domingo, 26 de fevereiro de 2017

A gestação da Torá

À frente do portão de ferro, revestido de cor prateada, ao lado de uma fachada adornada por uma menorá (candelabro), o menino sentiu um sopro em seu ouvido. Ao redor, o alarido aumentava cada vez mais. Era o primeiro dia de aula, no colégio Bialik.

Chegou lá após ter despertado uma hora antes e, ainda atônito, ser preparado por sua mãe para essa nova tarefa.

Ela penteou seus cabelos lisos e dourados. Vestiu-o com cueca, calção azul escuro, camiseta branca, com a mesma menorá estampada, uma meia branca à altura da canela e um tênis escuro.

Depois de engolir um copo de café com leite, foi conduzido, de carro, pelo caminho que fez pela primeira de tantas vezes que viriam posteriormente.

Ia ouvindo o programa do Trabuco, com Vicente Leporace na Rádio Bandeirantes, ou o eterno jingle da Jovem Pan, às sete horas, "a cidade não desperta, apenas acerta a sua condição..."

Queria e não queria estar ali, ao lado da mãe, mas diante de tantas coisas desconhecidas, diante de tanto alarido, diante daquele portão.

Notou apenas que, em meio à balbúrdia, o sopro insistia em ressoar, como estivesse se dirigindo apenas a ele. Já tinha sentido aquele sopro alguma vez, só não sabia quando...

Então, aos poucos, ele se acostumou. Foi no embalo, entre trancos e barrancos, uma advertência aqui, outra recuperação ali, amizades importantes que o ajudaram a crescer. Tudo passou, virou saudade.

Só foi pensar melhor naquelas vivências, já adulto, após receber uma informação sagrada, dada por seu generoso analista. E encontrou alguma explicação sobre a indecisão naquele dia, diante do portão.

O livro Talmud conta que "um anjo ensina a Torá (livro sagrado judaico) completa a toda criança ainda no ventre materno; e uma luz oculta brilha sobre sua cabeça neste instante, permitindo-lhe ver de um lado a outro do mundo".

É assim. Enquanto a criança, em forma de embrião submerso, se desenvolve no ventre materno, viaja livremente por um universo amplo que lhe é soprado pelo anjo.

Vai boiando no líquido amniótico e fica sabendo da criação da terra, do mar, do sol, da lua, das sementes, das plantas, do gado, dos peixes... E que tudo era bom.

Em forma de recordação, o anjo lhe sopra a viagem de Abraão para Israel, a importância da perseverança e a luta pela saída do Egito.

A placenta é seu universo. É onde o pulsar do coração da mãe lhe passa confiança ritmada. E onde lhe é soprado, pelo tal anjo, que a revelação divina no Monte Sinai ocorreu diante de um povo descrente, enquanto relâmpagos explodiam milagres no manto celeste escurecido.


Já entre a 4ª e a 8ª semana, a revolução de seu desenvolvimento cerebral é alimentada pelas histórias da Cabala e pelas explicações profundas da relação do homem com Deus.

O tempo vai passado e o bebê vai, ele mesmo, se configurando em um milagre. Como um monte de células pode se tornar um concepto, superar conspirações biológicas, e se transformar em mãozinhas, pezinhos, estampando um rosto doce e inocente? A história do anjo, certamente, ajuda muito nesse processo, pelo que diz o Talmud.

Já com o pulmão formado, ele até consegue gargalhar em seu mundo, quando o mesmo sopro (aquele...) lhe contou as peripécias do Rei Davi e as extensões da Torá. Ou quando ficou sabendo dos mandamentos divinos, querendo sair para amar o próximo como a ele mesmo.

Neste momento, ele já sabe de cor - porque seu coração já palpita essas revelações - a maioria dos princípios. Entende que a ética deve prevalecer sobre a estética, como se mentalmente tivesse sobrevoado os rolos de pergaminho escritos e avistasse cada passagem lá do alto de sua precisa imaginação.

Há dias seus circuitos neurais se desenvolveram, tecendo seus neurônios com ideias e imagens resplandecentes: o mar se abrindo para a liberdade; o Kol Nidrei (reza em busca dos perdões pelos pecados humanos) sendo entoado em noite solene, em redutos simplórios de antigos vilarejos.

Nesta etapa ele também fica ciente de que precisará manter inabalável sua identidade diante das adversidades.

Quando ele começa a escutar vozes do exterior, o útero materno se mostra uma muralha a ser transposta. É o momento em que o bebê fica sabendo, pelo anjo, sobre a história de Josué e as trombetas em Jericó. Assim, a cada instante da gestação, ele vai assimilando uma infinidade de informações.

Já conhecedor da peregrinação do deserto, passa a valorizar as colheitas. E assimila a importância do perdão no mundo que está para conhecer. Só falta lhe tirarem de lá. Até já dá seus recados com chutinhos na barriga, avisando sua mãe que precisa sair. E que, obviamente, é apaixonado por futebol.

Mas quando o tiram, vem o inesperado. O pequeno sábio vê lhe escaparem todos os segredos da existência. Assim que nasce, se esquece de tudo que lhe foi contado. O Talmud diz que isso acontece mesmo. Quem sou eu? Onde estou? E vem o berreiro...

Com o garoto, também foi desta forma. Quando ele chegou à frente do portão naquele dia, estava mais calmo, mas ainda não sabia que muita coisa viria pela frente. Sua preocupação era o presente.

Surgiu o ímpeto de voltar para debaixo das cobertas. Não tinha jeito. Precisava reaprender tudo que havia esquecido.

Virou-se para o lado e viu futuros colegas com mochila em ritmo acelerado. Ouviu gritos dos professores chamando cada turma. Olhou para o céu, sentiu o brilho do sol e sorveu o ar matinal da cidade.

O sopro continuava lhe comunicando algo. E o "obrigou", finalmente, a entrar na escola. Logicamente, não foi o fim. É apenas a história de como toda criança, mesmo sem perceber, consegue dar o seu primeiro passo.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Ninguém dorme

A madrugada já estava terminando, mas os objetos continuavam a ser contornos esparsos no escuro: a cama, a cadeira ao lado, a prateleira de miniaturas. No silêncio entrecortado por raras buzinas e brecadas que vinham lá de baixo, as formas sugestivas se assemelhavam a nuvens que tentamos adivinhar o que representam.

Ao ir conferir como o menino estava em seu quarto, o pai percebeu que a criança já acordara. Olhava para a escuridão do teto, tentando espantar o susto com os ruídos que vinham do vizinho: uma moeda no chão ou uma descarga era motivo para ele desconfiar da presença do temido palhaço assassino ou de algum bandido que teria invadido o prédio em sua imaginação.

— E esse barulho papai?

— São os passos de alguém que acordou mais cedo. Vai ver daqui a pouco você, quando for até a perua, se encontre com ele e diga bom dia.

Com uma risada sincera e curta, ele mostrou que a ideia o aliviou. Pela fresta da janela, uma brisa perfumada e fresca inspirava pensamentos longínquos. O pai, então, resolveu desfilar seu manancial de ideias originais.

Enquanto vestia a criança, a fez gargalhar por causa das várias etiquetas da camisa nova do uniforme. Ia falando, com voz engraçada, cada vez que via uma delas.

— Nossa, essa etiqueta aqui, um milhão. Outra...nossa, vale muito essa camisa, um milhão. Mais outra, outro milhão de reais.

Nem parecia que o filho estava acordando cedo. O bom humor do pequeno resplandecia naquela conversa, ainda sob a penumbra da madrugada. Ria do fundo da alma, como diante de um palhaço (não assassino!) fazendo piruetas no picadeiro.

O pai ainda brincou e deixou as etiquetas grudadas no armário, falando que depois ia pegar para conferir se tinha pago aqueles todos milhões por aquela camisa tão valiosa.

Enquanto o menino ia ao banheiro, o pai foi até a janela do próprio quarto. Observou o horizonte ainda negro, com poucas luzes dos prédios acesas. Fazia tempo que não entrava em devaneio tão profundo, embebido pela madrugada.

Sentiu um enorme prazer ao ver a cidade ainda adormecida, pacata, reverenciando um lado humano tão oculto nas cicatrizes diárias que a correria do dia a dia faz no asfalto e nas almas.

Lembrou-se então da ária Nessun Dorma, de Puccini na obra Turandot, e logo chamou o filho, que estava obediente e inebriado com aquela atmosfera misteriosa de início de dia.

— Filho, vem cá. Ouça no meu celular essa ópera, chama Nessun Dorma. Quer dizer Ninguém Durma. Pega um momento como esse, de madrugada, quando um homem, o Calaf, é o único que sabe que será o escolhido pela rainha. A revelação será na manhã seguinte.

Já na sala, incrementada pela vista do terraço, ele colocou a música no YouTube. Num segundo, a voz forte e encantadora, vinda do peito de Richard Tucker, preencheu o local. Depois envolveu todos os ambientes da casa de tal maneira que parecia alcançar o céu.

A música tocou também o menino. Junto com o pai, e em silêncio, foi vendo a manhã surgir colorida como se ela dançasse com aquela melodia. O gran finale era otimista e belo: "Vinceròòo! Vinceeeeeeeeeeeeròòòò....!"

Os barulhos iam aumentando na rua. Davam a impressão de que todos os insones da cidade se levantaram para o batente, em busca de alguma revelação. E que ninguém dormiu justamente devido ao sedutor convite à reflexão que a madrugada e seus fantasmas apresentam.

Apenas o pai teve a possibilidade de ir finalmente atrás de um cochilo, após deixar o filho na porta da perua, voltando para a cama por mais meia hora de sono. Quando saiu, apressado, para ir pegar o metrô, esqueceu das etiquetinhas grudadas no armário.

O filho, ao voltar, no fim do integral, as percebeu lá. E sentiu a luta do pai, que chegaria tarde, naquelas palavras que valorizavam a camiseta, a vida, a preocupação com a família, a insônia de um dia sonhar em ter, senão um milhão, pelos menos o suficiente para pagar o aluguel com tranquilidade.

Conseguiu intuir o motivo de o pai repetir, em tom de gozação, sobre aquele milhão tão engraçado. Intuiu mesmo sem saber muito bem o porquê. São as sábias conclusões de criança: a beleza da vida é que ela não existe sem dias de insônia. E apenas sussurrou baixinho, para si:

— Esse cara é mesmo uma figura...