quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Peixinho

 Um dia comprei um aquário maior para o Fafinho, o peixinho-beta da família. Ele estava acostumado com sua beteira apertada, em forma de octógono, cujos adornos eram apenas algumas pedrinhas no fundo e uma pequena alga vermelha. No início ele estranhou a amplitude da nova casa. Havia mais algas. As plantas eram quase uma floresta para ele, no losango bem maior - pelo menos o triplo do anterior. Às vezes eu o procurava e, com muito esforço, via o lindo azulado de sua superfície brilhar por trás de uma das plantinhas onde ele repousava. Ele sempre foi muito sensível. Para se manifestar e também para entender o que acontecia ao seu redor. Eu costumava conversar com ele sobre várias questões, vendo-o, lá de dentro, balançar a cauda freneticamente. — Fafinho, Fafinho, peguei um trânsito hoje...Mas tem de ter paciência, né? Então eu batia levemente o dedo no vidro, para ele festejar tal qual um cãozinho amestrado. Ele decifrava o motivo de minha presença. Ouriçava-se quando eu entrava na sala olhando para o aquário, ciente de que iria ver polvilhada a superfície da água com sua deliciosa ração.  Eu sentia ele se encher de satisfação cada vez que me via. Isso custou a acontecer. No início, escamoso, se esgueirava pelos becos do aquário cada vez que me aproximava. Queria ter certeza de que não se tratava de um predador. Depois, tendo a segurança de que sobrevivia, foi se acostumando com o ritmo da família. Chegou um momento em que ele nem se preocupava mais. Nem quando meus filhos jogavam bola, dentro do apartamento, ameaçando seu mundo com uma desavisada bolada. Ele parecia é empolgado. Apenas balançava as nadadeiras, feliz com a companhia das crianças. Fafinho viveu quase três anos em função desta alegria. Foi um grande exemplo de como afeto e harmonia, mesmo em relação às menores espécies do reino animal, tornam  a existência mais proveitosa e duradoura. Ele deu até mais do que teve em troca, acredito. Afinal,  apesar de todo o cuidado, nunca mudamos nossa rotina por causa dele. É verdade que, antes das viagens, minha preocupação sempre foi ter onde deixá-lo. Não queria fazê-lo viajar alguns quilômetros, nos solavancos do carro, até a casa de familiares. Às vezes isso aconteceu. E ele resistiu, porque, tenho certeza, sabia que iríamos voltar para pegá-lo. Um dia, antes de mais uma saída para o fim de semana, optei por deixá-lo sob os cuidados do zelador. Ele entraria duas vezes por dia para dar comida ao peixinho. Por um lapso, o moço exagerou na dose e, tudo indica, Fafinho se foi por causa disso. Voltamos na segunda e logo recebi a notícia. O aquário nem estava mais onde costumava. Evitei ficar chorando por causa de um peixe na frente de todo mundo. Ainda mais eu, pai de família. Não escondi a tristeza, mas me preocupei em não prejudicar a compreensão das crianças sobre a realidade da vida. Tudo passa. E temos de aguentar estas movimentações, bem mais oscilantes do que as águas tranquilas em que vive um peixinho. Às vezes vejo de relance o aquário em cima de um armário na área de serviços. Logo desvio o olhar. Mas a lembrança não escapa. O rack onde ele ficava, e até um barquinho de madeira que coloquei, remetendo o cenário a uma maquete do livro Moby Dick, continuam lá. Na rua, o trânsito se mantém pesado. As pessoas andam rápido, os anos se acumulam, assim como as contas, as obsessões, os afazeres, a pressa multiplicada pela ilusão das facilidades high tech. Então pergunto: o que significa hoje em dia o lamento pela perda de um peixinho-beta?  A única resposta, em meio à imensa concretude do mundo, vem no rastro de uma metáfora. Significa a mesma sensação do oceano, quando ele percebe, em sua também imensa superfície, o simples gotejar de uma lágrima.

Data

Algumas datas são marcantes para o comportamento de uma sociedade. A angústia em lidar com medos diante da fragilidade humana, dos reveses da vida e, por que não dizer, do mal, é capaz de colocar em uma efeméride a tentativa de digerir este dilema. Na maioria das vezes, esta tentativa é incompleta. Em vez de se libertar, o homem fica preso às tragédias, alimenta o seus receios em relação aos semelhantes, esfria perspectivas de um futuro que acolha estes temores e, por medo de mudar, adia novas alternativas de um mundo melhor. O 11 de setembro, quando ocorreram os atentados nos Estados Unidos, em 2001,é um exemplo. No judaísmo, há o Tishá BeAv (9 de Av, no calendário judaico), data que ficou marcada por lamentáveis acontecimentos com o povo judeu, como a destruição dos dois templos sagrados da Antiguidade. No cristianismo, a Paixão de Cristo também conta uma história em que a descrença na convivência humana se acentua, com o flagelo de um homem exemplar. O perigo é perpetuar esta memória para os outros dias, distorcer a rotina, como vem acontecendo, no embalo da simbologia da injustiça que estas histórias representam, as impregnando por toda a parte. O 11 de setembro está em nós quando olhares tristes tomam conta do metrô, ensimesmados em seu mundo por trás de um fone de ouvido. A lembrança destas datas acaba se tornando a celebração da indiferença, a prova de que temos mesmo de afastar o desconhecido, acalentar o luto, silenciar o canto da esperança. Temos um lado terrorista que se regozija permanentemente com a autoflagelação da humanidade e alimenta a falsa mensagem de que ele é a maior realidade. Seu enredo teatral repete a inscrição do Portal do Inferno, de Dante: Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança...O mundo está violento, o egoísmo se multiplica pelas cidades enlouquecidas. Mas se esquece do mais importante, nesse carrossel de fugas permanentes. Ao contrário do que pensaram os opressores, todos estes períodos trágicos resultaram no fortalecimento de uma causa maior, de uma fonte de vida inesgotável e indestrutível. Emergiu das atrocidades uma mensagem de amor e de confiança nos homens. O povo judeu ressurgiu após as mazelas passadas, assim como a mensagem pacificadora de Cristo sobrepujou pela eternidade aqueles que o repeliram no momento, sentindo-se, ilusoriamente, vitoriosos. A humanidade sobrevive há milênios, refazendo-se em ciclos de cada período terrível. Emergimos das Guerras Púnicas, de Júlio César, da Idade Média, das guerras mundiais, fazendo prevalecer um lado construtivo, que não deixa de ser divino justamente por ser humano. Tenho uma tia que nasceu em 11 de setembro. Ela é uma pessoa especial, gentil, sorridente, afetuosa. O amargo institucional da data não se identifica com a sua personalidade carinhosa. Nem o 11 de setembro de hoje é o mesmo de há 13 anos. A cada dia o mundo ressurge um pouco modificado e repleto de novidades, que muitas vezes os olhares tristes do metrô e a indiferença buscam ocultar de nossas percepções. Não quero me esquecer da tristeza das perdas que estes momentos trouxeram. Não quero deixar para lá, desconsiderando todo o sangue que correu pelo sopro da loucura e da insensatez. Não é isso. Quero apenas ir mais além. Continuar acordando todos os dias, enquanto puder, e ver preguiçosamente a manhã se descortinar sedutora pela janela. Quero deixar a luz do sol  invadir meu quarto, levantando a poeira de uma noite muitas vezes mal dormida e, após um bom café da manhã, acalmar meus pesadelos embebido na dádiva da respiração. Ter a oportunidade de me oxigenar, de purificar a alma com um banho de esperança. Depois, ligar a TV, ler o jornal ou pegar o telefone, ao som do alarido dos pássaros. Na data fatídica, dar um telefonema para a minha tia, com alegria. Para lhe dar parabéns, nesta data querida, e desejá-la um ótimo aniversário, um feliz 11 de setembro.