domingo, 24 de abril de 2016

Filho

Quando o menino saiu do vestiário, estava mínimo dentro do uniforme tamanho 8. A camisa mais parecia uma camisola. Veio lá do outro lado da quadra e passou pelo pai sorrindo tanto que dava para ver, desde longe, o espaço dos dentinhos que já caíram. Quase tropeçando no short largo, olhou com aqueles olhinhos reluzentes de traquinagens e vibrou: "O Dodô não me deu a 10 mas deu a 11!". Uma mensagem que mostrava que, de tudo, sempre havia o lado positivo. Afinal, se a 10 era sempre a do melhor do time, a 11 era a do Neymar, o melhor da seleção. O pai ficou nas arquibancadas atrás da quadra de futsal, apertado bem no canto, ao lado de outros pais entusiasmados. O técnico, o tal Dodô, fez um natural rodízio, iniciando o jogo (com três tempos) com um time em que o seu filho não estava. A partida ficou truncada, não saía quase nada: nem chute, nem gol. No segundo tempo, a mesma coisa. Ele viu o menino no banco e, daquela distância, brilhavam o sorriso e até algumas brincadeiras. Então ele se lembrou de seus tempos de menino, quando, muitas vezes, sentia que sua habilidade (muito grande, por sinal) não era valorizada pelos muitos treinadores, talvez em função de sua timidez. Um dia, ficou envergonhado no banco, contra o Banespa, vendo o seu pai e sua mãe na torcida. Nem sorriu, nem brincou, nem mostrou seu sorriso todo banguela, que já nem lembra se tinha. Apaixonou-se por futebol como uma espécie de salvação. Foi no esporte que ele encontrou sua identidade e, tornando-se corintiano, em 1976, após o gol do Ruço contra o Fluminense, descobriu uma maneira de mostrar algo que tinha de bom. E passou a amar a bola mais do que qualquer um amava, muito antes de o ato de torcer se tornar uma forma de status e um modismo, dentro de um contexto que, décadas depois, passou a misturar futebol com posse e consumo. Ganhou fama eterna de ser uma enciclopédia. Mas, nem mesmo a paixão, nem seu talento, nem o seu domínio eram suficientes para tirá-lo do banco no pré-mirim. Não importava. Era fascinado pelo jogo. Às vezes entrava em jogos, fazia belas jogadas, como a do gol contra o Corinthians, no Tênis Clube, ou o lançamento por cobertura genial contra o mesmo Banespa, que gerou o gol de sem-pulo do time. Não importava, sentia-se fadado a voltar à reserva. Na torcida, o gol do Falcão foi o que mais comemorou na vida, quando o volante empatou aquele jogo contra a Itália, na Copa de 1982. Ninguém nunca comemorou um gol como ele, o menino. Saiu pelo jardim em disparada, gritando alucinadamente quando chegou ao portão. Até tonto ficou. Ninguém nunca amou o jogo como ele, mesmo quando era traído por uma derrota inesperada, como naquela Copa. O futebol, como um todo, nunca o traiu. Naqueles tempos ele não entendia porque tanta obstinação. Apenas a seguia, com intuição e devoção. Aos poucos, foi percebendo a questão da identidade, foi vendo suas lacunas ao olhar para a infância. E o futebol foi ficando em algum lugar dentro dele, meio que sufocado pelos berros artificiais de muitos que decidiram gostar de futebol e do esporte midiático que se tornara um produto. Teve a impressão de que essa febre diluiu sua paixão. Tantos jogos, tantas transmissões, tantos torcedores emergentes, tantos conhecedores...Até mesmo os pais ao seu lado, enquanto observava a alegria do filho, pareciam não vê-lo, não perceber a intimidade que ele tinha com a bola. Pareciam estar mais interessados em um universo ensimesmado do que no apego a um ideal esportivo ou a uma tentativa de comunicação com o mundo. Até que o seu menino entrou, ufa, no terceiro tempo daquele teimoso 0 x 0. Como nos vídeos daqueles pequenos craques, suas perninhas cobertas pelo calção, na primeira jogada, deram um corte no zagueirinho e depois outro para, em um instante, mudar a história da partida. Chutou no ângulo e fez 1 x 0. Um grito vibrante ressoou no ginásio enquanto o garotinho, de mãos abertas, corria em celebração tal qual a miniatura de um jogador. Sorrindo, é claro. Já o pai, lá de trás, urrava de emoção naquele que certamente foi o gol que mais comemorou em sua vida. Algo renasceu unindo passado e presente. Ele amava o futebol para se sentir alguém. Sabe por que mais do que todos? É que, quando criança, ele sempre amou o futebol como se fosse o filho que ele ainda não tinha. E naquele dia, então, ele se sentiu um pai titular. Saiu, enfim, do banco de reservas.

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