sexta-feira, 29 de abril de 2016

Epiléptico

Ele falava com uma amiga sobre epilepsia. E lhe veio de roldão a cena que viu, quando criança, de um homem caindo em ataque, ao lado da velha garagem de sua casa no Itaim. O menino não sabia o que fazer. Não lembra se o senhor, um pedreiro corpulento que trabalhava na reforma dos muros e do jardim da frente, foi de pronto atendido e quem o ajudou a se levantar. Era bigodudo e tinha um cabelo volumoso, embranquecido pelo tempo e pelo trabalho duro. Naquela época não havia tanto remédio. Nem se ouvia falar de carbamazepina (Tegretol) e valproato de sódio (Depakene, Valpakine). Sentiu compaixão pelo homem, pelo menino assustado naquele momento, por dramas que se transformam em reminiscências e ficam banalizados pelo passar dos anos. Também da sua mãe, ansiosa por ver a casa reformada. E, na tentativa de reformar as coisas para melhor, inclusive seu mundo, ela teve, no fim, de ajudar a cuidar do pedreiro convulsionado. Arranjou cadeira para ele sentar e, entre idas e vindas da atônita empregada, lhe deu um copo de água com açúcar. Recebeu um obrigado longínquo, mas que ainda hoje, soluçando bem de leve lá de algum lugar, soa desnorteado. Titubeante entre o eterno e o instantâneo, nesta obra que se reforma todos os dias.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Sinistros

No nazismo, os judeus também foram discriminados por meio de decretos aprovados pelo Parlamento. Todas as perseguições seguiam absolutamente o rigor da lei. Passavam por deputados, por juristas renomados e eram sancionadas pelo presidente. O racismo, na época, era constitucional. E o cinismo, agora no Brasil, também é.

Ambição

Ele é bondoso, correto, inteligente, gentil, honesto, generoso e ético. Mas lhe falta a ambição. Soa mal? Não, se ele é bondoso, correto, gentil, inteligente, honesto, generoso e ético.

Golpe

Temer tem o nome fortemente vinculado a investigações da Lava Jato. Assinou decretos das ditas pedaladas fiscais. Conversa com Aécio, derrotado nas eleições, por fatias de poder. Tanta sordidez, tanta ausência de valores não podem ser confundidos com notícia. A notícia é o golpe para conquistar a presidência do Brasil. E todos os jornais que estampam manchetes "neutras" sem denunciar tanto cinismo são, na verdade, coniventes com tamanha insensatez.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Manhãs

Há sempre um momento em que da escuridão brota o fiapo de luz. No silêncio do horizonte, a manhã surge em um ar campestre. Mesmo na cidade. Em seguida, pios distantes dos pássaros madrugadores vão se avolumando até o resplandecer de uma sinfonia. Junto com eles, mais do que antigamente, o ronco dos carros. Eles chegam cada vez mais cedo. E se misturam ao som da natureza, impondo-se a ele, sobrepondo a pressa à calmaria do passar natural do tempo. Cada manhã surge como um milagre e os carros se esquecem disso. Mecânicos, cruzam a avenida insensíveis à transformação ao seu redor, quando riscas alaranjadas dão contornos coloridos às arvores, balançadas pela brisa que baila invisível. E o canto se avoluma. Em luta inglória, porém, é abafado pelas buzinas. A se multiplicarem, como se fossem gritos por um lugar ao sol. Mas o sol está ali, gente! Logo ali, evoluindo lentamente, acima de tudo. A acariciar com um toque de calor os rostos que xingam, que reclamam, que se maquiam adoentados por algo que desconhecem, mas do qual não conseguem se livrar. O sol ficará lá por horas, dando a chance de ser contemplado. Em vão. Até se apagar, imponente e conformado, em dança com o anoitecer, substituído pelo véu negro pontilhado de estrelas, onde se pendura a lua. O cenário continuará em olvido enquanto todos dormem. Sonham, muitas vezes sonhos recônditos, diluídos diante do espelho no dia seguinte. E eles entrarão engravatados nos carros, cortarão a cidade ensandecidos, imperceptivelmente tristes, numa tristeza que, diferentemente da manhã, não quer se transformar. Mas a manhã, sabe-se lá até quando, estará lá, surgindo do milagroso parto da natureza. Em brandos movimentos, até que um dia o homem finalmente lhe dê a devida atenção. Ela então mostrará seus braços abertos de luz, desenhando em infinitas dimensões a amplitude da vida. Colorindo o sorriso que explodirá com a revelação de seu nascimento. Perfumando o aroma do orvalho enfumaçado. Escutando a voz do homem se misturar ao canto dos pássaros, em um balbucio que diminuirá o urro ensurdecedor dos motores. E do balbucio ouvirá, em nome de todas as manhãs, ecoar o inesperado e surpreso cumprimento, que ela - ou elas - pacientemente desejou receber: Bom dia, felicidade.

domingo, 24 de abril de 2016

Filho

Quando o menino saiu do vestiário, estava mínimo dentro do uniforme tamanho 8. A camisa mais parecia uma camisola. Veio lá do outro lado da quadra e passou pelo pai sorrindo tanto que dava para ver, desde longe, o espaço dos dentinhos que já caíram. Quase tropeçando no short largo, olhou com aqueles olhinhos reluzentes de traquinagens e vibrou: "O Dodô não me deu a 10 mas deu a 11!". Uma mensagem que mostrava que, de tudo, sempre havia o lado positivo. Afinal, se a 10 era sempre a do melhor do time, a 11 era a do Neymar, o melhor da seleção. O pai ficou nas arquibancadas atrás da quadra de futsal, apertado bem no canto, ao lado de outros pais entusiasmados. O técnico, o tal Dodô, fez um natural rodízio, iniciando o jogo (com três tempos) com um time em que o seu filho não estava. A partida ficou truncada, não saía quase nada: nem chute, nem gol. No segundo tempo, a mesma coisa. Ele viu o menino no banco e, daquela distância, brilhavam o sorriso e até algumas brincadeiras. Então ele se lembrou de seus tempos de menino, quando, muitas vezes, sentia que sua habilidade (muito grande, por sinal) não era valorizada pelos muitos treinadores, talvez em função de sua timidez. Um dia, ficou envergonhado no banco, contra o Banespa, vendo o seu pai e sua mãe na torcida. Nem sorriu, nem brincou, nem mostrou seu sorriso todo banguela, que já nem lembra se tinha. Apaixonou-se por futebol como uma espécie de salvação. Foi no esporte que ele encontrou sua identidade e, tornando-se corintiano, em 1976, após o gol do Ruço contra o Fluminense, descobriu uma maneira de mostrar algo que tinha de bom. E passou a amar a bola mais do que qualquer um amava, muito antes de o ato de torcer se tornar uma forma de status e um modismo, dentro de um contexto que, décadas depois, passou a misturar futebol com posse e consumo. Ganhou fama eterna de ser uma enciclopédia. Mas, nem mesmo a paixão, nem seu talento, nem o seu domínio eram suficientes para tirá-lo do banco no pré-mirim. Não importava. Era fascinado pelo jogo. Às vezes entrava em jogos, fazia belas jogadas, como a do gol contra o Corinthians, no Tênis Clube, ou o lançamento por cobertura genial contra o mesmo Banespa, que gerou o gol de sem-pulo do time. Não importava, sentia-se fadado a voltar à reserva. Na torcida, o gol do Falcão foi o que mais comemorou na vida, quando o volante empatou aquele jogo contra a Itália, na Copa de 1982. Ninguém nunca comemorou um gol como ele, o menino. Saiu pelo jardim em disparada, gritando alucinadamente quando chegou ao portão. Até tonto ficou. Ninguém nunca amou o jogo como ele, mesmo quando era traído por uma derrota inesperada, como naquela Copa. O futebol, como um todo, nunca o traiu. Naqueles tempos ele não entendia porque tanta obstinação. Apenas a seguia, com intuição e devoção. Aos poucos, foi percebendo a questão da identidade, foi vendo suas lacunas ao olhar para a infância. E o futebol foi ficando em algum lugar dentro dele, meio que sufocado pelos berros artificiais de muitos que decidiram gostar de futebol e do esporte midiático que se tornara um produto. Teve a impressão de que essa febre diluiu sua paixão. Tantos jogos, tantas transmissões, tantos torcedores emergentes, tantos conhecedores...Até mesmo os pais ao seu lado, enquanto observava a alegria do filho, pareciam não vê-lo, não perceber a intimidade que ele tinha com a bola. Pareciam estar mais interessados em um universo ensimesmado do que no apego a um ideal esportivo ou a uma tentativa de comunicação com o mundo. Até que o seu menino entrou, ufa, no terceiro tempo daquele teimoso 0 x 0. Como nos vídeos daqueles pequenos craques, suas perninhas cobertas pelo calção, na primeira jogada, deram um corte no zagueirinho e depois outro para, em um instante, mudar a história da partida. Chutou no ângulo e fez 1 x 0. Um grito vibrante ressoou no ginásio enquanto o garotinho, de mãos abertas, corria em celebração tal qual a miniatura de um jogador. Sorrindo, é claro. Já o pai, lá de trás, urrava de emoção naquele que certamente foi o gol que mais comemorou em sua vida. Algo renasceu unindo passado e presente. Ele amava o futebol para se sentir alguém. Sabe por que mais do que todos? É que, quando criança, ele sempre amou o futebol como se fosse o filho que ele ainda não tinha. E naquele dia, então, ele se sentiu um pai titular. Saiu, enfim, do banco de reservas.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Amigo

Eis que o vejo andando lentamente
Naquela mesma esquina da cidade
Onde tomávamos cerveja na juventude
Olhando as moças circularem livremente

Falávamos da vida, dos perigos e esperanças
Você mostrava no olhar a sua criança
Em busca de compreensão para tanta aflição
Sem muito tempo para ouvir em suas andanças

E eu bebia meus goles de idealismo
Também menino um sonho acalentava
De um dia ver toda aquela gente
Acordar do pesadelo do egoísmo

Então nós nos perdemos no caminho
Seguindo o mesmo empirismo do destino
E na trilha do passado ao presente
Entendi que o ser sempre anda sozinho

Você está velho e percorre a mesma esquina
De sandália, camisa solta e pele flácida
Passos lentos sem sair da nossa origem
E um olhar cavo que ainda se fascina

Lá de longe o observo no velho bar
Velhos gestos e me lembro como hoje
Não converso, não o chamo, só percebo
Sua insistência sempre pronto a indagar

Como fazer para conseguir sempre vencer
Como jogar sem nunca se decepcionar
Eu o amava, meu amigo, pelo que você era
E também pelo que deveria, e poderia, ser

domingo, 3 de abril de 2016

Melodias

Ela sempre vinha lhe sussurrar bom dia
Com sono na cama, do rádio-relógio ouvia
Espalhar-se pela casa o segredo da melodia
Que o fazia pensar em tudo que queria
E ter a impressão de que tudo podia
Instantes de encanto, na manhã que se abria
Pelo acúmulo das épocas, lembranças trazia
A caminho da escola, a cidade reluzia
Fosse I Want to Break Free ou a Gal da Bahia
Quando corre agora, as vozes vêm em mente
A trilha do que passou e de tudo à sua frente
A canção do passado na emoção do presente
Tudo volta em um sopro, reaparece de repente
Ele corre pela rua, olha o céu onipotente
Um mistério infinito, um ouvinte e bom amigo
Quadrante de onde revê o menino atrás de abrigo
Envolvido por acordes, sonhando com algo antigo
A se acalmar no ipod, cantando apenas consigo
No som de Journey e de Asia, liberdade sem perigo
Deitado na cama ouvia, da sala um som soberano
A mãe conversava com a noite dedilhando ao piano
E vem Play de Game Tonight, ele sabe onde ir
Entra em cena o escudo que não o deixa se ferir
Em True era herói de cinema, valorizado a intuir
Sua força retraída, convencendo-o a sair
Em busca do que queria, do direito de existir
Até a namorada sonhada ele podia seduzir
Flashbacks que ele sabe de cor, Don't you love me any more
E ele corre no tempo, na manhã de suave vento
Folhas caem ao relento e navegam no cimento
O hoje também envolve, Every Breaking Wave é sentimento
Vislumbra do sofá as estrelas, entra em cada apartamento
Percorre os rastros do mundo, pelas luzes do firmamento
Boa voz, bons ouvidos, bons fluidos, o divino e o perfeito
Na memória e na esperança, que não morrem nem no leito
Enquanto estiver em seu peito, o enleio terá efeito
De libertá-lo por campos e prados, de sentir-se o eleito
Onde quer que possa estar na hora em que partir
Será novamente o menino querendo se exibir
Estará vivo, feliz e pulsante, na teimosia em resistir
Se tiver o ar pra respirar e uma música para ouvir