segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Subterrâneo

Dois corpos não ocupam
O mesmo lugar no espaço
A não ser que seja
Em ato de amor ou abraço
De resto viajam lado a lado
Muitas vezes a escutar
O coração alheio que bate sem parar
A locomotiva no ritmo do viajante
O apressado reclama da lentidão
O desencanado se sente num avião
Cada um vai no seu tempo
Exilado em seu momento
À espera da estação
Instantes de reflexão
Solitários, igualitários
Quânticos, imaginários
Que mudam itinerários
Desenham um destino
Se por lá tiver alguém
Lendo Fernando Sabino
Desinteressado até da etiqueta
No mundo em trânsito, o executivo e o poeta
E o homem com roupa do estacionamento
Em frente a um engravatado, vaidoso e ciumento
Do lado de um sem-teto à procura de sustento
Na frente da enfermeira cansada de ouvir lamento
Então vem a brecada e todos vão e vem
Até que alguém pergunta o que houve com o trem
A voz do alto-falante não convence ninguém
Que papo é esse de reparo, cheio de nhém-nhém-nhém?
Que o povo tem de aceitar com pose de formal
Tudo que é argumento, até o mais banal
Não tem regras de etiqueta mas sim de compostura
Um silêncio que reprime beirando a tortura
Ninguém se rebela, ninguém dá um grito
A realidade afinal é mais forte
Pra quê arranjar atrito?
Viagem nas entranhas das ruas
Em que faces desconhecidas
Parecem estar nuas
Inspiram camaradagem
Enviam alguma mensagem
Até a porta se abrir
E a senhora na multidão se diluir
Já o estudante, de olho fechado
Não vê a moça que teria amado
Ela fica bem distante
Da serpente itinerante
Na velocidade do vento
Carregando sentimentos
Lembranças e pensamentos
Em flashes de esquecimento
Em pleno movimento
No túnel, lá dentro
Paira um universo de nuances
Vidas se cruzam em relances
Amizades surgem aos milhares
Sem palavras, apenas olhares
Sem continuidade, mas milenares
Por submundos contemporâneos
Homens e seus espectros espontâneos
Estrangeiros ou conterrâneos
Eternos e instantâneos
Interligados por estações
Os passageiros e as soluções
No caminho de sensações
Às vezes, urgghhh, de forma estática
Mas sempre democrática
Desafiando a filosofia socrática
Tornando a física caduca
Quando o pessoal se cutuca
Na rotina um tanto maluca
Ocupando o mesmo lugar
No espaço e na muvuca
Dia a dia, passo a passo
Pelo menos a convivência
Na falta de um abraço
Na procura de um afeto
Pelos trilhos da jornada
Sem saída nem chegada

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Desarmadas

Duas moças conversavam na mesa da doceira. Roupas modernas elegantes, se diferenciavam não só pela tinta loira de uma em relação ao castanho escuro dos cabelos longos da outra. Debatiam, com classe, sobre ideologias e sistemas de governo. Entre um ecláir e um café, a loira defendia arduamente o socialismo. Dizia que não há outra maneira de encontrar a justiça social, sem descambar para o individualismo faminto que o dinheiro atiça. A outra, em tom educado, não teve como bradar as vantagens da engrenagem monetarista apenas pelo lucro para não parecer desumano. Mas defendeu seu regime - não de ecláir - afirmando que o capitalismo é o ideal se tiver pagamento de impostos, produção, igualdade, emprego, inclusão, educação e saúde a toda a população. E logo em seguida, como se antecipando a uma verdade inabalável, completou. "Sem corrupção, sem corrupção. E sem ganância pelo poder". Manteve uma fala completamente desarmada, respeitando a opinião da amiga. E se protegendo de uma acusação de se render ao poder financeiro em detrimento da justiça social, um tanto constrangida com o teor humanitário da interlocutora. Somente esse desarme já é algo que o socialismo tem de bom.

Palavras

Para ele palavras falam e calam
Em um bosque encantado
Em uma caverna sem luz
Resvalam 
Se falam, são um quadro impressionista 
Van Gogh em seu retrato na solidão
Olhar impressionista, estático, introspecção
Precisa  forma de expressão
Quando as palavras, mesmo poucas,atingem essa dimensão
Mas as que calam, consentem em esconder
Aquilo que não aparece, mas que tem poder
Se ele faz poesia dizem que só é poeta
Se sair do script vira pateta
O sábio da moda é como um profeta
Não erra, não chora e não reclama
Olha eu entrando no rótulo que a palavra inflama
Se escreve prosa 
É todo prosa
Se falha, mergulha num obituário
Esquecem o que ele fez, não pagam o seu salário
Como um zagueiro que errou
Tem de ir à igreja confessar que pecou
Dizem a ele que parece cansado
Parece mesmo, mas muito mais contrariado
Imagem pouco fecunda 
De uma emoção um tanto profunda
Que não se resume ao que aparenta
Nem à avareza que enfrenta
Ele anda contra o vento
Mundo de frases sem sentimento
Palavras que chocam, tocam, evocam
Verdades que muitos deslocam e trocam
Pela festa no apê
O gosto do patê
A negociação, o acúmulo
A ilusão do infinito
Entre a vida e o túmulo
Pífias conversas de botequim
Longo desfile da manequim
As formas e farsas
Das piadas sem graça
Tudo  passa, a vida, o canto
A loucura e o acalanto
Ficam marcas de instantes 
Sugerem um mundo intrigante
Na música de Louis Armstrong
Nos ossos do vietcong
Na noite que envolve a cidade
No silêncio, na eternidade
Palavras anseiam por segurança
Vagam em becos de esperança
Aos mistérios, homens se rendem e clamam
Órfãos de resposta, se cansam
De esperar por um sentido
Daquilo que as palavras não alcançam

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Alguém

Surge um jovem de calça rasgada, olhar amarrotado
Perambula na rua, descamisado
Na calçada agacha e repousa sentado
Na mureta do prédio apoia o corpo cansado
Em plena manhã gente passa ao seu lado
Indiferente, irritada, está acostumado
Ele não liga nem se faz de rogado
O que importa se o bairro é de endinheirado?
A cracolândia tá longe, ônibus tava lotado
Barba por fazer sem banho tomado
Perdeu o sentido, vê o futuro manchado
Tristeza acende a dor do passado
Pai e mãe o largaram abandonado
Desligou-se do mundo, ficou meio pirado
Já vê que com a morte tem encontro marcado
Agora ou depois, caminho traçado
Só sobrou o bagulho que comprou fiado
É isso que o faz ficar concentrado
Atormentado, ensimesmado, descabelado, chapado, mamado
Obcecado, acha inútil o atarefado
Esqueceu que um dia foi apaixonado
Pela moça da esquina, um sonho encantado
Esqueceu-se de tudo, de que foi amado
O sonho deixou seu coração rasgado
Aprisionado, sufocado, atarantado, azarado, fissurado
As pessoas, a vida, é tudo furado
Não espera mais nada, está isolado
Tira do bolso o papel amassado
Na mão o embrulho de erva fechado
Mostra perícia de alguém preparado
Nem percebe o dia ensolarado
O sol dentro dele está ofuscado
Ele enrola em silêncio o seu baseado
Dá um trago, um pigarro, peito congestionado
Entediado, explorado, desesperado, desmiolado esse descamisado
Do sorriso abafado
Do grito calado
De plano mutilado
Acabado, apagado, vagabundo condecorado
No tempo parado, já não sabe se é
Coitado ou culpado