quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Natal

Levantou-se do divã e se despediu do psicanalista com algo que nunca havia falado nos anos de análise. “Feliz Natal”. Era antevéspera deste importante feriado. Mas não foi só por isso que ele soltou a frase. Haviam descoberto coisas importantes. É como se uma nova criança nascesse por um sopro de luz do céu, trazendo novos paradigmas de Salvador. A sala se tornou um presépio. O divã, uma manjedoura. O psicanalista, com seu cajado e o bigode branco, era um misto de profeta, anunciador de uma era, e de pastor, em sua humildade de observador pronto para servir. O nascimento de alguém, um ser frágil e dependente, é um ato que remete mesmo a um cenário de humildade. Como um estábulo simples, mas caloroso, símbolo que resiste à ganância e perversidade humanas através do suplicante balido do carneiro, do olhar dengoso de uma ovelha e do choro vital de uma criança. Impulsionado por novas possibilidades, ele deixou a sala rumo ao século XXI, mecanizado, tecnológico, urbanizado. Desceria por um elevador moderno. No frenesi da rua cheia de carros, não sabia se encontraria reis magos inebriados pela luz da estrela que anunciou este nascimento. Nem se deles receberia presentes, como incenso, ouro e mirra. Ele só queria proteger suas retinas da claridade insensata do mundo. Precisava de um alívio para sua indignação. Chegara o momento de enxergar algo por de trás dos gestos competitivos e insanos das pessoas. Um pouco de paz na terra e homens de boa vontade.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Vivências

Alegria de viver é pisar na areia da Praia do Futuro, avistar o mar brilhante e ver, por de trás do horizonte, um outro mundo, outros continentes, o futuro. Alegria de viver é correr livremente na companhia do pôr-do-sol. É beber água gelada, sentindo a brisa refrescante, após a corrida. E depois fazer planos consistentes, inspirados, iluminados por uma força que se permitiu emergir de nosso interior. Alegria de viver é conseguir seduzir com um sorriso. É não depender do dinheiro e, ao mesmo tempo, ter o anseio e a confiança em ganhar dinheiro. É sair falando tantas coisas interessantes, a fluírem como água límpida vinda da memória. E conseguir contagiar com essas palavras, cativar, comunicar algo, numa troca viva e contínua com o outro. Alegria de viver é ter o lampejo na hora certa. É se sentir como o herói de um lindo filme. É conseguir desculpar-se dos próprios erros. É se fortalecer com os desafios. E poder ler um bom livro, tranquilo, por entre as pessoas que transitam ao redor. Alegria de viver é conseguir ensinar e ter a permanente sede de aprender. É ter a generosidade de dar e a humildade para receber. É chorar de saudade. E se recolher no doce recanto da tristeza. Alegria de viver é ter a liberdade de ligar para a pessoa amada a qualquer hora. E se reconciliar. E se recuperar. E se esquecer. Alegria de viver é a irradiação em nós de todo o universo. Alegria de viver é ver no olhar do filho a alegria de viver. Alegria de viver, em francês, é joie de vivre. Em inglês, é hapiness of life. Em italiano, gioia di vivere. Mas alegria de viver é ter você, alegria de viver, em todos os lugares, em todas as linguagens.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Segredos

Pensei na frase “Conte-me seus sonhos”, famosa, título de livro de Sidney Sheldon. E logo vi o prazer do mundo ao ver conversas sigilosas entre diplomatas publicadas em um site. Segredos dos outros eram revelados, para o júbilo de boa parte da sociedade. Mudei a frase. “Conte-me o segredo dos outros”. Todo mundo quer saber. “Conte-me seus segredos”. Ninguém quer contar.

Camisas

Era corintiano, mas vestiu uma camisa do Santos, estilo retrô, com a assinatura do Pelé. No clube, um conhecido, corintiano, o interpelou, largado no banco ao lado da piscina. “Tá louco?”, disse, em tom raivoso. Parecia que ele havia cometido uma heresia, quando sua intenção era apenas homenagear um símbolo que estava acima das paixões clubísticas e até do futebol. Não era humilhação. Humilhação é o fanatismo, em qualquer circunstância: religiosa, política, clubística. Humilhação é fugir da vida e esconder o que está por de trás da camisa que vestimos.

Escuros

A escuridão controlada é diferente daquela que o ameaçava antigamente. Quando a luz acabava, na sua casa, era como se ele caísse no abismo. Uma sensação de descontrole o rondava, alimentada pelo silêncio que pairava na atmosfera sem luz. Sua mãe acendia velas e o reflexo das chamas fazia a silhueta de cada um se transformar em sombra monstruosa tremeluzindo na parede. Era como se a casa estivesse habitada por fantasmas que, apesar de existirem, não apareciam no dia-a-dia. O lado sombrio do ser humano emergia no escuro, quando a luz faltava repentinamente. Agora, estar no controle da escuridão é outra coisa. Dá a sensação de que este lado viscoso e traiçoeiro finalmente está em nossas mãos. É bom ficar no quarto, com a luz apagada, sonhando com músicas do passado, se perdendo na imensidão imaginária que o escuro traz. Ou olhar para o céu noturno e viajar por suas estrelas, amparado pelo cheiro de brisa e o toque da lua. Até o céu cinzento e misterioso é acolhedor, sugerindo um fundo de luz por trás de seu manto diáfano. Nestas situações há o controle do homem, que pode entrar em casa, acender a luz ou simplesmente dormir. E enquanto ele está diante desta escuridão acolhedora, sua sombra arrefece, dá trégua. Fica parecendo que o escuro é um enorme útero e que o céu, tal qual o nome do filme, nos protege. Se esta noite fosse eterna, seria uma solução tranquilizante. Não haveria um breu ameaçador. Só os bons pensamentos viriam para fortalecer, com projeções românticas no teto ou no firmamento. Seriam desenhos de nossa auto-estima, nossa criatividade, lado mais nobre que nos conduz e que não conseguimos mostrar, à luz de nossos conflitos internos.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Dizer

Quem sabe a maneira certa de dizer o que quer, aprende, respeitando-se a si mesmo, a ouvir o que não quer.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Dominador

A frase balbuciante, repleta de consciência, superou o alarido da pizzaria. Estavam sentados no fundo, em uma confraternização familiar. A velha senhora, gestos lentos, pediu que ele se aproximasse. E sussurrou: “Aproveite enquanto você é jovem”.
Já com 40, ele até vinha pensando sobre isso ultimamente. E quando ela continuou a lhe falar, lembrando que o tio dele não gostava quando ele batia o saleiro na mesa, uma sensação o envolveu. Tempo. Era uma época em que o tempo parecia ser infinito, em que ele se sentia no domínio das ações. A infância e suas peraltices cheia de sonhos nos trazem essa impressão.
O tempo nos modela. No início, achamos que o dominamos. No fim temos a certeza de que ele nos domina. Como um sábio que coordena a vida, ele dá a cada um a capacidade de aceitá-lo de acordo com as possibilidades do momento. Já não podia cometer as extravagâncias de outrora. Já não seria mais astronauta, tampouco presidente do Brasil. Nem teria mais os milhões de amigos que ouvia na infância. Seu mundo se reduzira. Seus dias se consumiram nos instantes, sua vida se misturou com o tempo. E muitos dos seus sonhos se transformaram em lembrança, uma marca do tempo. Uma prova em nós do que ele foi, de como ele passou. Lindas paisagens que imaginávamos percorrer agora estão introjetadas em nós, na arte do tempo de metabolizar a esperança e a saudade, tornando-as um alimento que corre nas nossas veias até a última batida do nosso coração.