quarta-feira, 22 de junho de 2011

Torcedores

Dois torcedores se encontraram, casualmente, em frente à Igreja da Consolação. Um corintiano, o outro santista. Não se conheciam e não se falaram. Supersticiosos, iriam rezar o Pai Nosso para seus times, que, logo mais à noite, se enfrentariam na inédita decisão da Libertadores. Só dirigiriam súplicas a esta causa, a razão de suas vidas. De repente, um deles avistou um mendigo, deitado em frente à escadaria, desamparado, traje roto, cabelos duros, olhar acinzentado pelas agruras da cidade. Entregue, já devia ter desistido de rezar. Ao mesmo tempo, o outro viu um menino magrinho, descalço, pedindo esmola na rua e sendo desprezado pelos que passavam. Continuaram sem se falar. Mas havia alguma força no ar que transformou a rivalidade em compaixão. Sentiram que seus trajes e amuletos revelavam uma compulsão. O fanatismo clubístico ganhou uma feição de máscara, que escondia alguma dor profunda, por trás dos gritos nos estádios. Então se ajoelharam e rezaram em frente ao púlpito. O corintiano rezou pelo mendigo. O santista orou pelo menino. Sem perceber, se esqueceram de seus times. Curiosamente ainda torciam de forma diferente. Um para o mendigo, outro para o menino. Isso, porém, era o de menos. No fundo, ambos haviam unificado suas agremiações, suas crenças, suas religiões, pedindo a mesma coisa. Rezando pelos homens. Para que o menino nunca fosse um mendigo e para que o mendigo, um dia, voltasse a ser menino.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Prisão

Não consigo escrever textos, destes, com apetrechos.
Destes, com imagem e contexto. Detalhados em toques certeiros.
Espalhados por palavras precisas, desenhadas por contornos geométricos. Que formam figuras, cenas e histórias exatas. Cheias de ação, verossimilhanças e esperanças. Com lustres típicos, móveis rústicos, caixas de som, tensões e pessoas. Com diálogos nítidos, perfeitos no tom, na gíria, na reverência. Então busco no meu baú, ideias que tragam à tona estes textos, estes cenários de cinema. E peço, invejoso dos outros, que venham a mim e superem barreiras. E que rompam as nuvens negras que cobrem o sol escaldante do meu potencial. E olho para o céu e vejo as nuvens fecharem o tempo. Então minha visão fica plúmbea, não escrevo textos, formo frases esquálidas, desmilinguidas, inanimadas, ressecadas como o rosto de Tom Zé, sou como a afinação de Tom Zé, nas minhas sequências sedentas da luz que colore, que as encham, ansiosas pelo vento que as movimente, à espera do calor que as aqueça, e que sopre para longe, ventilando as angústias que cegam, a timidez, antes que a força interna chegue para mim e diga esqueça, esqueça. Então não resisto, largo o teclado e ordeno para o meu lado criativo, ainda ofegante de tanto chacoalhar as grades da prisão: adormeça, adormeça.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Troco

Ele tinha pressa. Mas a moça do caixa não registrava com rapidez, sempre envolta em problemas com a máquina. Baixinha, com a touca da empresa cobrindo seus cabelos castanhos, tinha o olhar inibido e difuso. O semblante era sério, quase impenetrável. Um cliente típico dos dias de hoje, irritado e egocêntrico, poderia atribuir-lhe certo descaso. Mas não era. Talvez fosse desejo de não estar ali. Então, antes de agir por impulso e reclamar, como ele já estava prestes a fazer, respirou e se conteve. Pegou uma revista no balcão do caixa e leu as manchetes. Imaginou a vida da moça. Visualizou-a acordando às 5h da manhã, numa região da periferia, para chegar àquela padaria às 8h30, após pegar ônibus e trem lotados. Intuiu que ela não devia receber mais de R$ 600 pelo trabalho e que se sentia pressionada diante de tantas obrigações, como ajudar a família, tentar estudar, ter sonhos para o futuro, dos quais muitos morreriam com a agonia das adversidades. Por isso ele não reclamou. É verdade que ela tinha um emprego e podia ser feliz, apesar das dificuldades. A reclamação, porém, seria pequena diante de tudo isso. E não iria amenizar os próprios problemas dele. Não substituiria a vontade que tinha de gritar com o chefe, a chateação de ter de trabalhar longe de casa, a tensão de sua rotina atribulada. Aqueles pensamentos, cuja duração não ultrapassou dois minutos, diluíram sua impaciência. A cena terminou com ele sorrindo para a moça, num gesto que compensou as frustrações de ambos no dia-a-dia. O ato adoçou a realidade, trouxe leveza à cena carregada de tensão, que logo se dissipou, tornando a vida um pouco mais fácil. O sorriso foi retribuído. Junto com o troco, finalmente.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Solidária

Na inveja, prevalece o desejo de sugar o que o outro tem. Na pena, o desejo predominante é o de preencher o que o outro não tem. Há pessoas, com certa arrogância, que se recusam a sentir e a ser fontes de pena, por darem a ela o disfarce de mesquinhez. Livram-se da responsabilidade de lidar com a pena, deles e alheia, criticando-a como uma espécie de alívio, confundindo-a com o sadismo. Acusam os que são tocados pela pena. Dizem que eles afirmam: "Pelo menos não é comigo". Mas a pena, ou melhor, compaixão, é a inveja ao contrário. Sem a pena, não existiria o amor ao próximo, nem Madre Teresa de Calcutá, nem os que lutaram pela justiça social no mundo. Sem a pena, Jesus não teria entrado para a história dos humildes. Tampouco José teria perdoado seus irmãos e ajudado a dar continuidade ao povo judeu. Ter pena do inimigo é um passo para o fim de um conflito. Sentir pena é olhar o outro com olhos compreensivos. É ser humilde com o humilde e se sentir humilde diante do próprio sofrer. É um aprendizado, não é a auto-flagelação. É apenas ter a nobreza de sentir o drama do que sofre. E permitir que os outros compartilhem a sua dor. A pena, portanto, não é atroz, ainda mais se for complementada com a atitude de ajuda. E, se não for, pelo menos é a solidariedade do sentimento.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Lembranças

Tem se lembrado bastante de seu pai e de como era sua mãe, hoje uma senhora. Olha de frente para o passado e, como em um espelho, vê o rosto de um menino. Ele se transporta para dentro do espelho; revive algumas brigas no carro; as dificuldades do casal; o dia em que o pai disse o futuro a Deus pertence no bar-mitvá, causando confusão com a mãe; a vez em que ele fraquejou e não conseguiu gravar o jogo importante na TV; o dia em que ele, colocando para fora sua raiva, arrancou a antena de um carro estacionado no portão de casa, na frente do garoto; as dificuldades que ele tinha em enfrentar o dia-a-dia. Hoje, especificamente, o filho está se lembrando mais dessas coisas do que dos dias em que iam juntos a jogos do Corinthians, ainda no Morumbi que lotava; no trajeto diário que fazia ao lado da irmã, quando ele os conduzia até a escola; no fato do pai ter, apesar de seus medos profundos, conseguido se formar médico, dos bons, ter casado e tido filhos. E assim como acontece em relação à sua mãe, ele se lembra de tudo em uma saudável inversão. O que era maçante no passado, hoje é motivo de orgulho. Mas o amor permanece intacto. Ou melhor, potencializado. Ele finalmente entendeu o significado de amor verdadeiro, aquele que vence o tempo e se eterniza na lembrança, transforma em carcaças inseguranças infantis. É uma ternura, que, de tão grande, ele não consegue colocar as mãos. É um abraço dado apenas por um sorriso de recordação. É o beijo estampado no rosto por meio de uma lágrima de saudade. É um amor que se eleva acima dos remorsos, vai além das palavras. Não é um amor apenas idealizado pelas qualidades. É um amor compreensivo, esculpido pelas fraquezas humanas, fontes de sabedoria e aprendizado. Base mais consistente para o busto de um herói.