terça-feira, 4 de novembro de 2014

Descoberta

Houve uma época em que ele não olhava o relógio. Amanhecia em um parque de novidades, desfrutava o néctar do presente eterno. Apreciava o som de uma música que vinha de longe, do vizinho, envolvida nas flores e chacoalhando as florestas. O sol polvilhava lá das montanhas. Tingia o celeste de ouro, prometendo voltar a cada dia, inalterado. Imaculado. Brincadeiras no parque, roda roda peão. E ele se esbaldava, mergulhando de cabeça nos férteis e intermináveis campos do amanhã. Até que seus pêlos surgiram, a voz foi mudando. A cada novidade, percebia que este grande jardim estava ligado a uma estação. E esta a um longo, muito longo trem. Foi descobrindo novas e novas coisas, muitas das quais não gostaria de saber.  Por exemplo, que sempre viveu dentro do trem, do qual nunca saíra. E cujo letreiro era Destino. O jardim não passava de um enorme vagão, limitado pelo horizonte e pela abóbada celeste. Jamais o veria de novo, a não ser na lembrança. Sentiu-se adulto, depois rapidamente velho, ao notar pêlos brancos escapando de sua barba. Seu peito, coitado,  já ressoava com certa rouquidão.  A percepção mudara. O infinito era ilusão. Bateu um vento como se revelasse o passado, integrasse as imagens coloridas de outrora ao que ele era agora. Acariciava-o em sua totalidade, menino e homem, um corpo só. Já não tinha certeza em relação ao amanhã. Pensou em uma proposta que precisava fazer na empresa. Lembrou-se do texto que há tempos queria escrever. O hábito o fez virar de lado, buscar imaginar outra coisa, adiar um pouco, deixar para lá. Sentiu que não podia se dar a este luxo. Ouviu então o barulho da porta abrindo. Despressurização. O trem parou um pouco, para que outros desiludidos entrassem. Logo iria seguir em frente. Ele se lembrou do jardim, mas de algo mais. Desta vez olhou para ver em que plataforma estava. 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Secos

Outro dia assisti na TV um episódio em que o protagonista pergunta ao irmão: o que está acontecendo com a gente? Apertei pause, levantei para tomar uma água e a pergunta murmurou na minha mente, saindo da representação cênica para me fazer personagem real. O debate entre candidatos tem refletido a discórdia que emana de nós, nos olhares perdidos no metrô, nas fechadas bruscas, nas caras emburradas por qualquer esbarrão.  Bradamos nossos direitos, convencidos, pelo nosso ódio, de que temos motivos. Um não admite ser contrariado, o outro contraria para provocar. Então me percebi diante de homens com pincenê protetor,  parecendo calmos intelectuais, mas ensimesmados em um mundo de horrores. Vi trajes exuberantes e sorrisos desenhados nos lindos rostos femininos, lutando surdamente pela competição da estética. Onde foram parar as chaves que carregamos para fechar a caixa de Pandora? Onde está a chama de Prometeu, que deu ao homem capacidade de se harmonizar? Por Zeus! Perderam-se pelos rios que têm sumido a cada dia, na cimentação de sentimentos, se calcificando no sedimento barrento da terra ressecada e suja. Persistem em sucumbir a risos sardônicos, a farpas atiradas em tom de brincadeira pelas repartições da vida. Também podem ter se impregnado na aparência dos modernos escritórios. Não duvido que possam ter sido roubadas no balcão das democracias, ingratas por não se perceberem dádivas. Espero apenas que não tenham morrido em um leito de ambulatório, enquanto, do outro lado da cidade, médicos ensandecidos fingem ouvir seus clientes para ganhar status nos hospitais da moda. Onde é que fomos parar? É a pergunta. Levanto, todo dia, confiante de que possamos mudar: esta é a esperança. Enquanto isso, o calor lá fora torra. Atiça nossa raiva mais primitiva em busca de um refresco. A poluição invade nossos olhos, misturando-se à claridade como um fantasma de névoa. A boca seca, como se refletisse muito do que está acontecendo conosco. Tempos secos, amores presos. Do céu não cai a chuva assim como do homem não sai o choro.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Esquecimentos

Chegou com pressa à garagem, estacionou o carro e entrou correndo no elevador. Engraçada a ironia da corrida contra o tempo... Se ele tivesse sido menos apressado, teria percebido que deixara a chave do apê no veículo. Sorte que esquecera lá e não na empresa que ficava em outro bairro. Enfim, demorou mais porque precisou descer tudo de novo para apanhar a chave. Quando subiu novamente se deu conta de que, de instante em instante, já perdera um bom tempo naquele dia. Primeiro, quando, no supermercado, percebeu que tinha deixado o cartão de crédito em cima da prateleira da sala. O que havia acontecido com ele? Nunca se esquecia de nada, nem de quitar a mais irrelevante conta... Precisou pagar com débito que, por sorte, tinha deixado dentro da carteira. A senha estava na ponta da língua, ufa! Ao sair do banco, um susto. Cadê meu i-pod? Apalpou o peito, esquecendo-se de que a camisa não tinha bolso e só sentiu novo alívio quando percebeu que estava no bolso de trás da calça social. Aproveitou para se certificar de que a carteira estava no direito. E de que a chave do carro estava na pasta. Voltara para casa apenas para pegar o cartão de crédito, pois iria precisar usá-lo mais tarde. Para comprar o presente do amiguinho do filho. Mas onde estava o convite, mesmo? Recuperado o cartão, aproveitou para apanhá-lo e ter certeza do endereço. E se certificar de que o passaporte estava na gaveta da cômoda, para não ter problemas na viagem de segunda. Antes, porém, haveria eleição: o título de eleitor estava na gaveta do escritório. Já no hall, à espera do elevador, conferiu tudo: cartões, chaves, celular, óculos. Óculos? Desde quando começou a usá-los? Não se lembrava direito, talvez foi há 15 anos. Sim, houve um tempo em que olhava o mundo sem eles. Como havia um tempo em que acreditava em coisas que há muito não pensava: amizade, esperança, compaixão, RPM, a voz de menina de Nikka Costa, bailinhos, infância, o sorriso da mãe, o abraço do pai, a primeira vez em que foi ao futebol. O guardador até se admirou por ele saber decor o time do Corinthians, com apenas seis anos. Ele, ao lado do pai, ficou orgulhoso, como se recebesse um prêmio. “Nossa, uma criança, já sabe tudo isso”, disse o homem, que o fez experimentar, em meio à pobreza dele, o doce sabor da generosidade. E hoje, o que ele sabia neste mundo de chaves, i-pods e senhas secretas? Planejar um investimento perfeito em CDI, manusear os truques da planilha eletrônica, teclar com rapidez, almoçar com pressa, buscar vitórias a qualquer custo, que, no fundo tinham não tinham aquele mesmo gosto doce. A ausência de celular provocava um imenso vazio em seu íntimo. Algo dele ficara para trás, em algum lugar. Assim como a busca pelo verdadeiro aperfeiçoamento, quando ainda reconhecia para si sua timidez, suas fragilidades e seus reais desejos. Quando olhava no olho de uma pessoa sedento para extrair daquele brilho a palavra amigo. Tinha de ir rápido, estava com pressa. Mas resolveu voltar um pouco, respirar. Foi para o quarto, deixando o dia que virava frenético lá fora. Adormeceu na cama. Acordou sem saber quanto tempo dormira. Percebeu que foram algumas horas quando viu o lusco-fusco do entardecer penetrar pela janela. Escurecia. Acendeu a luz, entrou no banheiro. Lá fora já podia sentir o perfume da noite na cidade. E ouvia à distância o som de buzinas alucinadas. Tudo parecia longínquo. Os barulhos da rua, o céu que começava a se polvilhar de estrelas, a infância, os valores. Agora era ele, seu rosto cansado frente a frente com o espelho. Vivia para se lembrar de tudo. Mas se esquecera de quem era. E até das chaves, na porta do apartamento aberto.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Mudanças

Eu me achava solidário. E não me considerava egoísta. Colocava-me no topo do idealismo. Quer saber mais? Tinha certeza de que eu era mais romântico até do que o Romantismo. Até que tive um filho. Nos tempos de gravidez, eu já falava com ele, encostando meus lábios na barriga da minha esposa para lhe mandar palavras de incentivo. Desde então, fui percebendo alguma transformação no que eu achava de mim. Via a barriga das mulheres grávidas e as respeitava mais ainda do que na minha retórica anterior. Observava o atendente rude e engolia em seco. Afinal, ele era um filho de alguém que um dia o olhou com a mesma ternura que olho o meu. Sempre me achei solidário com a população pobre. Até que senti algo mais profundo do que minhas convicções superficiais indicavam. Foi quando, entrando na padaria, vi um homem e o seu menino sentados na lateral da banca de jornal, me pedindo comida. Enquanto o homem falava, o filho abraçava sua perna dobrada em V. Agarrava sua canela com devoção, divertindo-se naquela situação, mostrando que sua fome de carinho estava saciada, o que era o mais importante. Tinham alguns pacotes de pão e uns brinquedos. As pessoas também se sensibilizavam e isso parecia tranquilizá-los um pouco. Olhei o menino, despenteado, mas com olhos volumosos e brilhantes, como os do meu filho. A princípio, ele era para o seu pai algo como o meu filho é para mim. E o seu empobrecido pai era para ele um heroi legítimo. Entendi que eu não estava acima deles, como muitas vezes um discurso de pura pena pode camuflar, involuntariamente. Senti a dificuldade imensa que era para o homem estar ali, na frente do filho, sem outra opção no momento. Não era somente alguém pobre me pedindo ajuda. Era também um pai. Eu me achava solidário, até que tive um filho. Pensava saber sobre o egoísmo. Não quero com isso excluir os que não têm filhos da possibilidade de ter esta percepção. Também não me refiro à solidariedade dos que se fecham em sua família e sempre tentam levar vantagem, porque acho que isso é uma solidariedade irreal. Falo de uma sintonia que surgiu desde que minha criança nasceu, quando foi parar em meus braços e o vi abrir os olhos pela primeira vez.  Naquele momento, eu também abri os meus. Passei a ver o mundo com o olhar duplicado pelo amor que sinto por ele. Ter um filho não é apenas se solidarizar com os seus. É receber da vida um presente muito maior. Tudo mudou quando eu tive um filho porque ele me ensina, a cada dia, a ver o outro.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Peixinho

 Um dia comprei um aquário maior para o Fafinho, o peixinho-beta da família. Ele estava acostumado com sua beteira apertada, em forma de octógono, cujos adornos eram apenas algumas pedrinhas no fundo e uma pequena alga vermelha. No início ele estranhou a amplitude da nova casa. Havia mais algas. As plantas eram quase uma floresta para ele, no losango bem maior - pelo menos o triplo do anterior. Às vezes eu o procurava e, com muito esforço, via o lindo azulado de sua superfície brilhar por trás de uma das plantinhas onde ele repousava. Ele sempre foi muito sensível. Para se manifestar e também para entender o que acontecia ao seu redor. Eu costumava conversar com ele sobre várias questões, vendo-o, lá de dentro, balançar a cauda freneticamente. — Fafinho, Fafinho, peguei um trânsito hoje...Mas tem de ter paciência, né? Então eu batia levemente o dedo no vidro, para ele festejar tal qual um cãozinho amestrado. Ele decifrava o motivo de minha presença. Ouriçava-se quando eu entrava na sala olhando para o aquário, ciente de que iria ver polvilhada a superfície da água com sua deliciosa ração.  Eu sentia ele se encher de satisfação cada vez que me via. Isso custou a acontecer. No início, escamoso, se esgueirava pelos becos do aquário cada vez que me aproximava. Queria ter certeza de que não se tratava de um predador. Depois, tendo a segurança de que sobrevivia, foi se acostumando com o ritmo da família. Chegou um momento em que ele nem se preocupava mais. Nem quando meus filhos jogavam bola, dentro do apartamento, ameaçando seu mundo com uma desavisada bolada. Ele parecia é empolgado. Apenas balançava as nadadeiras, feliz com a companhia das crianças. Fafinho viveu quase três anos em função desta alegria. Foi um grande exemplo de como afeto e harmonia, mesmo em relação às menores espécies do reino animal, tornam  a existência mais proveitosa e duradoura. Ele deu até mais do que teve em troca, acredito. Afinal,  apesar de todo o cuidado, nunca mudamos nossa rotina por causa dele. É verdade que, antes das viagens, minha preocupação sempre foi ter onde deixá-lo. Não queria fazê-lo viajar alguns quilômetros, nos solavancos do carro, até a casa de familiares. Às vezes isso aconteceu. E ele resistiu, porque, tenho certeza, sabia que iríamos voltar para pegá-lo. Um dia, antes de mais uma saída para o fim de semana, optei por deixá-lo sob os cuidados do zelador. Ele entraria duas vezes por dia para dar comida ao peixinho. Por um lapso, o moço exagerou na dose e, tudo indica, Fafinho se foi por causa disso. Voltamos na segunda e logo recebi a notícia. O aquário nem estava mais onde costumava. Evitei ficar chorando por causa de um peixe na frente de todo mundo. Ainda mais eu, pai de família. Não escondi a tristeza, mas me preocupei em não prejudicar a compreensão das crianças sobre a realidade da vida. Tudo passa. E temos de aguentar estas movimentações, bem mais oscilantes do que as águas tranquilas em que vive um peixinho. Às vezes vejo de relance o aquário em cima de um armário na área de serviços. Logo desvio o olhar. Mas a lembrança não escapa. O rack onde ele ficava, e até um barquinho de madeira que coloquei, remetendo o cenário a uma maquete do livro Moby Dick, continuam lá. Na rua, o trânsito se mantém pesado. As pessoas andam rápido, os anos se acumulam, assim como as contas, as obsessões, os afazeres, a pressa multiplicada pela ilusão das facilidades high tech. Então pergunto: o que significa hoje em dia o lamento pela perda de um peixinho-beta?  A única resposta, em meio à imensa concretude do mundo, vem no rastro de uma metáfora. Significa a mesma sensação do oceano, quando ele percebe, em sua também imensa superfície, o simples gotejar de uma lágrima.

Data

Algumas datas são marcantes para o comportamento de uma sociedade. A angústia em lidar com medos diante da fragilidade humana, dos reveses da vida e, por que não dizer, do mal, é capaz de colocar em uma efeméride a tentativa de digerir este dilema. Na maioria das vezes, esta tentativa é incompleta. Em vez de se libertar, o homem fica preso às tragédias, alimenta o seus receios em relação aos semelhantes, esfria perspectivas de um futuro que acolha estes temores e, por medo de mudar, adia novas alternativas de um mundo melhor. O 11 de setembro, quando ocorreram os atentados nos Estados Unidos, em 2001,é um exemplo. No judaísmo, há o Tishá BeAv (9 de Av, no calendário judaico), data que ficou marcada por lamentáveis acontecimentos com o povo judeu, como a destruição dos dois templos sagrados da Antiguidade. No cristianismo, a Paixão de Cristo também conta uma história em que a descrença na convivência humana se acentua, com o flagelo de um homem exemplar. O perigo é perpetuar esta memória para os outros dias, distorcer a rotina, como vem acontecendo, no embalo da simbologia da injustiça que estas histórias representam, as impregnando por toda a parte. O 11 de setembro está em nós quando olhares tristes tomam conta do metrô, ensimesmados em seu mundo por trás de um fone de ouvido. A lembrança destas datas acaba se tornando a celebração da indiferença, a prova de que temos mesmo de afastar o desconhecido, acalentar o luto, silenciar o canto da esperança. Temos um lado terrorista que se regozija permanentemente com a autoflagelação da humanidade e alimenta a falsa mensagem de que ele é a maior realidade. Seu enredo teatral repete a inscrição do Portal do Inferno, de Dante: Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança...O mundo está violento, o egoísmo se multiplica pelas cidades enlouquecidas. Mas se esquece do mais importante, nesse carrossel de fugas permanentes. Ao contrário do que pensaram os opressores, todos estes períodos trágicos resultaram no fortalecimento de uma causa maior, de uma fonte de vida inesgotável e indestrutível. Emergiu das atrocidades uma mensagem de amor e de confiança nos homens. O povo judeu ressurgiu após as mazelas passadas, assim como a mensagem pacificadora de Cristo sobrepujou pela eternidade aqueles que o repeliram no momento, sentindo-se, ilusoriamente, vitoriosos. A humanidade sobrevive há milênios, refazendo-se em ciclos de cada período terrível. Emergimos das Guerras Púnicas, de Júlio César, da Idade Média, das guerras mundiais, fazendo prevalecer um lado construtivo, que não deixa de ser divino justamente por ser humano. Tenho uma tia que nasceu em 11 de setembro. Ela é uma pessoa especial, gentil, sorridente, afetuosa. O amargo institucional da data não se identifica com a sua personalidade carinhosa. Nem o 11 de setembro de hoje é o mesmo de há 13 anos. A cada dia o mundo ressurge um pouco modificado e repleto de novidades, que muitas vezes os olhares tristes do metrô e a indiferença buscam ocultar de nossas percepções. Não quero me esquecer da tristeza das perdas que estes momentos trouxeram. Não quero deixar para lá, desconsiderando todo o sangue que correu pelo sopro da loucura e da insensatez. Não é isso. Quero apenas ir mais além. Continuar acordando todos os dias, enquanto puder, e ver preguiçosamente a manhã se descortinar sedutora pela janela. Quero deixar a luz do sol  invadir meu quarto, levantando a poeira de uma noite muitas vezes mal dormida e, após um bom café da manhã, acalmar meus pesadelos embebido na dádiva da respiração. Ter a oportunidade de me oxigenar, de purificar a alma com um banho de esperança. Depois, ligar a TV, ler o jornal ou pegar o telefone, ao som do alarido dos pássaros. Na data fatídica, dar um telefonema para a minha tia, com alegria. Para lhe dar parabéns, nesta data querida, e desejá-la um ótimo aniversário, um feliz 11 de setembro.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Aniversário

Hoje, meu pai faria 78 anos. Mas, em meu íntimo, canto Parabéns para Mim, por tê-lo tido como pai.

Corruptos

Recado aos corruptos: há desonestos que não sabem ganhar dinheiro e há honestos que sabem. Honestidade, portanto, não é sinônimo de pobreza.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Objetivo

O fato de eu trabalhar com as palavras concretas e objetivas do jornalismo me afastou da poesia, como vocês podem perceber.

domingo, 29 de junho de 2014

Canção

Semana de Copa do Mundo, calor no Brasil, classificação da seleção. Programação esportiva noturna, depois o SuperStar. Fábio Júnior, envelhecido com sorriso de menino, canta Vinte e Poucos Anos, com Dinho Ouro Preto. Cantam e se confraternizam entre eles, entre o ontem e o hoje, com uma plateia de jovens artistas, cantarolando a famosa melodia dos anos 80. Hoje já são sessenta e tantos anos, Fábio e seu sorriso. Esta instantaneidade da vida que tem o poder de transformar momentos em eternidade é fascinante. No silêncio deste momento, todos dormem. Os jogadores das seleções principalmente. Em seus hoteis, refletem sobre isso, cônscios ou não. Não se recordarão de seus sonhos esta noite, possivelmente. Mas terão para sempre os flashes de agora, de quem eram. E eu, enquanto vejo Dinho abraçar Fábio Júnior, como se ambos celebrassem o tempo, poderei dizer em breve o que aconteceu nesta Copa. Daqui a pouco, até quando eu tiver pra lá de oitenta e poucos anos.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Desopilações

Digo que isso é ridículo, escracho o grande ator no cinema. Jogador ruim, juiz fraco, ídolo com pés de barro. Xingo o analfabeto de analfabeto. Mesmo que este tenha leitura de alma. E eu quem sou? Sou alguém que não amadureceu o suficiente para vender caro as próprias críticas. Muito prazer, mas não considere isso um elogio.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Pacaembu

Está chegando a hora. No domingo (27) a partir das 16h o coração do torcedor corintiano irá bater mais forte. Será a última vez que seu grito irá ressoar pelas arquibancadas do Pacaembu, estádio que, desde os anos 40, quando foi inaugurado, se tornou a casa do Timão. O jogo de despedida, antes da estreia do Corinthians no Itaquerão, será contra o Flamengo, pela segunda rodada do Campeonato Brasileiro. Foram muitos momentos marcantes que irão se eternizar na memória dos corintianos. Momentos de alegria, de tristeza, gritos de campeão e lágrimas de frustração, brigas, reclamações e muitas, muitas juras de amor ecoaram pelas alamedas do estádio, desde o Tobogã às cadeiras cobertas. E o que dizer daqueles torcedores que ficavam no alambrado, comendo sanduíche e reverberando contra o juiz, jogadores e o banco de reservas, com as mãos entrelaçadas na grades e a mente aprisionada por cada lance, cada gesto que ocorria lá dentro? Pacaembu por onde desfilaram Sócrates e sua leveza aristocrática. Neto e sua explosão, Marcelinho e seu estilo elétrico, Luizinho e seus malabarismos surpreendentes, que mais pareciam de uma criança a desfilar sua arte no templo sagrado de sua imaginação. Pacaembu que testemunhou várias épocas, de democracia, de ditadura, de desemprego e de esperança, que se revezavam no inconsciente do corintiano e de repente se apagavam por completo, se transformando em pura alegria a cada grito de gol.
Wladimir, nos anos 70 e 80, foi outro jogador que simbolizou esta ligação intensa entre clube e estádio, na verdade entre clube e a cidade. Porque por entre os arranha-céus que piscavam nas noites estreladas de quarta-feira, aquelas luzes silenciosas nada mais eram do que a cidade acolhendo uma equipe, interagindo com uma nação, de braços abertos, à sua imagem e semelhança. Quanta quartas, quantos domingos, quantos jogos ficarão para trás nesta despedida formal...Foram, no total 1683 partidas, com 962 vitórias, 395 empates e 326 derrotas. Neste palco, foram 3304 urros de gol da torcida, como o do gol de Paulo Borges na quebra do tabu contra o Santos. Explosões que estremeciam as redondezas e só emudeciam lá no céu, bem distante, onde um astronauta seria capaz de ver o planeta como um pontinho. E saber onde estaria o Pacaembu, pela energia que dele emanava em cada jogo do Corinthians. A dor do gol sofrido se repetiu por 1921 vezes. Mas não são os números o mais importante neste momento. Não são os números que irão retratar a emoção de cada momento vivido pelo corintiano neste estádio. Nem as palpitações da alma que emanavam por de trás do semblante sofrido, suado, extenuado por participar das partidas sem entrar em campo. Jogar junto apenas com a voz e a emoção. Apenas evocando os Deuses do Futebol. A isso se chama torcer. E nenhum estádio conhece tão profundamente um torcedor como o Pacaembu conhece o corintiano. É num momento como esse, de despedida, talvez um até logo, que o futebol se torna realmente grandioso. É quando o clamor se mistura à eternidade, a história é revivida em um instante, mostrando que, para o torcedor corintiano, o tempo é apenas algo subjetivo.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Luciano

Não foi Luciano do Valle que ficou sem a Copa do Mundo de 2014. Foi a Copa do Mundo de 2014 que ficou sem Luciano do Valle. Essa que é a verdade, como ele gostava de dizer.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Tantos

Apenas uma frase. Apenas uma ideia. Mas o que ele falava carregava tanta emoção concentrada, tanta coragem, tanta verdade interior, tanto desejo de revelar conflitos humanos, e depois elucidá-los, tanta curiosidade por tudo, tanto estudo, tanta reflexão, tanta estranheza, tanta necessidade de comunicar algo profundo, tanta busca, tanta procura, tanta intenção de integração, tanta vontade de ser compreendido, tanta solidão... que os outros não entendiam nada. Tantos vazios.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Viaduto

A mulher jovem dorme, no colchão à beira de um gramado na rua. Lá embaixo, atrás dela, a avenida flui em seu trânsito indiferente. De moleton velho e camiseta azul, ela está um pouco contorcida. Estampa acima dos lábios uma ferida seca. O rosto sujo não esconde a tranquilidade do sono. Parece viajar em outro mundo, menos indigno, menos imundo. Seus cabelos claros e lisos não escondem a oleosidade. Um pouco à sua frente, mais à esquerda, um homem também dorme profundamente. Ele, porém, está na calçada, esticado no concreto. O que sonha aquela figura empobrecida, que exala uma feição embriagada, rodeada de sacos de arroz, garrafas de refrigerante vazias, sacos de plástico molhados e papéis de embrulho amassados? As pombas aproveitadoras exploram as migalhas de pão que se espalham ao lado do casal. O que posso fazer por vocês no egoísmo dos meus problemas mesquinhos? No meu mundo pequeno, talvez imundo também, começo a me irritar no carro, sobre a rua em aclive, na entrada do viaduto. O cara da frente, afinal, não anda. Olho para o casal e penso então que posso fazer algo por eles, a menos de três metros do meu lado. Tão longe e tão perto de mim. Como uns dos outros neste mundo. Resolvo ser o único a poupá-los de barulho, ou de um incômodo que os acorde. E mesmo que o farol feche sem que eu passe, não buzino.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Evolução

Chegou um momento em que ele não mais temia se afastar do que sempre chamou de amigos. Foi quando os defeitos pesaram mais do que as qualidades, que ele já não fazia questão de ver. Ele, que sempre foi um crítico dos que só viam a própria família, sentiu-se impelido a ser assim também. Mas de uma maneira mais afetuosa. Sem o ímpeto egoísta que o perturbava. E que só agora ele se dava conta de que não tinha a responsabilidade de corrigir. Ele, finalmente, evoluiu.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Sustentabilidade

Sustentabilidade é um tema mais do que atual. Mas acompanha o universo desde o seu início.  Nas conversas em geral o termo se relaciona aos aspectos ambiental, econômico e social do planeta. Para que haja sustentabilidade nesta biosfera é preciso, porém, haver uma outra sustentabilidade. Diz o Wikipedia que sustentabilidade é a habilidade de sustentar ou suportar uma ou mais condições, exibida por algo ou alguém. Isso significa, no nosso dia a dia, suportar frustrações, manter o equilíbrio diante de adversidades, respeitar a ética no jogo pelo poder, controlar o lado primitivo e egoísta que descamba para a corrupção e a indiferença. Também é não terminar um casamento porque um gosta de pizza e o outro de hambúrguer. Saber construir relações sólidas com as pessoas é outro item fundamental. As situações de sustentabilidade emocional são inúmeras, até infinitas. Estão em todo o lugar, não há como fugir. Como diz Renato Russo, o caminho é um só. É o de se empenhar para sustentar uma promessa, uma amizade, um objetivo. Aprender com os tropeços a sutentar uma família. E por que não, o sucesso? E a suportar as próprias limitações. No repertório entram ainda a reciclagem da inveja e da mesquinhez, transformando-as em material orgânico que favoreça a vida. Cada um sabe o seu próprio grau de sustentabilidade. Sócrates, que sustentou até o fim a sua convicção, diria: conhece-te a ti mesmo e verás se no teu corpo pulsa ou não um coração mineral. As pessoas confiáveis são sustentáveis. Já acordam emanando uma energia limpa e renovável. A maior das sustentabilidades está no sol que desperta a vida, nos mananciais que refrescam a alma, nas cavernas de onde ecoam as respostas mais profundas. Tudo isso, é claro, dentro de cada um.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Reprise

A novela Água Viva passa em reprise na TV. Remexe no curso da vida dele, restaurando sonhos que ondularam rumo ao mar. Deitado no sofá, o moço de meia idade olha para a noite e vê a cordilheira retilínea de prédios, iluminada por luzes que parecem acenar do passado. Seu universo de outrora se move por trás de todas as cenas.  Pelos diálogos, pelas  lágrimas e pela vista do Rio dos anos 80 ele vê projetados, por trás ou por dentro das telas, todos os gestos e sentimentos que vinham dele naquele tempo. As músicas de fundo dão um toque especial. Se fundem à imagens refletidas na porta de vidro da sacada. Se misturam com a noite, com a cordilheira, com aquela época tão distante e tão presente nele. Edyr caminha pela praia melancólico, ao som de Styx. Quem era aquele personagem? Cláudio Cavalcanti e sua ternura canalizada para a trama? Apenas um professor abandonado? Um homem esmagado pelos conflito entre humanismo e materialismo? A premonição do que ele, telespectador em sua sala escura, seria hoje? Ou o encanto inconsciente da sua própria infância, representado na tela? Intuía estas perguntas com placidez, como se todas as respostas fossem um uivo de solidão, como se todas elas fossem as belezas imperceptíveis da vida, apenas travestidas de dramas. Uma sinfonia de feixes de luz se mistura ao espelho da noite e refrata pelo vidro da porta corrediça diretamente em seu coração. O moço então respira o fresco orvalho da saudade, dança internamente com os personagens que também eram ele, a ressurgirem como espíritos, mesclando realidade e imaginação, evoluindo por ondas agitadas rumo à calmaria.  Este momento é uma viagem que o conforta. Sente sua vida como uma reprise que se renova. Uma novela que tece os fios de sua alma e urde sua identidade.  Sua memória é uma prece que se move pela brisa da esperança, rumo ao sono, à consciência leve, tal qual um navio carregado que se aproxima do porto para descansar de suas jornadas, acalentado pela névoa rósea de cada amanhecer.

Pedidos

Um dia ele acreditou que pedir era algo natural. Como subir no ônibus. Ou beber um copo d’água. Com o tempo, ele percebeu que pedir era um peso. Ficou descrente. Fechou-se. Então decidiu nunca mais pedir nada a ninguém. Nem pelo amor de Deus.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Brigas

Antes de atingir seu objetivo, ele achava que não valia comprar briga com o mundo. Mas continuou achando o mesmo depois, justamente porque havia atingido seu objetivo.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Crédulo

Não acredite no que outros falam, mas sim no que você faz.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Sapiens

Toynbee colocou que o homem, ao ter a percepção do consciente, levou milhares de anos, ou até milhões, para fazer alguma coisa. O mesmo homem se ilude achando que o imediatismo da sociedade contemporânea o levará a algum lugar.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Aposentado

Já estava aposentado havia muito tempo. Tinha 80 anos, era bem de vida. E decidiu fazer terapia. Queria ajudar na recuperação de um filho. Foi uma maneira de ser humilde. “Onde foi que errei?” Foi uma maneira de se perdoar. “Será mesmo que errei?” Foi uma maneira de ser forte. “No que posso melhorar?” Foi, acima de tudo, uma maneira de dizer. “Estou com você, meu filho.”

Entrevistas

Um entrevistador, em geral, joga no outro a responsabilidade de passar em uma entrevista de emprego. Abre mão de interpretar a alma alheia. Acomoda-se em apenas se basear na primeira impressão. E, a capacidade de, com o tempo, o entrevistado se soltar e, impulsionado por um ambiente acolhedor, se tornar uma contratação excepcional? “Tempo?” “Mas que bobagem é o tempo!”, pensa o entrevistador. O importante para ele é o momento, quantas vezes o outro desviou o olhar, algo que, segundo normas rígidas, expressa uma estranha falta de segurança. Está em voga a pouca tolerância para falhas aparentes, gestos fora de moda, idealismos, ansiedades naturais. Se estes aparentam falta de firmeza e de assertividade, podem mostrar por outro lado honestidade. E abrem possibilidades para um mundo criativo, puro. Muitos entrevistadores hoje em dia são jovens inexperientes, que também lutam por um lugar ao sol. Há, porém, uma ilusão em torno dos truques de convencimento. Há uma busca obsessiva pelo marketing pessoal. Há um olhar distorcido que supervaloriza as regrinhas de apresentação e as técnicas de almanaque. Há uma indústria da artificialidade que banaliza a essência humana. Uma palavra mal encaixada, um time de coração diferente ou uma preferência pessoal podem frustrar expectativas de uma vida. “Fale isto, não diga aquilo”. “Seja assim, não seja assado”. “Faça e aconteça”. Em outras palavras, estas frases expressam indiferença ao indivíduo. E exclamam: “esconda-se de si mesmo”. Em uma sociedade cheia de fingimentos, fica difícil alguém passar em uma entrevista. A não ser que ele seja quem não é. Mas não tem jeito. Mais cedo ou mais tarde o verdadeiro eu vai aparecer. E sem precisar ser entrevistado.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Banqueiro

Ele era banqueiro. Acompanhava suas finanças, na tela do computador, nos esticados números da conta. Escolhia operações com frieza matemática. E se projetava no engenheiro, no médico, no publicitário de sua turma no científico. Todos homens de sucesso, do concreto. Naqueles padrões, alguém que falasse de ética, da importância de ser honesto seria considerado louco. Um excluído, um perdedor. Na frieza de seus gestos, nos seus e-mails monossilábicos, pelas propostas que recebia e por causa das festas das quais participava, podia-se dizer que ele era um vencedor. Era assim que o viam. Mas, bem no fundo, não era assim que ele se sentia.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Desarme

Quando um motorista responde a uma buzinada agressiva com um gesto obsceno, é como se dissesse: faça de novo e eu te mato, bastardo. Aquele que buzinou fica com raiva do motorista. Quando um motorista responde a uma buzinada com um gesto de positivo, é como se dissesse: vida que segue, irmão. Aquele que buzinou fica com raiva dele mesmo.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Rodopios

A pipa no céu azul, sobre o viaduto. Rodopia apressada, num piscar, num minuto. Voos suaves ou acelerados, acima dos carros, estressados. Ela gira, ela dança, ela salta, ela sobe, ela balança. Desenha um sorriso no firmamento, toda colorida, ela silva no vento. Eu fico parado, não ligo pro tempo, levo buzinada de um homem marrento. A pipa não ouve, ou finge não ouvir, seu objetivo apenas é não parar de subir. Parece uma alma protegendo a favela, de onde vem, lá de alguma ruela. Ninguém repara, ninguém espia, os movimentos sublimes, de pura magia. Emergem de um fio, na revoada, da alegria descalça e descamisada. A alma avança, a mão segura, não se cansa. Sonhos no ar, por instantes eternos. A rabiola a gingar, em gestos fraternos. De cima uma diz: eu sou a dança. De baixo a resposta: sou a esperança. Tão bela aliança, tanta semelhança, que se tornam uma, a pipa e a criança.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Belezas

Desde que a Bola de Ouro, da Fifa, foi inaugurada, o Brasil é o único país a obter 8 títulos no masculino e 5 no feminino. Nenhum outro chega perto destes números. Com a Bola de Ouro especial para Pelé, escolhido o jogador do século XX, podemos acrescentar mais 100. No total, temos 113. E para aquele que ainda não se convenceu de que o futebol brasileiro é o mais bonito do mundo, um último argumento, implacável. A apresentadora da cerimônia é simplesmente Fernanda Lima.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Pazes

O homem forte compreende sem ter a necessidade de ser compreendido. Desta maneira ele evita intrigas, desarma a discórdia e não depende dos outros para viver em paz.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Dilema

O problema dele não era não saber o que queria. Era querer tudo, sem saber se isto era um defeito ou uma qualidade.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Baleia

Toda verdade é profunda.
- Ismael, em Moby Dick, de Herman Melville.

Diferenças

Um dia me perguntaram qual a diferença entre o jornalista e o escritor. Não soube responder na hora, mas, pensando melhor, tem a ver com o envolvimento. Como escritor, escrevo palavras que ficam. Como jornalista, escrevo palavras que vão.