulto, sempre que ele se lembra daquela figura autoritária, não é envolvido por um sentimento de confiança. Penetra por suas narinas o cheiro vaporoso do xixi.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Metamorfose

Há pouco tempo, os jogadores brasileiros que atuavam na Europa tinham a vantagem de incorporar à seleção a maturidade que adquiriram por lá. Chegavam equilibrados, até melhores tecnicamente. Isso mudou, após as frustrações de 2006 e 2010. No contexto novo, é bom que muitos tenham aspirado apenas os ares brasileiros, sem adquirir os vícios da rigidez tática, pela identidade do nosso futebol. Globalização em excesso faz mal.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Dionísio

Para ser artista, é preciso ter o lado direito do cérebro desenvolvido. Ele abre portas para a imaginação. As palavras navegam em rio fluente, soltas, solícitas a qualquer menção da mente que as comanda. É verdade que o comandante tem de ser um chefe com moral, estimulante, porque se elas não vislumbrarem sentido em suas existências, essas palavras, ninfas de espírito alado, voam para outras paragens, fugindo da lucidez amorosa de Apolo para se perder na loucura estéril de Dionísio, deus fragilizado por ser filho de uma mortal.
O pretenso artista cai fulminado no chão duro da razão. Desaba diante de suas mazelas não superadas, no universo aprisionante do fato concreto. Vê interrompido o canal que une suas ideias às emoções. Seu pensamento cartesiano se embriaga de solidão por campos sem fim. Ele se vê arruinado, isolado na margem esquerda cerebral, observando, do outro lado do rio, seu similar artístico desbotar como em uma pintura impressionista, até definhar por falta de inspiração. Então, em vez de músico, prosador ou poeta, ele se torna apenas jornalista.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Sid

O menino assiste televisão, deitado no sofá, bebendo Nescau batido. Assiste I-Carly, Hannah Montana, as peripécias dos irmãos Drake e Josh. Mas é eclético. Desenhos também o satisfazem, a começar pela ingenuidade curiosa do Sid, o cientista, boneco animado com cabelos esquisitos. Sid quer conhecer tudo que o cerca e faz perguntas sempre intrigantes. Uma delas, qual a medida das coisas?
Atento, o garoto sabe sobre todos os personagens, entende as histórias e começa a conhecer um pouco da astúcia humana. Percebe quando há ironia e quando a ternura prevalece. Televisão não é leitura, seria absurdo falar o contrário. De qualquer forma, propicia uma integração com o mundo. À noite, em cima da estante, ela fica desligada, calada em um canto. Parece descansar para abrir suas janelas no dia seguinte. O menino dorme tranquilo. Seu semblante angelical transparece um sorriso franco. Ele está longe, pescando e mesclando as imagens que flutuam em sua mente febril. Nelas Sid se mistura ao seu pai no escritório, à sua mãe no supermercado, a ele jogando bola no parque ensolarado. Na tela dos seus sonhos acontecem as mais lindas aventuras. Quer desenho mais criativo?

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Magnética

Nunca imaginara entrar em um aparelho de ressonância magnética. Seu coração batia acelerado, já na maca. Com o rosto preso a um protetor facial, olhou para trás e pensou em gritar de pânico. Conteve-se. Entrou no tubo, parecido a uma cápsula espacial imersa em uma sala branca. Temeu por sua claustrofobia. Mas foi se descobrindo mais forte do que ela. Os barulhos ensurdecedores não o venciam. Nem mesmo aquele de britadeira em alta potência bem ao seu ouvido. Ou aquele que parecia o de um homem fúnebre repetindo frases distorcidas, em inglês. “Go on, go on, go on...” Aos poucos, a ânsia em fugir dali deu espaço ao desejo de sair logo dali, mas vitorioso. Decidiu não se render a seus temores, atiçados pelo aparelho que bem poderia ser usado por torturadores nos regimes ditatoriais. E pensou: se venço esses sons concretos, por que não posso superar meus rugidos internos, fantasiosos? Foi como uma sessão de análise, mais dura.
Ao sair, satisfeito, parecia ter encerrado extenuante viagem, tonto e enjoado que ficou o resto da noite. No dia seguinte, no café do hospital, leu na bíblia todo o regozijo divino após ter criado o céu, a terra, os mares, os répteis, as aves, os peixes e os outros animais, sequência concluída com a moldagem do homem e da mulher. Também foram tempos de barulhos ensurdecedores: tremores, ruídos da terra se abrindo, chiados da água açoitando a pedra, o doloroso rompimento da luz com a escuridão. O criador mesmo sabia que mudanças doem. Pode até ter ficado satisfeito quando Adão e Eva cederam à tentação da serpente. Só assim puderam se multiplicar e criar ramificações. Chegou a dizer, “agora eles são como nós, conhecedores do bem e do mal...” E descansou no sétimo dia, santificando uma missão cumprida, a ressonância magnética inicial.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Desapego

Escrevo com tanto amor, com tanto amor, que me dá vontade de pegar cada letra, limpar bem o seu corpinho, colocar o mais lindo vestidinho, pentear seus cabelos, lisos, dourados, quaisquer que sejam, abraçá-la se ela for sorriso, acolhê-la se lacrimejar triste, acariciar seu rosto formado por minhas vivências, largá-la para o mundo com aperto no coração, impelido ao desapego, articulando minhas últimas recomendações, quando ela olhar para trás, já na porta, para se despedir. “Vai com Deus, filha”.

Passione

O sul da Itália é cenário da novela Passione. Lá se espalha um tapume verdejante. De plantações e divagações. Onde mãos sujas de terra arrancam legumes, verduras, frutas. Em cada uma, uma raiz. E com a testa ensopada de suor, olhos franzidos, boca fechada, quase gemendo, o homem olha o céu como uma catedral reluzente. A abóbada é entremeada por nuvens, abaixo da luz que vem do zimbório e sua cúpula solar. Os campos à sua frente se abrem como fachada para o vento. As paredes são as montanhas. À noite, duas estrelas são o limite imaginário das torres ameiadas. Uma sequência de árvores se impõe como o átrio. A capela fica no leito. Um pastor observa o rebanho esparramado, que bebe a água fresca do rio. A água benta do rio.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Frase

Sentia vontade de desabafar com uma frase de gênio. Aquela que abarca um universo em cinco ou seis palavras. Aquela que resolve dilemas, abre novos campos de imaginação. Aquela que só os sábios sopram em golpes de inspiração. Aquela cheia de simplicidade a umedecer as cinzas inférteis da frustração. Aquela que levanta o espírito rumo a novas tentativas. Aquela que, em forma de consolo, ouvia de sua mãe quando criança. Aquela que embalava os ensinamentos de seu pai nas lições antes de dormir. Aquelas teorias em forma de balbucio de seu filho, quando este assiste a um desenho ou vê um buquê de flores. Aquelas opiniões de seu outro filho quando o Brasil não estava jogando bem na Copa. Todas estas, e mais aquelas, que ouviu, leu e que consegue se lembrar em forma de intuição. “Lembrar é fácil para quem tem memória, esquecer é difícil para quem tem coração” , de Shakespeare, é daquelas que ilustram sua intenção. Sentia vontade de desabafar uma frase como aquelas que se acumulam amorfas dentro dele, e mais aquela que ele não consegue, ou melhor, não sabe dizer.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Estética

Rubem Fonseca já foi comissário de polícia. Sua função era semelhante à de um juiz de paz. Intuía com maestria a angústia dos que se envolviam na marginalidade e sabia acalmar ânimos e conflitos. Depois caminhou para a literatura. Pelo seu estilo preciso, e altamente verossímil, percebe-se que ele não mudou de ares. Continua sendo um juiz de paz, de si mesmo. Quando descreve, com invejável riqueza de detalhes, personagens complicados e relata a violência brutal com uma naturalidade banal, como se tomasse um copo d’água, não está necessariamente prestando um serviço à sociedade. Pode, pelo contrário, até alimentar, admitir erroneamente a sedução pela opressão. Atiça nos leitores, sempre vulneráveis à imponência do autor, este espectro mórbido, tão impulsionado pela mídia e tão aceito pela população.
Ele, porém, deve sair beneficiado. Parece que canaliza todo seu lado cruel, rude, selvagem, prestes a explodir, em suas criativas histórias. Seus textos são sua catarse interna. A mim assustam pela perfeição estética. Esta estrutura engana, como se nos atraísse para o abismo de um mundo vil. Sua linguagem direta conduz para um labirinto pornográfico que envolve nossa alma como se fôssemos crianças diante de um adulto bravo. E nestas situações covardes, os adultos têm sempre razão. Essa pelo menos é a impressão, muitas vezes falsa. Fico acuado ao sentir que o laureado Rubem Fonseca tem sempre razão. Tenho medo de Rubem Fonseca, um escritor bandido.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Retratos

O sol coroava a tarde fria nas montanhas de Águas de Lindóia. Enquanto a noite não chegava, no mesmo quadrante do tempo, ele passeava pelos pontos onde andou sua avó, décadas antes. Foi ao mesmo hotel no qual se hospedou então com a família. Vagou pela recepção, decorada com lustres imponentes, sofás e lembranças. Até ouviu, na sonoridade que ecoou do passado, seu pai conversando no restaurante, falando dos planos da viagem, negociando com a recepção. Era a mesma voz mansa a se perpetuar naquela atmosfera tão revigorante como as águas da região. E caminhou até a praça, que abrigava em seu interior um lago de águas calmas. Num dos bancos laterais, a avó fora retratada, numa dessas fotografias que se eternizam e se tornam símbolos de adoração familiar. O retrato trazia um olhar já cansado, sempre pacífico, a refletir um misto de conformismo e amor pela vida. As mãos, sobre as pernas cruzadas, pareciam repousar na saia de delicadas estampas. Com cabelos brancos, curtos e cuidadosamente penteados, ela emanava uma discreta alegria. Estava feliz, satisfeita por ver sua família unida lá, naquele passeio que embalava o fim de seus dias.
Ao retornar àquele local, ele fez questão de também ser retratado, com seu filho no colo, numa homenagem e símbolo de continuidade. A tarde parecia a mesma. O sol reluzia sobre as águas contidas do lago. Posicionou-se para a foto. O silêncio das vozes, do pai e da avó, foi substituído por uma brisa suave que o acariciou com o seu perfume. O menininho, ainda bebê, já dava sinais de impaciência, começava a balbuciar um choro. Percebeu-se então um pêndulo, a oscilar entre a inocência da infância, esta manhã ensolarada e impetuosa, e a sabedoria da velhice, sol errante que se desmancha no anoitecer. O novo retrato configuraria a longa jornada, integrada no corpo unificado das gerações. Por isso ficou satisfeito, como sua avó. E naquela praça, naquele dia, intuiu pela primeira vez o aroma do paraíso.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Retumbante

As olheiras escuras mostravam abatimento. A barba, estava por ser feita. Ele não conseguia mais esconder a calvície que se abria em seus cabelos encaracolados. Beirava os 50 anos e sequer tinha uma propriedade em seu nome. Quando dei três tapinhas em suas costas, dizendo-lhe até amanhã, percebi minhas mãos se aquecerem. Um calor emanava, pulsante. E atravessava a camisa de gola amassada por um dia de trabalho. Sempre fora idealista. Agora se sentia desgastado, oprimido em frente ao computador.
Os tapinhas ressoaram fundo, em um som oco que parecia um desabafo engasgado. Se eu pudesse transformar em frases aquela sonoridade que só os amigos sabem escutar, diria que seu corpo estava falando, em tom de lamento, aquilo que não conseguia comunicar em palavras. “Eu sou um homem bom, eu sou um homem bom”, foi o que ouvi.

Holanda

Fatos que se sucedem no tempo implacável. E que carregam nos seus rastros detalhes infindáveis, capazes de preencherem um livro se analisados com minúcias. Assim é a vida, assim é o futebol. A derrota do Brasil para a Holanda já é passado. Tornou-se passado assim que o juiz apitou o fim do jogo, levando as esperanças daqueles que acreditavam. É isso que dói, ter a precisa noção de que o tempo não volta atrás, que o rumo dos acontecimentos não pode ser corrigido. Tampouco lamentos conseguem reescrever a história.
Tudo aconteceu muito rápido. Antes da partida, naquela ansiedade, pensei na vitória, baseado no aprendizado das últimas derrotas. Tive a intuição de que a vivência, apenas a vivência, se imporia naquele gramado, uma espécie de savana desenfreada de jogadas e sonhos, para que tudo desse certo. Mesmo a experiência, porém, não é suficiente para nos tornarmos invulneráveis. Dunga e o nosso aguerrido time sentiram isso. Mais uma página foi virada na história das Copas.
Mas toda a determinação do grupo na sedutora África do Sul e a lição dolorosa de que os desejos às vezes teimam em não prevalecer, apesar de o dever cumprido, mostram mais uma vez que nem sempre a vitória é o mais importante. Já sinto falta das arrancadas imponentes do Lúcio, da insistência do Kaká, do olhar obcecado do Maicon, da força do Luís Fabiano, da seriedade do Robinho, que guardou seu jeito moleque nestas ocasiões em que o futebol é solene.
Já guardo com uma pontada de dor e saudade esta Copa do Mundo, para mim sempre um manancial em que navegam minhas esperanças, um campo por onde correm os meus amores, para além do meu tempo, neste livro que nada mais é do que a compilação das minhas emoções.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Lanchonete

A noite perfumada ao redor do pequeno edifício, onde ele fazia o curso, não escondia um ar melancólico trazido pelo vento. A região e os seus objetivos até que eram nobres. Esperava o início das aulas sentado na lanchonete moderna ou no barzinho de fast-food para ricos. Comia sanduíches vazios, caros, que não matavam sua fome. E quando começava a aula de escrita criativa, em salas luxuosas com sofás e almofadas, pouca coisa mudava. Havia certas madames com frases irônicas que provocavam gargalhadas. Advogados com um estilo blasé. Estudantes tentando mostrar a todo custo a própria intelectualidade. No geral buscavam esbanjar, ou arrotar, cultura de uma maneira impositiva. Até que demonstravam técnica na elaboração de textos, que, no fundo, não contavam verdades. Para ele, era como se continuasse sentado na lanchonete moderna ou no fast-food para ricos comendo os mesmos sanduíches vazios.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Céu

Se eu fosse o céu noturno, você seria um véu. Abraçaria minhas estrelas e tantas nuvens ao léu. Acenderia corpos celestes, espalhando luz fugaz. Preencheria buracos negros, estimulando órbitas de paz. E lampejos resistentes fluiriam da minha mente. Alimentaria minha força gravitacional, a barrar quedas livres, no meio do descampado, de alguém desamparado, neste mundo turbulento, maluco, confuso, sem olhos para o tempo, sem tempo para o vento, de disputas por assento, de pichados monumentos, da rejeição da história, da falta de memória, da vista cansada, do olhar aflito, do canto maldito, no espaço restrito, da ferradura que prende, dissimula, inflama a chama da dor, e me impede sem pena, de olhar pra mim mesmo, de vislumbrar o universo, de mergulhar no meu céu, do lado de lá, e te encontrar, Eloá, quando você não está.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Números

Fico pensando nesses chefes, imaturos. Eles chegam engravatados, ou de salto alto, e logo se fixam na concretude da tela do computador. Fixam-se também em números, em horários inflexíveis, em detalhes irrelevantes, deixando de lado os relevantes, como um suspiro desgostoso que contamina um ambiente ou um sorriso discreto de um feito pessoal. Consideram-se modernos, alienados por se sentirem extremamente atuais.
São filhos de um dilema mundial. De um lado, a ética humanista, base da justiça social e de qualquer êxito político. Do outro, a tecnocracia, o mecanismo insensível que procura a eficiência. Conflito tão áspero quanto o atrito da foice com o martelo. Luta filosófica pela hegemonia cultural de Gramsci. Neste ponto da história, o comunismo não predominou. Nisso Marx errou. Acertou, no entanto, que prevaleceria o materialismo. Como se vê, na vida, tudo é relativo.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Desejos

Eu queria que os dias passassem mais devagar, para lembrar cada gesto, cada sopro de vida no ar. Ter tempo de enxergar almas que não vejo, entender argumentos, razões, até mesmo más intenções. Desarmar rancores com amor e paciência, sem o orgulho da convivência, desapegado da aparência. Queria ter tempo para encontrar soluções, me estabilizar financeiramente, ajudar mais os outros, poder visitar um parente. Queria ser menos egoísta, por querer tanto tudo contra o tempo que corre surdo. Não queria deixar o meu filho, todo dia quando vou trabalhar. Gostaria de estar sempre com ele, na praça, com graça, lembrar mais do meu pai com saudade, desfazer no fio dos dias o peso que me traz a idade.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Motorista

Carro e bicicleta entraram juntos em uma ponte. Era noite. O motorista, logo adiante, notou algo estranho. Acelerava fundo, mas via pelo retrovisor a bicicleta se aproximar. A sensação foi das piores, como muitas que já teve. Sentiu-se fraco por não conseguir, nem com o motor do possante, se distanciar de um veículo de pedal, movido por pés de alguém que aparentava ser desnutrido, vindo da favela que piscava nas cercanias.
Sempre foi assim em sua vida. Sentimentos de perseguição, de ameaça, de fragilidade. Era ele o derrotado em todas as pendências que surgiam. No trabalho, em vez de se desenvolver, era rebaixado. Nas letras, pouco frutificava. Olhava cada semelhante com a certeza de ser inferior. Seu brilho se apagava com a primeira cara amarrada. E eram muitas. O texto do outro era melhor, o astral daquele era insuperável, sua autoestima se desmilinguia diante do primeiro gesto do interlocutor. Era como se tivesse nascido apenas formalmente, sem poder existir.
Agora, nem de carro conseguia ser mais rápido que uma bicicleta. Parecia um pesadelo, ele pisava e mesmo assim o ciclista chegava mais perto. Até que o ultrapassou, já na alça de acesso à avenida. O carro, por sua vez, parou. No marcador, um sinal de alerta. O ponteiro mostrava tanque vazio. Tanta era a cobrança, que a máquina e sua inoperância se materializaram em seu corpo. Seu coração bombou mecânico. As veias transportaram óleo sujo. Do pensamento, faíscas de curto-circuito. Seu estômago roncou. E na boca sentiu sede de gasolina.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Palavra

A verdadeira palavra escrita tem movimento. É como um casulo que abre e permite os vôos de uma borboleta colorida. É a palavra que toca, transporta, se torna imagem. Penetra na alma de quem a lê, esmiúça os sentimentos, mobiliza a intuição. Remete ao paladar, visão, olfato e audição. Não é a palavra morta, opaca. Esta é alimento sem conteúdo, que finge enriquecer, mas afasta. Exime-se, mantém a distância. Não transforma, apesar das aparências de erudição ou imparcialidade. A impressão da palavra vai além do papel. O papel da palavra é revelar uma impressão.

Selvas

Ele navegava em um barco turístico no coração da África. O entardecer se fechava lentamente pelas águas cintilantes do Zambezi. Revoadas de pássaros emergiam da vegetação abundante. Nas margens, hipopótamos preguiçosos mantinham apenas a cabeça de fora para respirar ou espiar. E no leito do rio, o sol lançava seus últimos raios.
Aquele momento tranquilo e selvagem foi uma referência para ele. Não tinha um supermercado para recorrer em caso de necessidade do mundo moderno, mas trazia uma mensagem.
Prometeu que quando estivesse em um engarrafamento na cidade grande iria se lembrar da beleza primitiva do mundo. Jurou não mais esbravejar sob o calor do carro, pensando ser aquele o único lugar da Terra, embebido de uma pressa venenosa. Além da rotina asfixiante havia uma África do outro lado do planeta. Com objetivos e busca de felicidade bem diferentes. Lá, a ânsia e a luta pela sobrevivência tinham outro ritmo, mais lento, natural. Adormeceu sob o luar imponente, ouvindo apenas o murmúrio da selva que se recolhia. Deixou-se levar pelo tempo até acordar com as buzinadas, em um cruzamento qualquer.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Sopro

O filho da puta entrou na sala e encontrou a puta que o pariu. Ela o acolheu em seus braços flácidos. O rosto barbudo e atormentado se aqueceu no corpo sofrido, ainda resistente. No pálato, o amargor deu lugar a um gosto de ternura. E sem dizer palavra, o olhar grato se expressou como um sopro, bem lá de dentro. “Mãe.”

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Trem

Três amigos andavam pela linha do trem. A neblina campestre encobria o cenário de vultos, ao ritmo dos sapatos em atrito com pedrinhas. Até que um outro elemento entrou em ação. Um trem, vindo em alta velocidade furou a montanha e se avolumou monstruoso por de trás deles. Só perceberam após o apito da morte, ensurdecedor. Como se sabe que os três eram amigos? Naquele momento, eles se deram as mãos.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Platônico

Aristóteles dizia que a arte é uma saudável imitação da realidade, encenada ou escrita. Seu professor Platão era radical contra os artistas: propunha o ostracismo para os poetas da República, por considerá-los enganadores. Mas, sem saber, Platão criou uma obra de arte. Genial, o Mito da caverna projeta uma verdade em forma de representação. Nesta metáfora o homem vê um mundo fictício, submetido a paredes de pedra que o impedem de perceber outras imagens, iluminadas e reais, predominantes lá fora. Surge aí um dos primeiros paradoxos da filosofia. Platão não foi mais além.
Aristóteles é que fez este papel. Sua definição de arte serviria perfeitamente para tirar os homens das cavernas platônicas. Artista para ele imitava a vida quando criava uma tragédia, uma epopéia ou um diálogo. Por de trás das obras residia um tesouro que falava sobre ética, filosofia, moral e amor. Não se tratava necessariamente de mentira. E Platão não conseguia ver que criatividade e catarse artística são um eficaz instrumento para a saída do escuro. O discurso do aluno, portanto, superou o do professor. Platão, no fundo de suas cavernas, mostrou ter vários dilemas e deixou parte de suas teorias presas apenas a um discurso que ele resistia a por em prática. Algo de seu inconsciente o traiu, a arte parecia tocar em trauma profundo do pensador. Seria muito bom para a filosofia, e para a arte, se na época Platão pudesse ter sido atendido por Freud.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Latidos

Os cachorros da minha irmã latem muito, pulam, enchem a gente de arranhões. É só buzinar lá da rua para se ouvir uma sinfonia de uivos, ganidos eufóricos por encontrar gente, receber carinho, brincar. Sopra da sala da casa um furacão de impetuosidade e afeto. Duas fêmeas pretas, uma peluda, outra de pelo liso. O macho é lépido e desobediente, tem a cor embranquecida, pelos desordenados na cabeça, corpo esguio e olhar de criança levada.
Os três foram retirados da rua, onde viviam sofrimento e abandono. Transformaram a dor em ânsia por amigos. Deixaram a revolta à margem, uma ferida bem guardadinha lá dentro. Até se assustam com movimentos mais bruscos do pessoal da casa. Thomas Mann escreveu um conto em que um homem pobre e frustrado tortura seu cachorro até a morte. Com crua sabedoria ele descreveu um lado humano muito comum ao se deparar com as agruras da vida. O de descontar, perversamente, nos mais fracos. Transferir a eles, em diferentes níveis, o cenário das próprias mazelas pessoais. Isso também vale para o dia-a-dia das relações humanas. Na verdade, estou fazendo uma homenagem à minha irmã.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Arrependimento

O homem que se arrependeu entrou na bolha do tempo feita de sabão. Girou no ar, envolvido pela esfera transparente. Viu raios de luz se intercalarem. Abriu as mãos para interceptar mistura tão colorida, como se isso desfizesse acontecimentos que o levaram até ali. Em vão. Ploc, a bolha explodiu, instantes de azul, verde e dourado se desmancharam à sua frente. Sentiu-se sonho, antes de morrer no suave vislumbre do que não foi.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Maresia

Drummond vagava pelas ruas de Copacabana com passadas suaves. Em seu rosto magro e por trás dos óculos de intelectual, estava estampado o mapa da paz. Cumprimentava conhecidos com discrição pelas esquinas. E desfilava sua simplicidade nas ruas bucólicas do bairro. Enquanto atravessava as sombras acolhedoras da região, parecia mergulhar em sombras internas em busca de inspiração. Muitos versos surgiram durante aqueles passeios pelas manhãs amenas. Eram ondas estourando em um mar turbulento de emoções. Ele nasceu onde não havia mar, precisou ir morar na costa para juntar dois oceanos. Sua estátua de bronze permanece lá à beira da praia contemplando a vida. Copacabana tem cheiro de verso de Drummond. Tem cheiro de maresia, mistura de mar com poesia.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sinais

Na vastidão de Marte há uma atmosfera de nostalgia. A cordilheira de Vales Marineris tem 4 mil quilômetros de comprimento. Há bilhões de anos devia observar, imponente, motoristas-pilotos conduzindo suas naves pelas cidades, embarcações cortando os vales em rios caudalosos, dois velhinhos marcianos, sentados no banco de uma praça, lendo a última edição de O Marciano e da Folha de Cydonia. Era uma noite vermelha, tranquila. Eles também achavam que tudo aquilo nunca iria acabar.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Leitor

Você que não me lê, tento entender sua preferência por perambular horas procurando geléia de mocotó nos supermercados. Seria por isso? Espero que não seja porque a fronteira bilateral marítima das duas Coréias está tensa e você se encolhe, deprimido porque guerras prosseguem. Você jovem, pode estar preocupado com a balada no sábado. Ou com o show do Hori. Pode também preferir ficar no quarto escutando o som que seu pai ouvia, Led Zeppelin ou Black Sabbath e seu rugido impetuoso.
A linda garota pode estar preocupada em saber se a blusa com gola boba que vai usar irá abafar. A senhora psicanalista, encimesmada em seus estudos, de certo prefere continuar mergulhada em sua rotina. O taxista que rompe o dia no asfalto urbano, coitado, nem tem tempo para computador. O professor precisa corrigir as provas do dia seguinte, o colega está preocupado com a bronca que levou. Enquanto isso, insisto em flutuar nas palavras que me alimentam, escrevendo para mim mesmo, renovando minha alma em desvãos de um mundo desligado de minhas ideias, desapegado de minhas carências.
É assim, minha intenção é me reciclar de frustrações desabafando no espaço em branco. Posso até transgredir, ninguém vai ler mesmo. Poderia escrever pesquiza com z, xingar quem eu quero, colocar os piores palavrões. Ressalto: colocar, não publicar, porque não tenho público, digo sem mágoas. Mas não faço nada disso porque tenho comprometimento comigo na conversa muda que só eu escuto.
Até me fortaleço nessa viagem solitária de apenas uma mão. Sem volta. Aventei a hipótese de que sou tão sincero nos meus textos, que a intensidade emocional, como uma carga elétrica, choca os que pensam em me ler antes mesmo de lerem. E os afasto, como faço com você, que não me lê.
Penso às vezes que você não me lê de propósito, para que eu finalmente entenda que meu outro eu é meu maior interlocutor. E perceba que escrevo para ele, alguém tão diferente. Outro dia no São Paulo e Palmeiras, um comentarista imaturo, do alto de sua sabedoria concreta, comentou que o São Paulo sabia o que queria. O Palmeiras nem tanto. As duas posturas falam de uma mesma pessoa, ao mesmo tempo. Eu também, ele também, você também sabe e não sabe o que quer. Descobri que um torcedor pode se projetar e se reconhecer também no adversário, nesse jogo de amor e ódio que é se olhar no espelho.
É, já estou falando demais, justamente porque sei que você não vai ler. Pode reparar, na maioria dos textos que escrevo, com a ilusão de que alcançará alguma retina ao acaso, sou mais contido. Desta vez deixei a ingenuidade de lado. Mesmo assim, me despeço, por hábito e educação. E mesmo assim continuarei insistindo. Voltarei daqui algumas horas. Ligarei o computador, pensarei em uma ideia e escreverei sem mais me preocupar que a mensagem na garrafa aporte em local acolhedor. A sua não leitura já me acolhe. Sou grato por isso. Até amanhã, desejo tudo de bom a você, que não me lê, não me compreende, não me vê.

Constelação

Cada gênio da bola tem seu estilo. Nilton Santos era sábio e correto. Didi reinava discreto. Zizinho era menino levado, Platini, refinado. Falcão desfilava elegante. Zico definia em um instante. Doutor Sócrates, intuitivo e cerebral. Rivellino explodia, temperamental. Mágico era o Garrincha com sua espontaneidade. Zidane encarnava a seriedade. Mesmo sem fraque, Van Basten parecia maestro, de verdade. Gullit tinha um lado selvagem. Heleno fazia muita bobagem. Rijkaard era tático, o jogo de Cruyff era prático. O de Rivaldo, matemático. Beckenbauer tinha visão de comandante, Maldini dosava staccato com andante. Rummenigge esbanjava sutileza. Romário, esperteza. O jovem Ronaldo rasgava o campo como o vento, Ademir da Guia era lento. E os dois maiores, o que eram? Um pouco de tudo, cada um para o seu lado. Pelé era divino, Maradona, endiabrado.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

África

A humanidade surgiu na África. Lá despontaram várias espécies de hominídeos. O continente ainda abriga uma fauna repleta de leões, elefantes, rinocerontes, gorilas, antílopes, leopardos a interagirem por savanas, montanhas e planaltos.
Os negros de lá, escravizados, foram levados pelo mundo, espalhando sua cultura em cada respingo de sangue e lágrima. Do ventre desta dor surgiram o samba, a rumba, o candomblé em vários países. Enquanto isso, aquela imensidão ia empobrecendo graças à exploração predadora de europeus.
Entre eles os ingleses, os mesmos que trouxeram o futebol para o Brasil. Mas foi só a partir dos anos 30 que este esporte virou paixão no país. O negro passou a atuar nas equipes, nos tempos de profissionalismo, e isso foi decisivo.
De um lado os povos negros eram espoliados na África, de outro ajudavam com a magia de sua ginga a divulgar um esporte inglês que fez do Brasil seu maior campeão. A vida é mesmo uma irônica sequência de acontecimentos que um dia se encontram.
Como agora, quando essa loucura estará reunida na Copa do Mundo. Melhor lugar não há, a África e sua selva carregam o mesmo lado primitivo do homem projetado no futebol. O ódio e a ganância do dia-a-dia se misturam à intuição animal, capacidade permanente de se renovar com a criatividade enquanto a bola rola. A bola rola com o mundo, gira resvalando no remorso e na beleza do drible que desenha nas faces um sorriso de esperança. Assim cada grito de gol se confundirá com rugidos, grasnados, pios a ecoarem por vasto território, dentro e fora de nós.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Gradação

Um dia, durante longos anos de solteirice, falei para uma mulher. "Eu te pego com firmeza, eu te beijo com amor, eu te amo com ternura". Deu certo, foram palavras mágicas, que estavam esperando para sair. Ela se tornou minha esposa.

Zodíaco

A geometria de Santo André é única. Pela Av. Industrial, você imagina que está indo ao norte e de repente se vê no oeste, perto da Prestes Maia. Parece ser uma cidade feita de oásis, a surgirem subitamente como salvação. Primeiro confundem, depois se tornam referências mais fixas, a auxiliarem a cortar caminhos e pegar atalhos de satisfação. Mas bem que, no começo, associei a cidade a um dos seus bairros, composto por ruas com nome de signos: Peixes, Libra, do Zodíaco. E para mim fazia sentido. Cheguei até a acreditar que, a cada dia, cada logradouro mudava de lugar de acordo com o astral do município.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Tela

Mergulhei na tela do hardware, levado pelo risco que pulsa.
Na amplidão do espaço em branco, me senti em geleiras ocultas.
Até que encontrei um caminho, conduzido pelas palavras.
Segui escorregando na trilha, rodeado por mar de ondas bravas.
Cada vez que formava uma frase, parecia que o sol me aquecia.
Em trajetória curva e glacial mais forte me sentia.
Já em uma carruagem, por campos de gelo seguia.
Escrever é estar dentro da tela, que une encanto e magia.
Entrei então em fiordes, tentei rebuscar não deu certo.
Olhei perdido pra frente, na fria areia o deserto.
Refiz intrincado traçado, impulsionado pelo vento polar.
Subi elevadas montanhas, sem respirar, com pouco ar.
Em um momento da trama, me deparei com a aurora austral.
A vista linda e o céu limpo me ajudaram a chegar ao final.
Percebi que a noite brilhava, misturando sol e lua.
Cristais de gelo piscavam, como vaga-lumes na rua.
Olhei para fora da tela, vi meu rosto concentrado.
Reconheci o menino de outrora, olhos brilhantes animado.
Batucando o teclado de letras, sentiu-se realizado e leve
Desde criança sonhava poder viajar pela neve.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Ouro

Midas aceitou a dádiva de transformar em ouro tudo que tocasse. No início, exultou. No caminho de volta para casa, tocou em uma folha, que logo pendeu pesada e reluzente. Viu a pedra que segurava se transformar em jazida. Em casa, que simboliza a sua intimidade, exasperou-se. O encanto tirava a vida de tudo: da maçã que iria comer, do vinho que iria beber, da filha que tanto amava. Percebeu que fizera péssimo negócio induzido pela ganância. Conseguiu desfazer o feitiço e buscou refúgio nas florestas de Pã.
Nos cofres do Tio Patinhas, se acumulavam pedras preciosas, colares de diamantes, brilhantes, moedas, anéis de prata, barras de ouro. Uma fortuna, nunca utilizada. A necessidade de aumentar a quantia só existia para acalmar a ânsia incontida de seu dono. Cada nova riqueza era despejada nos porões de sua casa, onde reinava sua intimidade, após descer grandiosa escada da mansão isolada no alto de um morro.
Midas se afogou na ambição. Patinhas derreteu solitário, na inanição de sua mesquinhez. Difícil essa questão de lidar com o ouro que transborda em nós. Escondemos sorrisos, olhares e opiniões que brilham para não assustar o mundo e paralisá-lo com muita luz. E para não sermos roubados, deixamos tudo isso escondido embaixo das escadas sombrias de nossas moradas.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Escuro

A força tinha acabado, ele entrou em casa às escuras. Mal deu para assistir a novela. Era tomar banho frio e dormir. Lembrou-se porém do jogo decisivo que não poderia assistir. Mal acostumado, nem mais se dava conta de que outrora cada partida era um mistério a ser visualizado pelas narrações do rádio.
Não havia tantas transmissões televisivas. Hoje tudo pode ser visto instantaneamente. Nos tempos do videotape, os jogos eram reprisados uma única vez, nas noites de domingo. Veio a recordação de um jogo do Brasil, lá pelos anos 80, que ele ouviu no seu quarto escuro, simples, na companhia apenas de um armário de compensado, uma cama e um quadro da torcida corintiana feito por sua mãe.
O resultado de O x O, o mais execrado no futebol, pouco importou. Nem mesmo a atuação apagada do Sócrates, que ganhou apenas a nota 4 no dia seguinte no JT. Ficou apenas a emoção daquele momento. No silêncio, ouvia e imaginava o Morumbi lotado, cheio de frenesi nas arquibancadas, refletindo um cenário que esquentava a noite com o vapor brilhante dos holofotes. Era um gostoso contraste sentir-se de pijama, pronto para dormir em sua antiga cama de solteiro, acoplada na cabeceira a um baú cheio de pôsteres.
Vivia agora momento semelhante, apesar de a cama ser de casal. Ligou o radinho, ou melhor, o celular, em sua estação preferida. E se pôs a ouvir a partida como há anos, deixando o controle remoto de lado. Pela janela, dava para ver a lua cheia pendurada no tempo. Sua superfície prateada serviu como uma tela. Trazia imagens do jogo e do passado, nas ondas do rádio.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Salão

Um homem humilde entrou no salão aristocrático. O segurança o barrou. Ele estava com uma roupa amassada, terno encardido, sapato velho. Baixinho e moreno, passava a impressão, por seu olhar carente e volumoso, que se tratava de uma criança. Enquanto via o lustre central, com centenas de lâmpadas expelindo uma luz palaciana, apenas ouviu. “Queira se retirar, não está incluído na lista”. Até se sentia convidado, por ter namorado a nova faxineira da noiva, com quem rompera há pouco, não por vontade própria. Fora lá para entregar uma rosa, que parecia murchar cada vez que ia se afastando. O jeito era se conformar apenas com a vida de mascate. Nem pode retrucar com o “você sabe com quem está falando?” A única coisa que restou desta aventura foi uma lágrima teimosa, que demorou a se desfazer no piso envernizado.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Ser

O telefone tocou, o assessor de imprensa, do outro lado da linha, mal teve tempo de terminar o que falava. “Mande um e-mail, ok?”, cortou o jornalista. Ele mesmo criou para si e se envolveu em uma redoma frenética, onde tudo e nada interessam ao mesmo tempo. Tudo e nada se anulam, sempre em busca de algo mais, insaciável volúpia de parecer que se está trabalhando, de se dar uma importância para esquecer a própria desimportância. Tudo e nada se encontram no fato concreto estampado na manchete, sugando a subjetividade, o sentimento, o humanismo. Não sou ninguém. Apenas estou ocupado.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Bola

A bola pinga numa nuvem no céu, uma ponta de estrela a joga pra Terra, ela pula pula e vai pro jardim, resvala nas flores, esbarra no barro, desliza na grama, cai chocha na areia.
Um garoto de boné a chuta de leve, ela ganha impulso vai parar na lagoa. Um patinho a bica ela gira na água, cai num barco, é levada à praia, depois ao calçadão. Desvia-se dos carros, das pernas que correm.
Um viajante a põe na bagagem. Leva-a no navio, por continentes, até minha casa. Alguém de pé no berço, agarrado na grade, acompanha longa trajetória. Vê ela agora bem à sua frente. Dá três pulinhos e ergue os bracinhos. Grita extasiado, com voz de bebê. “Dá!”. Eu, como bom mensageiro, cumpro o papel. Entrego à criança o mundo em suas mãos.

domingo, 16 de maio de 2010

Geologia

Havia algo fendido dentro de mim, fragmentado como um cânyon. De profundidade quase infinita sem encontro com leito de rio. Sedimentos eram expostos à geologia social, nas camadas mais aparentes, nos afluentes que fluem águas rasas havia essas fendas, abertas em vales, cobertas pelo tecido suave e azulado do céu, estonteante em luz intensa, sem adornos, sem aconchego, em pedras duras desprotegidas, erodidas por raios corrosivos de sol escaldante e dor lancinante, sem flores, sem pássaros, sem água, sem sonho.
Um dia, alguém com seu cajado transformou essa fenda, como Moisés repartiu as águas do mar para a passagem de um povo. Eu então passei, encontrei paisagens arrebatadoras, realçadas pelo verde de cintilantes colinas, pela dança silenciosa do mar, pela luz rosada do entardecer. Vistas que apaziguaram a fúria seca de meu deserto interior.
Não estou mentindo. Essas palavras foram escritas com o doce gosto do néctar, o refresco do orvalho e a sombra úmida de uma árvore em torno de um lago. Boa noite céu estrelado, em seu veludo escuro só vejo a luz radiante das opalas e das esmeraldas. E o sorriso da lua minguante, como um risco num pálio de seda. Havia algo fendido dentro de mim que foi preenchido pelo que mais me assustava. O tempo, o amadurecimento, o mistério do universo.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Impotência

Richard Nixon foi uma amostra do ser humano nos ditos tempos modernos. Inseguro desde a infância, tentou superar fragilidades angariando o poder, manipulando, trabalhando sua imagem.
Seu aspecto de homem comum, pouco cativante em sua estatura mediana e semblante sério, o conduziu a grandes realizações pessoais. Tornou-se, com um discurso conservador, presidente da maior potência do mundo.
Mas isso não serviu para o seu bem-estar. Não conseguia suportar frustrações, queria agradar a todos. Implorava, em passeios a pé por Washington, para os jovens entenderem o porquê de não abandonar o governo do Vietnã do Sul e insistir em uma paz com honra. Mal compreendido, era visto como patético.
Buscava a todo instante mover moinhos de vento para preencher imensas crateras interiores. Paranóico, exigia de seus assessores monitoração permanente da mídia. Ligava para Kissinger em plena madrugada perguntando se tinha feito um bom discurso.
Fez a aproximação com a China e com a União Soviética para se mostrar um estadista. Queria sim o bem dos Estados Unidos, atento como poucos à realidade mundial. Mas acima de tudo queria encontrar uma nova mãe, uma nova infância, talvez materializada no conceito de História. Por isso ansiava entrar para a História, alçar seu nome à nuvem da eternidade, na ilusão da onipotência dos fracos.
O primeiro-ministro inglês, Benjamin Disraeli, dizia no século XIX. "Um grande líder conhece a si mesmo e o seu tempo". Nixon conhecia muito bem o seu tempo. E, como a maioria de nós, sabia muito sobre si mesmo. Era isso que o desesperava.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Dentinhos

Aproximei-me do Secretário, um homem jovem, robusto e de óculos, para lhe dar o convite do lançamento do meu livro. Após ouvir os cumprimentos, um tanto automatizados pela função de ter de agradar a todos, ouvi uma frase conhecida. "Livro é como um filho, não"? Forçado a conveniências sociais, também enveredei pelo campo do artificialismo e respondi de pronto. "É, claro, é como um filho". Depois, sozinho, longe dos holofotes do saguão onde o encontrara, pude refletir sobre o dito de meu interlocutor. "Livro é como um filho". Entrei em casa, fui ao quarto do meu menino e o vi dormindo no berço, olhinhos fechados, imaginando apenas seus sorrisos diários expondo os dentinhos que, como ele, acabaram de nascer.
E senti algo muito mais intenso e altruísta do que sinto por meus escritos. Amar um filho é algo, ao mesmo tempo palpável, que dói no corpo, e transcedental, que mexe com a alma. O apego a um livro é mais egoísta, uma espécie de desabafo criativo, uma transformação das próprias fraquezas expurgando-as e se purificando. Inicialmente, é bom apenas para seu autor. Se gostarem ou não, pouco importa. O destino do meu filho, no entanto, certamente influirá no destino de minha vida. De minhas palavras, dos meus livros. Só aceito a comparação entre filho e livro sob um enfoque. O de que o meu filho foi o livro mais lindo que eu já escrevi.

sábado, 8 de maio de 2010

Candango

Em Brasília, o clima era ameno, com chuvas esparsas. De cima do hotel, na cobertura, ele avistou, ao longe, bem no horizonte do cerrado um emaranhado de prédios. Coisa de outro mundo, parecia uma Nova York incrustrada no planalto, cercada de terra e mata por todos os lados. O nome do local era Águas Claras, uma das muitas cidades-satélites. Do outro lado, o início. O Congresso Nacional, com sua arquitetura ousada e sensível. Lúcio Costa projetou a cidade em uma golfada de intuição. Trabalho de lampejo, traços da inspiração. Asa de avião, em dois eixos, monumental e residencial, que levantaram vôo para a história, para além daquela massa de edifícios solitária. Sonho realizado na vastidão sem limites. Depois dizem que foram os americanos os primeiros a chegarem à Lua.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Ventania

Dizem que às portas da morte o homem revê cenas de sua vida. Com ele não foi bem assim. Acabara de sair da sessão de análise. Lá embaixo, na garagem externa, se deparou com o céu e os prédios por trás do muro. O sol brilhava, o azul resplandecia. A música que ouvia no rádio era do Edward Maia, Stereo Love. Em um trecho ouviu a frase "I don´t wanna be another one" e a acolheu.
Fechou os olhos, sentiu o vento no rosto. Foi tão intenso que o vento pareceu entrar por seus poros e, em seu interior, dar movimento à sua existência. Em sopros constantes foi trazendo imagens de todos com quem convivia, mais ou menos em uma sequencia decrescente.
Viu o rosto familiar de uns, o olhar emblemático de outros, o cenho franzido de alguns que passaram. Todos no entanto, movidos pelo ar tranquilizador, eram vistos com gratidão e amor pelo papel que fizeram, bom ou mau. E as faces foram se multiplicando em sua memória livre, inspiradas pela música e pelo ar que ventilava seu peito. Tios, amigos, colegas, chefes, de agora ou de antes, amores, cenas, tapas, lágrimas, filhos, dores, sorrisos, dissabores, jogos, viagens, até os esquecimentos. Redemoinho de vivências que o levou até a tenra infância, daí ao feto que já foi, ao ventre que habitou. Lá também ventava gostoso, como agora. Ele abriu os olhos para o dia que explodia em luz. E se sentiu nascendo de novo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Conversas

Não consigo bater-papo
Destes que falam alto
Destes com tom contralto
Social à beira do asfalto
No vazio de concreto puro
Impuro em seu sentido opaco
Lotado de vácuo, másculo, mácula
Que agride a alma, e fere a palma da mão aberta
Sensível, a expor um pedido, de espera, de respiro, pera, pera
Palmas expostas aos desígnios da hipocrisia humana,
Crueldade voraz, cheia de pressa, não espera, não espera

domingo, 2 de maio de 2010

Encontro

Conheceram-se havia poucas horas. Ele branco, ela, negra. Os olhos grandes femininos contracenavam em harmonia com os cabelos que escorriam pelos ombros macios. Mundos distintos se encontravam naqueles lençois. Quarto escuro, aconchegante, de onde a madrugada e seus sons longínquos, à beira da estrada, transbordavam. Às vezes, um barulho de carro cortava o silêncio do motel. De repente ele pediu para que ela virasse. Ela lhe desferiu um olhar doce. “Você vai me tratar mal? Não me trate mal, tá?” Ele disse que não. Aquele medo do desamparo o envolveu. Os mundos se encontraram na condição humana, para nunca mais se verem. Sentiu como se uma flor despedaçasse dentro dele. E sussurrasse: Bem me quer, mal me quer.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Ambições

O doutor Luís Paulo se acostumou a operar sem necessidade por pressão do hospital. Foi promovido por atender pacientes renomados. O assessor de imprensa José de Barros nem se incomoda quando o chefe, político, defende dar o mesmo veneno à oposição, falando que se fez até aquilo que não foi feito. Pretende ganhar com isso. O jornalista Tito Márcio concorda que seja importante o engajamento das pessoas em defender seus patrões, suas empresas, seus interesses. Só acredita que este envolvimento não deve ser maior do que o compromisso ético com a profissão. Não, ele não está desempregado.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Véu de noiva

Na infância, atravessava a cidade a pé para ir aos jogos do São Paulo. Trabalhava muito costurando o couro de bolsas. Casou-se, teve filhos, sua mulher o deixou. Sempre foi de falar pouco, em suas feições sérias, sorriso leve e andar tranquilo. Por isso não transparecia seu sofrimento. Em qualquer situação, no entanto, não deixava de acompanhar a trajetória de seu time.
Eis que conheceu uma moça, ainda solteira, já na casa dos 30. Com uma beleza a ser descoberta, por de trás de óculos grandes, ela o aceitou, numa comunhão de fragilidades, entre pessoas que temiam ser estigmatizadas em uma época de preconceitos. De um lado, o desquitado, com fama de traído. De outro, a mulher de 32 anos com medo de nunca se casar.
Viveram juntos por 47 anos. Montou uma fabriqueta de bolsas, que dava o sustento suficiente para se manterem. Formavam um casal que parecia se entender, em uma cumplicidade muda que ocultava a fragilidade de ambos. Não era raro trocarem carícias e suaves olhares de afago, timidamente, em público. Era um casamento mantido sob um véu de noiva, doce, encoberto, frágil.
Pois há alguns dias, foi ele, o rejeitado de outrora, que a deixou. Sem expressões, bem ao estilo que o marcou. Deixou-se ir como uma folha ao vento, para aterrissar no conforto e na riqueza da casa do filho, à beira-mar. Já com movimentos lentos, ela, envelhecida, chorou nos primeiros dias, dizendo-se viúva de marido vivo. Nunca tiveram filhos, não deixaram rastros da longa união. Nem no aniversário de 80 anos dela ele ligou para dar parabéns.
Foi mesmo um prenúncio de morte. O encontro acolhedor, aquilo que construíram, a cumplicidade, a fabriqueta de bolsas, o véu...tudo parece ter desvanecido em sua memória, quando ele, olhar distante, contempla da varanda um horizonte ilusório à sua frente. Sabe que aquela amplitude convidativa não o levará longe, como pensava outrora, quando, contente, brincava com os sobrinhos no mar de Santos. As ondas agora se desfazem sobre suas retinas, como muitos dos seus sonhos deixados para trás. É, acho que ele nem é mais são-paulino.