segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sinais

Na vastidão de Marte há uma atmosfera de nostalgia. A cordilheira de Vales Marineris tem 4 mil quilômetros de comprimento. Há bilhões de anos devia observar, imponente, motoristas-pilotos conduzindo suas naves pelas cidades, embarcações cortando os vales em rios caudalosos, dois velhinhos marcianos, sentados no banco de uma praça, lendo a última edição de O Marciano e da Folha de Cydonia. Era uma noite vermelha, tranquila. Eles também achavam que tudo aquilo nunca iria acabar.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Leitor

Você que não me lê, tento entender sua preferência por perambular horas procurando geléia de mocotó nos supermercados. Seria por isso? Espero que não seja porque a fronteira bilateral marítima das duas Coréias está tensa e você se encolhe, deprimido porque guerras prosseguem. Você jovem, pode estar preocupado com a balada no sábado. Ou com o show do Hori. Pode também preferir ficar no quarto escutando o som que seu pai ouvia, Led Zeppelin ou Black Sabbath e seu rugido impetuoso.
A linda garota pode estar preocupada em saber se a blusa com gola boba que vai usar irá abafar. A senhora psicanalista, encimesmada em seus estudos, de certo prefere continuar mergulhada em sua rotina. O taxista que rompe o dia no asfalto urbano, coitado, nem tem tempo para computador. O professor precisa corrigir as provas do dia seguinte, o colega está preocupado com a bronca que levou. Enquanto isso, insisto em flutuar nas palavras que me alimentam, escrevendo para mim mesmo, renovando minha alma em desvãos de um mundo desligado de minhas ideias, desapegado de minhas carências.
É assim, minha intenção é me reciclar de frustrações desabafando no espaço em branco. Posso até transgredir, ninguém vai ler mesmo. Poderia escrever pesquiza com z, xingar quem eu quero, colocar os piores palavrões. Ressalto: colocar, não publicar, porque não tenho público, digo sem mágoas. Mas não faço nada disso porque tenho comprometimento comigo na conversa muda que só eu escuto.
Até me fortaleço nessa viagem solitária de apenas uma mão. Sem volta. Aventei a hipótese de que sou tão sincero nos meus textos, que a intensidade emocional, como uma carga elétrica, choca os que pensam em me ler antes mesmo de lerem. E os afasto, como faço com você, que não me lê.
Penso às vezes que você não me lê de propósito, para que eu finalmente entenda que meu outro eu é meu maior interlocutor. E perceba que escrevo para ele, alguém tão diferente. Outro dia no São Paulo e Palmeiras, um comentarista imaturo, do alto de sua sabedoria concreta, comentou que o São Paulo sabia o que queria. O Palmeiras nem tanto. As duas posturas falam de uma mesma pessoa, ao mesmo tempo. Eu também, ele também, você também sabe e não sabe o que quer. Descobri que um torcedor pode se projetar e se reconhecer também no adversário, nesse jogo de amor e ódio que é se olhar no espelho.
É, já estou falando demais, justamente porque sei que você não vai ler. Pode reparar, na maioria dos textos que escrevo, com a ilusão de que alcançará alguma retina ao acaso, sou mais contido. Desta vez deixei a ingenuidade de lado. Mesmo assim, me despeço, por hábito e educação. E mesmo assim continuarei insistindo. Voltarei daqui algumas horas. Ligarei o computador, pensarei em uma ideia e escreverei sem mais me preocupar que a mensagem na garrafa aporte em local acolhedor. A sua não leitura já me acolhe. Sou grato por isso. Até amanhã, desejo tudo de bom a você, que não me lê, não me compreende, não me vê.

Constelação

Cada gênio da bola tem seu estilo. Nilton Santos era sábio e correto. Didi reinava discreto. Zizinho era menino levado, Platini, refinado. Falcão desfilava elegante. Zico definia em um instante. Doutor Sócrates, intuitivo e cerebral. Rivellino explodia, temperamental. Mágico era o Garrincha com sua espontaneidade. Zidane encarnava a seriedade. Mesmo sem fraque, Van Basten parecia maestro, de verdade. Gullit tinha um lado selvagem. Heleno fazia muita bobagem. Rijkaard era tático, o jogo de Cruyff era prático. O de Rivaldo, matemático. Beckenbauer tinha visão de comandante, Maldini dosava staccato com andante. Rummenigge esbanjava sutileza. Romário, esperteza. O jovem Ronaldo rasgava o campo como o vento, Ademir da Guia era lento. E os dois maiores, o que eram? Um pouco de tudo, cada um para o seu lado. Pelé era divino, Maradona, endiabrado.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

África

A humanidade surgiu na África. Lá despontaram várias espécies de hominídeos. O continente ainda abriga uma fauna repleta de leões, elefantes, rinocerontes, gorilas, antílopes, leopardos a interagirem por savanas, montanhas e planaltos.
Os negros de lá, escravizados, foram levados pelo mundo, espalhando sua cultura em cada respingo de sangue e lágrima. Do ventre desta dor surgiram o samba, a rumba, o candomblé em vários países. Enquanto isso, aquela imensidão ia empobrecendo graças à exploração predadora de europeus.
Entre eles os ingleses, os mesmos que trouxeram o futebol para o Brasil. Mas foi só a partir dos anos 30 que este esporte virou paixão no país. O negro passou a atuar nas equipes, nos tempos de profissionalismo, e isso foi decisivo.
De um lado os povos negros eram espoliados na África, de outro ajudavam com a magia de sua ginga a divulgar um esporte inglês que fez do Brasil seu maior campeão. A vida é mesmo uma irônica sequência de acontecimentos que um dia se encontram.
Como agora, quando essa loucura estará reunida na Copa do Mundo. Melhor lugar não há, a África e sua selva carregam o mesmo lado primitivo do homem projetado no futebol. O ódio e a ganância do dia-a-dia se misturam à intuição animal, capacidade permanente de se renovar com a criatividade enquanto a bola rola. A bola rola com o mundo, gira resvalando no remorso e na beleza do drible que desenha nas faces um sorriso de esperança. Assim cada grito de gol se confundirá com rugidos, grasnados, pios a ecoarem por vasto território, dentro e fora de nós.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Gradação

Um dia, durante longos anos de solteirice, falei para uma mulher. "Eu te pego com firmeza, eu te beijo com amor, eu te amo com ternura". Deu certo, foram palavras mágicas, que estavam esperando para sair. Ela se tornou minha esposa.

Zodíaco

A geometria de Santo André é única. Pela Av. Industrial, você imagina que está indo ao norte e de repente se vê no oeste, perto da Prestes Maia. Parece ser uma cidade feita de oásis, a surgirem subitamente como salvação. Primeiro confundem, depois se tornam referências mais fixas, a auxiliarem a cortar caminhos e pegar atalhos de satisfação. Mas bem que, no começo, associei a cidade a um dos seus bairros, composto por ruas com nome de signos: Peixes, Libra, do Zodíaco. E para mim fazia sentido. Cheguei até a acreditar que, a cada dia, cada logradouro mudava de lugar de acordo com o astral do município.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Tela

Mergulhei na tela do hardware, levado pelo risco que pulsa.
Na amplidão do espaço em branco, me senti em geleiras ocultas.
Até que encontrei um caminho, conduzido pelas palavras.
Segui escorregando na trilha, rodeado por mar de ondas bravas.
Cada vez que formava uma frase, parecia que o sol me aquecia.
Em trajetória curva e glacial mais forte me sentia.
Já em uma carruagem, por campos de gelo seguia.
Escrever é estar dentro da tela, que une encanto e magia.
Entrei então em fiordes, tentei rebuscar não deu certo.
Olhei perdido pra frente, na fria areia o deserto.
Refiz intrincado traçado, impulsionado pelo vento polar.
Subi elevadas montanhas, sem respirar, com pouco ar.
Em um momento da trama, me deparei com a aurora austral.
A vista linda e o céu limpo me ajudaram a chegar ao final.
Percebi que a noite brilhava, misturando sol e lua.
Cristais de gelo piscavam, como vaga-lumes na rua.
Olhei para fora da tela, vi meu rosto concentrado.
Reconheci o menino de outrora, olhos brilhantes animado.
Batucando o teclado de letras, sentiu-se realizado e leve
Desde criança sonhava poder viajar pela neve.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Ouro

Midas aceitou a dádiva de transformar em ouro tudo que tocasse. No início, exultou. No caminho de volta para casa, tocou em uma folha, que logo pendeu pesada e reluzente. Viu a pedra que segurava se transformar em jazida. Em casa, que simboliza a sua intimidade, exasperou-se. O encanto tirava a vida de tudo: da maçã que iria comer, do vinho que iria beber, da filha que tanto amava. Percebeu que fizera péssimo negócio induzido pela ganância. Conseguiu desfazer o feitiço e buscou refúgio nas florestas de Pã.
Nos cofres do Tio Patinhas, se acumulavam pedras preciosas, colares de diamantes, brilhantes, moedas, anéis de prata, barras de ouro. Uma fortuna, nunca utilizada. A necessidade de aumentar a quantia só existia para acalmar a ânsia incontida de seu dono. Cada nova riqueza era despejada nos porões de sua casa, onde reinava sua intimidade, após descer grandiosa escada da mansão isolada no alto de um morro.
Midas se afogou na ambição. Patinhas derreteu solitário, na inanição de sua mesquinhez. Difícil essa questão de lidar com o ouro que transborda em nós. Escondemos sorrisos, olhares e opiniões que brilham para não assustar o mundo e paralisá-lo com muita luz. E para não sermos roubados, deixamos tudo isso escondido embaixo das escadas sombrias de nossas moradas.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Escuro

A força tinha acabado, ele entrou em casa às escuras. Mal deu para assistir a novela. Era tomar banho frio e dormir. Lembrou-se porém do jogo decisivo que não poderia assistir. Mal acostumado, nem mais se dava conta de que outrora cada partida era um mistério a ser visualizado pelas narrações do rádio.
Não havia tantas transmissões televisivas. Hoje tudo pode ser visto instantaneamente. Nos tempos do videotape, os jogos eram reprisados uma única vez, nas noites de domingo. Veio a recordação de um jogo do Brasil, lá pelos anos 80, que ele ouviu no seu quarto escuro, simples, na companhia apenas de um armário de compensado, uma cama e um quadro da torcida corintiana feito por sua mãe.
O resultado de O x O, o mais execrado no futebol, pouco importou. Nem mesmo a atuação apagada do Sócrates, que ganhou apenas a nota 4 no dia seguinte no JT. Ficou apenas a emoção daquele momento. No silêncio, ouvia e imaginava o Morumbi lotado, cheio de frenesi nas arquibancadas, refletindo um cenário que esquentava a noite com o vapor brilhante dos holofotes. Era um gostoso contraste sentir-se de pijama, pronto para dormir em sua antiga cama de solteiro, acoplada na cabeceira a um baú cheio de pôsteres.
Vivia agora momento semelhante, apesar de a cama ser de casal. Ligou o radinho, ou melhor, o celular, em sua estação preferida. E se pôs a ouvir a partida como há anos, deixando o controle remoto de lado. Pela janela, dava para ver a lua cheia pendurada no tempo. Sua superfície prateada serviu como uma tela. Trazia imagens do jogo e do passado, nas ondas do rádio.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Salão

Um homem humilde entrou no salão aristocrático. O segurança o barrou. Ele estava com uma roupa amassada, terno encardido, sapato velho. Baixinho e moreno, passava a impressão, por seu olhar carente e volumoso, que se tratava de uma criança. Enquanto via o lustre central, com centenas de lâmpadas expelindo uma luz palaciana, apenas ouviu. “Queira se retirar, não está incluído na lista”. Até se sentia convidado, por ter namorado a nova faxineira da noiva, com quem rompera há pouco, não por vontade própria. Fora lá para entregar uma rosa, que parecia murchar cada vez que ia se afastando. O jeito era se conformar apenas com a vida de mascate. Nem pode retrucar com o “você sabe com quem está falando?” A única coisa que restou desta aventura foi uma lágrima teimosa, que demorou a se desfazer no piso envernizado.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Ser

O telefone tocou, o assessor de imprensa, do outro lado da linha, mal teve tempo de terminar o que falava. “Mande um e-mail, ok?”, cortou o jornalista. Ele mesmo criou para si e se envolveu em uma redoma frenética, onde tudo e nada interessam ao mesmo tempo. Tudo e nada se anulam, sempre em busca de algo mais, insaciável volúpia de parecer que se está trabalhando, de se dar uma importância para esquecer a própria desimportância. Tudo e nada se encontram no fato concreto estampado na manchete, sugando a subjetividade, o sentimento, o humanismo. Não sou ninguém. Apenas estou ocupado.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Bola

A bola pinga numa nuvem no céu, uma ponta de estrela a joga pra Terra, ela pula pula e vai pro jardim, resvala nas flores, esbarra no barro, desliza na grama, cai chocha na areia.
Um garoto de boné a chuta de leve, ela ganha impulso vai parar na lagoa. Um patinho a bica ela gira na água, cai num barco, é levada à praia, depois ao calçadão. Desvia-se dos carros, das pernas que correm.
Um viajante a põe na bagagem. Leva-a no navio, por continentes, até minha casa. Alguém de pé no berço, agarrado na grade, acompanha longa trajetória. Vê ela agora bem à sua frente. Dá três pulinhos e ergue os bracinhos. Grita extasiado, com voz de bebê. “Dá!”. Eu, como bom mensageiro, cumpro o papel. Entrego à criança o mundo em suas mãos.

domingo, 16 de maio de 2010

Geologia

Havia algo fendido dentro de mim, fragmentado como um cânyon. De profundidade quase infinita sem encontro com leito de rio. Sedimentos eram expostos à geologia social, nas camadas mais aparentes, nos afluentes que fluem águas rasas havia essas fendas, abertas em vales, cobertas pelo tecido suave e azulado do céu, estonteante em luz intensa, sem adornos, sem aconchego, em pedras duras desprotegidas, erodidas por raios corrosivos de sol escaldante e dor lancinante, sem flores, sem pássaros, sem água, sem sonho.
Um dia, alguém com seu cajado transformou essa fenda, como Moisés repartiu as águas do mar para a passagem de um povo. Eu então passei, encontrei paisagens arrebatadoras, realçadas pelo verde de cintilantes colinas, pela dança silenciosa do mar, pela luz rosada do entardecer. Vistas que apaziguaram a fúria seca de meu deserto interior.
Não estou mentindo. Essas palavras foram escritas com o doce gosto do néctar, o refresco do orvalho e a sombra úmida de uma árvore em torno de um lago. Boa noite céu estrelado, em seu veludo escuro só vejo a luz radiante das opalas e das esmeraldas. E o sorriso da lua minguante, como um risco num pálio de seda. Havia algo fendido dentro de mim que foi preenchido pelo que mais me assustava. O tempo, o amadurecimento, o mistério do universo.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Impotência

Richard Nixon foi uma amostra do ser humano nos ditos tempos modernos. Inseguro desde a infância, tentou superar fragilidades angariando o poder, manipulando, trabalhando sua imagem.
Seu aspecto de homem comum, pouco cativante em sua estatura mediana e semblante sério, o conduziu a grandes realizações pessoais. Tornou-se, com um discurso conservador, presidente da maior potência do mundo.
Mas isso não serviu para o seu bem-estar. Não conseguia suportar frustrações, queria agradar a todos. Implorava, em passeios a pé por Washington, para os jovens entenderem o porquê de não abandonar o governo do Vietnã do Sul e insistir em uma paz com honra. Mal compreendido, era visto como patético.
Buscava a todo instante mover moinhos de vento para preencher imensas crateras interiores. Paranóico, exigia de seus assessores monitoração permanente da mídia. Ligava para Kissinger em plena madrugada perguntando se tinha feito um bom discurso.
Fez a aproximação com a China e com a União Soviética para se mostrar um estadista. Queria sim o bem dos Estados Unidos, atento como poucos à realidade mundial. Mas acima de tudo queria encontrar uma nova mãe, uma nova infância, talvez materializada no conceito de História. Por isso ansiava entrar para a História, alçar seu nome à nuvem da eternidade, na ilusão da onipotência dos fracos.
O primeiro-ministro inglês, Benjamin Disraeli, dizia no século XIX. "Um grande líder conhece a si mesmo e o seu tempo". Nixon conhecia muito bem o seu tempo. E, como a maioria de nós, sabia muito sobre si mesmo. Era isso que o desesperava.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Dentinhos

Aproximei-me do Secretário, um homem jovem, robusto e de óculos, para lhe dar o convite do lançamento do meu livro. Após ouvir os cumprimentos, um tanto automatizados pela função de ter de agradar a todos, ouvi uma frase conhecida. "Livro é como um filho, não"? Forçado a conveniências sociais, também enveredei pelo campo do artificialismo e respondi de pronto. "É, claro, é como um filho". Depois, sozinho, longe dos holofotes do saguão onde o encontrara, pude refletir sobre o dito de meu interlocutor. "Livro é como um filho". Entrei em casa, fui ao quarto do meu menino e o vi dormindo no berço, olhinhos fechados, imaginando apenas seus sorrisos diários expondo os dentinhos que, como ele, acabaram de nascer.
E senti algo muito mais intenso e altruísta do que sinto por meus escritos. Amar um filho é algo, ao mesmo tempo palpável, que dói no corpo, e transcedental, que mexe com a alma. O apego a um livro é mais egoísta, uma espécie de desabafo criativo, uma transformação das próprias fraquezas expurgando-as e se purificando. Inicialmente, é bom apenas para seu autor. Se gostarem ou não, pouco importa. O destino do meu filho, no entanto, certamente influirá no destino de minha vida. De minhas palavras, dos meus livros. Só aceito a comparação entre filho e livro sob um enfoque. O de que o meu filho foi o livro mais lindo que eu já escrevi.

sábado, 8 de maio de 2010

Candango

Em Brasília, o clima era ameno, com chuvas esparsas. De cima do hotel, na cobertura, ele avistou, ao longe, bem no horizonte do cerrado um emaranhado de prédios. Coisa de outro mundo, parecia uma Nova York incrustrada no planalto, cercada de terra e mata por todos os lados. O nome do local era Águas Claras, uma das muitas cidades-satélites. Do outro lado, o início. O Congresso Nacional, com sua arquitetura ousada e sensível. Lúcio Costa projetou a cidade em uma golfada de intuição. Trabalho de lampejo, traços da inspiração. Asa de avião, em dois eixos, monumental e residencial, que levantaram vôo para a história, para além daquela massa de edifícios solitária. Sonho realizado na vastidão sem limites. Depois dizem que foram os americanos os primeiros a chegarem à Lua.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Ventania

Dizem que às portas da morte o homem revê cenas de sua vida. Com ele não foi bem assim. Acabara de sair da sessão de análise. Lá embaixo, na garagem externa, se deparou com o céu e os prédios por trás do muro. O sol brilhava, o azul resplandecia. A música que ouvia no rádio era do Edward Maia, Stereo Love. Em um trecho ouviu a frase "I don´t wanna be another one" e a acolheu.
Fechou os olhos, sentiu o vento no rosto. Foi tão intenso que o vento pareceu entrar por seus poros e, em seu interior, dar movimento à sua existência. Em sopros constantes foi trazendo imagens de todos com quem convivia, mais ou menos em uma sequencia decrescente.
Viu o rosto familiar de uns, o olhar emblemático de outros, o cenho franzido de alguns que passaram. Todos no entanto, movidos pelo ar tranquilizador, eram vistos com gratidão e amor pelo papel que fizeram, bom ou mau. E as faces foram se multiplicando em sua memória livre, inspiradas pela música e pelo ar que ventilava seu peito. Tios, amigos, colegas, chefes, de agora ou de antes, amores, cenas, tapas, lágrimas, filhos, dores, sorrisos, dissabores, jogos, viagens, até os esquecimentos. Redemoinho de vivências que o levou até a tenra infância, daí ao feto que já foi, ao ventre que habitou. Lá também ventava gostoso, como agora. Ele abriu os olhos para o dia que explodia em luz. E se sentiu nascendo de novo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Conversas

Não consigo bater-papo
Destes que falam alto
Destes com tom contralto
Social à beira do asfalto
No vazio de concreto puro
Impuro em seu sentido opaco
Lotado de vácuo, másculo, mácula
Que agride a alma, e fere a palma da mão aberta
Sensível, a expor um pedido, de espera, de respiro, pera, pera
Palmas expostas aos desígnios da hipocrisia humana,
Crueldade voraz, cheia de pressa, não espera, não espera

domingo, 2 de maio de 2010

Encontro

Conheceram-se havia poucas horas. Ele branco, ela, negra. Os olhos grandes femininos contracenavam em harmonia com os cabelos que escorriam pelos ombros macios. Mundos distintos se encontravam naqueles lençois. Quarto escuro, aconchegante, de onde a madrugada e seus sons longínquos, à beira da estrada, transbordavam. Às vezes, um barulho de carro cortava o silêncio do motel. De repente ele pediu para que ela virasse. Ela lhe desferiu um olhar doce. “Você vai me tratar mal? Não me trate mal, tá?” Ele disse que não. Aquele medo do desamparo o envolveu. Os mundos se encontraram na condição humana, para nunca mais se verem. Sentiu como se uma flor despedaçasse dentro dele. E sussurrasse: Bem me quer, mal me quer.