sábado, 26 de dezembro de 2015

Surfe

A notícia sobre a morte da Rita Lee chocou o menino naquela manhã em Santos. Soube no apartamento, antes de ir para a praia com os pais e os tios. Estava aprendendo a surfar sobre a velha prancha gigante de isopor, que ganhara na semana anterior.Temeu que a notícia o deixasse abalado a ponto de não conseguir se concentrar na estreia. Ele adorava a cantora ousada, cujas músicas foram a trilha de sua rotina de férias.A prancha era rosada e ampla, quase do tamanho de uma oficial. Seu interesse em se colocar de pé sobre ela se deveu a dois motivos: primeiro, porque ele estava cansado de sair do mar com a pele toda irritada por causa do atrito de seu corpo com a superfície, em breves experiências anteriores.Depois, era a forma com que ele via aqueles jovens espertos, de cabelos longos, peles douradas, bermudões e frases descoladas, trocando o você por tu, se equilibrarem em pedaços de acrílico para superar o mar.Ele ficava espantado ao ver as silhuetas, à distância, funcionarem como sombras divinas de pequenos reis do mar se destacando na linha do horizonte. Tinha a certeza de que se equilibrar na água era como se equilibrar na vida. E saber, com calma, paciência e auto-controle, não se afogar nas ondulações do dia-a-dia.Já na praia, quando ele caminhava pelos guarda-sóis em direção ao mar, recebeu um estímulo enquanto pensava na triste notícia. Um homem, pra agradar-lhe, disse: "Ô garoto, o mar tá bom, você vai fazer a festa..." Era fim de ano e a música "a festa é sua, hoje a festa é nossa", que ele ouvia em sua TV Philco preto e branco, à beira da cama, ficou em sua mente. Ele se sentiu orgulhoso, incluído. Correndo com ela na mão, pensou: "ser surfista é isso". Aventurou-se, mesmo que não tivesse ninguém para ajudá-lo, nem ensiná-lo. Tentava, tentava, até desistir e voltar para a barraca, para desabafar suas mágoas na delícia de uma queijadinha.  E no sonho de um dia conseguir fazer a festa...Somente vários dias depois, soube que a notícia da morte da cantora era falsa. Já tinha trocado o surfe pelo jogo de bola. Talvez descrente de que pudesse se manter de pé no mar. Rendido ao boato de que não poderia se segurar diante das incertezas, das inseguranças, das mentiras alheias. O que ele não sabia, porém, é que as braçadas iniciais já haviam sido dadas. Foram as primeiras aulas de como se deve surfar a cada dia sobre os boatos da vida, tão espalhados em um mundo frenético de indiferença e de aparências nas redes sociais. Hoje eles são ainda mais rápidos. Por isso virou um surfista dos bons. Mesmo sem nunca mais ter subido em uma prancha.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Tratamento

Um primeiro diz: "bagunceiro é você!". E age: Tum, poh!!!. Outro desabafa: "você é um banana e não é guarda da urna!" E ouve a resposta do colega: "banana é você, banana é você!" Hoje é tudo você, você, você! Não se usa nem mais Vossa Excelência para xingar. Esses deputados estão mesmo muito mal-educados...

Modernidade

O moderno vive em renascimento, para se tornar pós-moderno e depois renascer, contemporâneo.

Maledicência

Falar mal de alguém pelas costas é uma forma, ainda que indireta, de se fazer bullying.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Soldado

Senti-me um palestino sob suspeita. O segurança da escola era um israelense bastante seguro de suas convicções. Como são tantos formados em um clima de desconfiança e sob uma armadura de certezas e praticidade. Isso é assim, aquilo é assado...O olhar duro sempre me perseguia no momento em que eu buscava o meu filho no portão. Talvez se irritava com meu estilo um pouco desajeitado, com alguns questionamentos ingênuos, que podem significar um desvio na conduta rígida em que ele foi moldado. Ele gostava de encontrar uma acusação sutil para mostrar sua razão, baseada em convicções que pareciam límpidas em sua mente. Era, no fundo, um conflito conceitual. Acusava-me de demorar para entrar com o meu menino no carro. E eu, esbaforido, via aquele homem de blusão solto, calça larga e tênis táticos, de borracha, se aproximar, com o rádio na mão. Enquanto isso, buscava quebrar recordes mundiais nessa modalidade, colocava rapidamente a criança,  jogava a mochila,  fechava a porta com precisão, dava a partida e...vinha ele, antes de eu acelerar, dizer que eu estava demorando, que a fila tinha de andar. Sem um pingo de reconhecimento. Uma vez, busquei uma trégua, falando sobre definições religiosas, mas ele, como sempre, foi duro. Com olhar de aço, confirmando o estilo militar dos cabelos raspados nas laterais, tentou esvaziar o que eu falava. E disse: “eu já sabia disso, no exército os soldados costumam brindar dessa maneira”. Não me dava moleza. Via-se guardião da verdade humana, de forma simplista. Imaginei que em algumas vezes soldados israelenses, no direito de Israel de se proteger, podem tratar assim alguns palestinos, antevendo neles a desordem e, com esse conceito, sentindo-se com o dever de expulsar, de rechaçar, de dizer que sabiam como os outros eram e por isso agiam dessa maneira. Até que, outro dia, quando deixei o carro para ir ao banheiro no hall da escola, o flagrei na volta em frente ao meu carro. O horário da saída, por alguns minutos, ainda não havia chegado. Era permitido estar ali estacionado. Mas ele já formara sua sentença. Imaginou que eu deixara o veículo lá, subversivo, sem dar a mínima para a fila que se formava atrás. Mil afirmações se multiplicavam em sua cabeça, enquanto “secava” o carro, me recriminando por eu estar longe. Sem perceber que eu voltara, com o meu pequeno. Bem ao seu lado, bem antes do tempo. Observando-o, só esperando ele sair para que eu pudesse entrar. Foi doloroso constatar sua surpresa ao me ver. Um sorriso amarelo se desenhou por trás daquele rosto outrora imperturbável. Ele corou. Um pouco, mas corou. Senti compaixão por aquele rubor. Quem era ele? Com quem morava? Sobre o que conversava? O que teria perdido por aí na vida? Quem guardava no porta-retratos de sua cabeceira? Pensei que ele poderia amar a noite e se lembrar de algo triste com as chicotadas dos raios de sol. Ou o contrário. Emergiu a fragilidade das dúvidas que ele tanto buscava ofuscar em seu método pragmático. Intuí a cultura de quem tem medo de ser atacado. E precisa se mostrar imperturbável. Descobri que, por mais treinado, ele poderia ter pânico, que sentia frio, que sentia fome. Que sentia um vazio em vários momentos. E que não encontrava técnica para resolver isso. Pela primeira vez, o peguei desarmado. Senti-me um palestino sob suspeita, que escapa por pouco. No justo momento em que se antecipa a uma abordagem belicosa. E fiquei satisfeito. Fosse mesmo eu um palestino, e o soldado me olhasse revelando sua alma,  teria encontrado a chave que resolveria tudo. Em vez de guerrear com ele, eu lhe daria o meu abraço.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Caminhada

Traição. Mesquinhez. Falta de educação. Egoísmo. O vencedor é aquele que não se abala com os absurdos do dia-a-dia. Sem, no entanto, aderir a eles.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Blindados

Enquanto eu dirigia, ouvia uma música no rádio quando um movimento brusco me deteve. Brequei para não ser esmagado, na lateral, por aquela massa de aço gigantesca, que passou como se nada tivesse acontecido.
Tive a mesma sensação de um marinheiro, em uma humilde embarcação, no momento antes dela ser abalroada por uma baleia em disparada.
Mas a sina e o susto continuaram a me perseguir. Criaturas assim aparecem à minha frente nos momentos mais inesperados.
Atravessei a rua, após se certificar-me de que o farol de pedestres estava aberto, quando, de repente, outro objeto metálico gigantesco quase me atropela, ao deixar a vaga em que estava estacionado.
Lá no alto do volante, vi Noé em sua arca. E acima dos mortais que se afogavam no asfalto, nem menção a qualquer pedido de desculpas. Nem um ressoante “tan-tan” da buzina, como um navio que apita na noite silenciosa dando sinal de vida e humanismo. O piloto da nave espacial continuou enfurnado em sua cabine blindada.
A definição de utilitário para o SUV, do inglês, "Sport Utility Vehicle", tem sido distorcida nestes tempos de modismos, em que a tentativa de aparentar força e poder ditam regras sociais.
Em vez de ser usado para levar famílias numerosas, de maneira plácida e educada, o meio de transporte se tornou símbolo de ostentação, com um aspecto de grandiosidade em que fica impossível esconder o desejo de ensejar superioridade.
Não é raro sair destes tanques de luxo, nos estacionamentos, apenas uma jovem de aspecto frágil, com roupas da moda e cabelos lisos, deixando atônitos os manobristas. A expectativa deles era ver, por de trás do vidro escuro com Insulfilm, sair alguém com aparência bem mais agressiva, talvez três ou quatro brutamontes que mal conseguiriam preencher o espaço do veículo.
Claro que não falo de todos que utilizam esses carrões pelas ruas esburacadas das capitais brasileiras. Mas falo de muitos.
Quantas não são as vítimas que já se sentiram agredidas por uma luz possante vinda na pista da esquerda, prometendo estraçalhar quem não sair da frente? Muitas vezes parecem blindados de guerra. A maioria inclusive deriva destes jipes.
E é dentro da guerra urbana que eles servem, como instrumentos de um conflito humano estacionado na ilusão da onipotência. Na ânsia em se mostrar forte, grande, vitorioso. Estes veículos combatem mais do que trafegam, obcecados por impor alguma mensagem de grandeza. Querem a todo custo provar que o porto seguro está lá em cima, na cabine. O ronco porém é menor do que dores que transitam escondidas.
Motorista e carro parecem uma coisa só. Os contornos poderosos do aço, a tração nas quatro rodas, as longas fileiras de banco, a possibilidade de andar em terreno on e off-road são partes integrantes de uma carcaça dura e de uma alma frágil.
Ó, benditas camionetes que nos conduzem por essa embriaguez material! Os danos de seus impactos sobre os outros são duplos: destroem mais, na forma de colisão e, aos mais inseguros, de opressão. Além de, espaçosos, prejudicarem ainda mais um trânsito em tempos de ciclovias. Em vez do cuidado, a ameaça em cada fechada.
O puro conforto e o prazer em dirigir batem de frente com a falta de conforto emocional. O labirinto de ruas e de angústia se frustra a cada acelerada potente.
Repito que não me refiro a todos. Há os que dirigem enraizados em motivos profundos: um desejo do falecido pai, uma realização verdadeira ou a consciência da ostentação, mas sem o objetivo de jogar na cara a superioridade sobre os que estão “lá embaixo”. São os que vão além da explicação “a vida é minha eu faço o que quero”. De qualquer maneira, sei que haverá oposição, buzinaço, panelaço ou o que quer que seja. E se alguém que dirige esses turbos se ofendeu, só peço uma coisa: calma! Eu lhe dou passagem.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Amor

Tentar amar já é amar.

Aluno

Na mesma rua, à noite, parou em frente ao muro da escola. Voltava sozinho de uma compra no shopping. Momento tranquilo. Fim de domingo, praticamente a única oportunidade de sentir uma cidade mais calma e vazia nos dias atuais.
Ouvia uma velha música dos anos 70, fazendo relembrar passagens de quando estava na escola.
Com seu filho, revive aquela época em que os pais, em frente a um portão semelhante, aguardavam as crianças saírem em alarido frenético, enquanto o sorveteiro era cercado por uma legião ávida por doces.
Hoje não tem sorveteiro. Mas ainda tem porteiro e a mesma febre infantil em busca de novidades.
As crianças saem em disparada, no pátio da escola, brincando de roda, rodando as malas, tropeçando, ouvindo recomendações de cuidado.
Correm de um lado para o outro enquanto o segurança, sim, hoje é necessário, chama uma a uma pelo microfone, assim que chega um responsável para buscá-la.
Em frente àquele portão, no cenário escuro, ele revivia tudo aquilo em sua mente. A lembrança da voz no microfone vinha metálica, parecia ressoar pelos contornos da noite nublada, carregada de mistério.
A árvore dentro da escola balançava com a brisa refrescante, como se acenasse para ele avisando que estava lá, de folga, guardiã à espera da gritaria do dia seguinte.
Os acordes da música o faziam viajar naquele palco conhecido, agora adormecido e vazio. Na frente da porta sempre repleta, o silêncio causou-lhe um misto de estranheza e encanto.
Foi tomado por uma sensação que o levava a vivenciar aquele dia-a-dia agitado. No papel de espectador de si mesmo.
Assistia a um replay de sua rotina, como uma partida de futebol reprisada no final do dia, quando detalhes podem ser melhor percebidos.
O farol da esquina abriu. E desfez o devaneio. Precisava acordar cedo para, dali a poucas horas, voltar ao mesmo local, trazendo o seu filho e retomando o ciclo da correria, no relógio do mundo, na panela que ferve e depois se assenta.
Sentiu-se reconfortado com a experiência e iria utilizá-la quando não pudesse segurar as horas e permanecer se alimentando eternamente daquele frenesi, o mesmo de seus dias de colégio.
Acabara de ganhar um presente: a escola à noite. Em sua nova fase de aluno. Onde, sempre que quisesse, iria para refletir. Para recordar. Para sentir o alarido, compensando o tempo que escorria por suas mãos e que ele não podia segurar.  Foi embora enquanto a árvore, lá do fundo da escuridão, ainda balançava com o vento. Continuava lhe dizendo até amanhã.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Caminhos

Siga.
Prossiga.
Invente.
Reflita.
Escute.
Experimente.
Esqueça o homem que é a sua sombra.
Ele mente.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Valsa

Nem mesmo dentro do parque a sensação de vazio urbano deixou de acompanhá-lo. Não era porque corriam, trotavam, andavam, de shorts, camisetas e tênis, com aspectos mais leves, que as pessoas lhes transmitiam uma abertura maior à amplitude da vida.
Isso era algo que tinha de vir de dentro dele. E de cada um. E quando acontece, tudo muda. Inclusive o jeito de olharmos as pessoas. E, ao mesmo tempo, o jeito de as pessoas nos olharem. Prova disso foi quando, enquanto corria, vislumbrou algo novo, além da ilusão de poder e da felicidade encomendada.
Acabara de percorrer o primeiro trecho do parque e se deparou com a vista de um imenso lago e dos prédios ao fundo formando um horizonte urbano. Ouvia uma música doce, estimulante que acendia sua imaginação. O sol luzia com vigor e seu brilho acariciava a superfície da água. A mistura dava um movimento cintilante à cena.
Sobre a água, cisnes negros, brancos e cinzentos deslizavam tranquilos, passando uns pelos outros em movimentos de balé harmônico. Um espetáculo colorido definiu um novo aspecto à cidade, como se ela fosse apenas um complemento do que ele via naquele lago.
Agora sim a essência da vida havia se apresentado em seu mais nobre traje, ainda que de forma silenciosa para ele. Ainda que por causa do impulso da serotonina e da melodia agradável que ouvia no i-pod.
Sentiu no momento o pulsar de uma alegria, o núcleo dos desejos contemporâneos reunidos naquelas águas plácidas, cercadas de um agito abafado e de buzinadas tão distantes que mais pareciam o choro tímido de uma criança.
Teve ele a impressão de estar percorrendo um tapete cintilante como as águas. Os outros já não lhe pareciam emburrados e fúteis. Viraram cisnes elegantes, educados, doces e solidários, percorrendo caminhos semelhantes, mas sem atropelos.
Emergiu em sua visão um outro ritmo para essa rotina frenética que esquenta o asfalto, feita de pessoas suadas, enfeitadas e emburradas, fria apenas na aparência. Rotina medrosa, desconfiada, que no fundo esconde a nossa carência.
Mas no contorno das águas, rodeadas de árvores, São Paulo estava se transformando diante dele. A insanidade deu lugar à suavidade. As buzinadas já não incomodavam. Nem panelaços. O que importava era que, passo a passo, sentiu-se unido a todos em um caminho único, nesta corrida sem fim.
Uma nova cidade se apresentou diante de seus olhos perplexos, enquanto seu corpo se movia quase automaticamente. Linda como uma noiva, sem violências, sem xingamentos, sem truques. Sem argumentos pelo proveito próprio. Com flores explodindo nas plantas. Repletas de árvores que davam aconchego às passadas ritmadas de cada um. Harmônica, como uma valsa de Tchaikóvsky. Brilhante, como um Lago dos Cisnes.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Ignorância

Todo o conhecimento humano pouco vale se não houver conhecimento sobre o humano.

Presença

Deus está menos presente no ritual de um religioso do que em um coração puro.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Pertencimento

Casa, carro, ações na bolsa, dinheiro no banco. Tudo o que um homem tem neste mundo é emprestado. A única coisa que lhe pertence é a sua própria história.

Sabedoria

Um bom jornalista é aquele que vai além dos fatos.

Competência

Um bom jornalista é aquele faz uma boa matéria sobre um assunto que ele não conhece.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Prazer

Uma reunião de taxistas em frente a uma garagem aberta chamou minha atenção naquela tarde ensolarada. A rua, normalmente tranquila, ficou mais movimentada, com um certo congestionamento que logo se desfazia quando os motoristas deixavam o local.

Estavam lá provavelmente para renovar algum certificado. E enquanto esperavam, aglomerados, iam colocando o papo em dia.  Fui passando de carro, lentamente, quando vi de relance dois deles conversando sobre algo e logo se despedindo.

Um ia entrar no pátio, o outro ia seguir para o batente. Era um contato amistoso, afetuoso, um vínculo que se mostrava de longa data naquela relação de trabalho.

Encostei rente à guia rebaixada, só para observar os dois senhores. Semelhantes. Simples. Cabelos grisalhos, óculos clássicos e camisas sociais de manga curta. Tinham seus próprios interesses, seus pensamentos, sua filosofia embebida pelo convívio popular. Mas, mais do que tudo, não me conheciam.

Nem sabiam da minha existência. Viviam completamente independentes daquilo que eu fazia, do modo como eu agia, do que me fazia alegre ou triste.

Então me veio uma sensação inédita de minha insignificância no mundo. Como eles, bilhões de pessoas viviam ao largo da minha presença. E aquela breve conversa dos dois amigos taxistas simbolizou esta situação, um tanto dolorida.

Me veio a certeza de que meus sonhos são tão grandes, mas não os alcançavam. De que a ponta de meus valores éticos nem roçava nas suas ideias. Eles existiam completamente alheios a todas as minhas convicções, sem conhecerem o meu jeito de falar, sem admirarem as minhas palavras, sem interesse no meu passado, sem expectativa no meu futuro.

Viviam na total ignorância a meu respeito, nem imaginando se entendo ou não de futebol, de política, de manifestação, sem saberem do meu amor paternal, nem dos textos que escrevo. E sem lamentarem a minha ausência.

Imaginei que poderia aparecer na frente deles, falar algo, fazer alguma brincadeira, para quebrar esta distância para sempre. Nunca mais ficariam sem nunca terem me visto. Por isso, por dignidade, fui. Enquanto caminhava, quase desisti, esperando uma reação medieval tão comum.

Mas continuei, na tentativa, ainda que descrente, de diminuir pelo menos um tantiquinho assim a minha inexistência.

Ao me verem, porém, os dois estamparam um sorriso universal de acolhimento e, por que não dizer, de reconhecimento. E falaram três ou quatro frases cordiais dirigidas, na convenção fraternal de um encontro.

Como representantes da entidade, me disseram: fique à vontade, procura alguém?  Respondi, elogiando a união da classe. Fiz minha voz chegar a eles para sempre e me despedi, com o velho aperto de mão.

Na volta ao carro, driblando o trânsito, senti que carregava algo transformador. Era uma vontade de repetir a cena com cada um dos bilhões habitantes deste planeta, buscando o gesto simples da integração, um pouco difícil de se ver hoje em dia.

Veio um desejo de cumprimentar a todos, do Nepal ao Havaí, como uma missão de Forrest Gump dos apertos de mão.

Meu objetivo tinha ido além. Atirei em uma árvore, colhi frutos em outra, unificando reinos, vencendo a tal voluptosidade medieval do Game of Thrones do nosso dia-a-dia.

Percebi que, na verdade, de alguma maneira, todos nós nos conhecemos. Mesmo sem, na imensa maioria das vezes, nunca termos sido apresentados um ao outro.

domingo, 22 de março de 2015

Imaginário

Há alguma coisa que fica em silêncio quando um homem dirige na marginal e do outro lado vê os prédios iluminados na profunda noite. Já já ele vai chegar em casa e dormir. E quando o vento sussurra um segredo em seu ouvido, com frases mudas, como balbucios em movimento, este silêncio está presente. Há alguma coisa que fica em silêncio quando pessoas se preparam para uma festa, para participarem coloridas e maquiadas do Carnaval, que logo virá, e irá. A mesma coisa fica em silêncio quando se pensa em como será a festa de Natal, na reunião com a família, na troca de presentes, na ânsia de encontros e compromissos que vão se aproximando. E já se despedindo. Ela fica em silêncio no cumprimento entre amigos, no primeiro dia da escola, na lembrança de uma obrigação, no aperto de mãos de uma reunião, na pergunta para onde você vai, em frente ao Conjunto Nacional, enquanto carros e transeuntes passam, de lá, pra cá, no tique e taque pela manhã que se esvai. Silêncio que permanece no momento da cobrança de um pênalti, no limiar da alegria e da tristeza, no prazer de desfrutar os  cinemas, cafés, restaurantes e lojas de luxo na florida Champs-Elysées, até que, já no quarto de hotel, o passeio se torne recordação, como a infância. E o silêncio permanece inalterado, na função de testemunha ocular da mulher se olhando no espelho. Ela dá a última retocada de charme para sair de casa e enfrentar o desafio da vida em seu corpo escultural, que também é apreciado sob os mesmos olhares contornados de silêncio. Há alguma coisa que fica em silêncio quando um homem escreve sobre sentimentos buscando palavras a cada instante, no espaço, no ato, nas armadilhas do invisível. E permanece intacto na leitura de um livro que logo terminará, na dança do palco instantes antes de a cortina se fechar, enquanto a plateia aplaude enaltecida, já se levantando acompanhada por ele e por rastros de sorriso que permanecerão preenchendo as poltronas por algumas horas. Há alguma coisa que fica em silêncio no sonho lindo que se apagou de nossa memória, mas lateja alegria inexplicável em nosso coração pelo resto do dia. Ou no acompanhar diário do crescimento dos filhos, na feição que evolui em gradação, até se tornarem adultos. Nos casamentos que amadurecem, dia após dia, na cama que testemunha encontros e desencontros, a mesma que vê o bom dia e está lá no boa noite. Também está presente antes e depois da tempestade ou no momento abstrato em que Goodbye Yellow Brick Road virou flashback. Essa coisa existe para abstrairmos que o presente não existe, nesta roda desenfreada de bilionésimos de segundos impossíveis de serem contados. Tampouco paralisados. Este silêncio é como uma luz imortal que nos segue, nos autorizando a viver. Nos dá a chance de planejar porções do tempo com a ilusão de serem estáticas. Silêncio generoso, por nos dar brecha para a encenação dessa ilusão real e imprescindível para a nossa sanidade. E que nos acena com o próximo Carnaval, que em breve será passado; a próxima reunião, depois ultrapassada por outra; o próximo encontro, em um sopro página de nossa história, esquecida ou não. No fundo, escravos de datas e esperanças que se seguem, todos sabem que ele existe. E o reverenciam. Mas, como ele, silenciam diante do seu tempo imaginário, presos ao cortejo de sua maravilha molecular, feita de incessantes explosões de partículas e pensamentos. Também este colunista sabe disso, teimosamente tentando denunciar o já sabido, buscando em vão controlar este andar incontrolável. E o que é esse silêncio? Uma alma? Uma fábula? Um pulsar? Uma reza? Nosso desejo? O destino? Tudo isso, mais todas as palavras e todas as galáxias e todos os silêncios. Silêncio quântico, poderoso, onipresente. Inexplicável e infinitamente universal. Tão bondoso, por autorizar todos esses momentos fluidos a passarem tão rápido e, mesmo assim, ficarem eternos, e em silêncio, pelo menos dentro de nós. Imutável, é ele quem provoca a nossa mudança. E não há como dar nada em troca. Nem precisa. Ele apenas se basta, a cada dia, com a sua continuidade e a nossa transformação.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Atemporais

O passado é um acúmulo. O futuro, infinito. O presente? Não existe.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Sincero

Queria lhe mostrar minha verdade verdadeira. Só consigo metade, a verdade mentirosa.Também escapa a mentira verdadeira, pelas brechas da minha prosa. E cai no pranto da Louis Vuitton, no traje de gala, da sua mentira saborosa.Mas mentirosa.