quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Paciência

Enquanto tua fúria evolui em erupção, recolho-me em um canto, perplexo. Vejo lascas de fogo chamuscarem minha alma e nada posso fazer. O calor da queimadura arde. Sufoco meu grito para evitar o pior. Torno-me uma locomotiva a vapor, exalando a fumaça da raiva, fruto de material orgânico que consome meus órgãos. Também fervo. Escuto blasfêmias infernais, gritos demoníacos se avolumam em minhas fantasias infantis.
Sinto-me sugado por um furacão de injúrias, triturado em um liquidificador de insultos, soterrado em uma mina escura. Vejo-me solitário em um deserto amplo. A secura de meus lábios começa a ser invadida por um gosto de fel a emergir de meu estômago. O coração palpita, minha visão é tomada pelo vermelho do ódio. Então me lembro do teu sorriso nos momentos de ternura. Intuo por trás de tua chama flamejante o olhar doce e companheiro nas festas de sábado. Ergo-me das trevas. Acima das nuvens enxergo o outro lado do teu tempo, a paisagem da tua cidade pacificada. Inspiro o aroma perfumado da tua essência de flores. E como viajante pelos teus segredos, decifro-os como frutos de tua carência, dos teus medos. Acabo por perdoar-te, já equilibrado em meu recanto adulto. E deixo a cólera passar, paciente, compadecido de tuas dores quase incuráveis, convicto das duas faces da tua natureza feminina.
Então, já assentado à beira de um riacho tranquilo, deito-me na relva, até que tu retornes, renovada, correndo para me abraçar por campos cintilantes. A tempestade passa. O feitiço se acaba. O ciclo termina. Por isso te espero, para sempre.

domingo, 24 de outubro de 2010

Internet

Enviou um e-mail falando de maneira afetuosa a um conhecido. Em outra mensagem, ressaltou a importância de uma atitude afetiva para outro colega. Comunicou, para várias pessoas, a existência de um blog que abordava questões humanas, que apresentava uma profundeza estranha às conversas rotineiras. Ninguém viu, nem respondeu. Pensava que o mundo da Internet, como se costuma dizer, servia para que as pessoas, por de trás das telas, pudessem se sentir mais livres para falar delas. Debates se sucederam para criticar a fuga da sociedade para dentro do computador. Isso, porém, se tornou um engano. O mundo virtual foge do contato afetivo assim como o mundo real. A ausência de respostas às mensagens que se desviam do corriqueiro mostram isso. O silêncio impera nesses casos. O ser humano internauta se cala da mesma maneira, tão temeroso quanto se apresentaria nas relações face a face. Não adiantou buscar a autoestima sonhando controlar o teclado, tampouco apertando o insert ou delete. Medos não são deletados facilmente. A Internet não serviu como esconderijo, muito menos como porto seguro. A Internet não poderia escapar da sombra de seu criador: o homem. Ela só apresentou ao mundo a legião dos “neomudos”.

sábado, 23 de outubro de 2010

Dilema

Sartre buscou definir o conceito de existência humana configurando a identidade a partir da consciência, que, do nada, entra em contato com as coisas do mundo. Derrida, Barthes e Foucault encontraram caminhos através dos descaminhos, desconstruindo textos e conceitos para aferir a sua essência verdadeira, filtrando-os das artimanhas do poder. Shakespeare criou toda uma trama, em Hamlet, para dramatizar este embate filosófico que se dá no interior dos homens todos os dias. De um lado, o ser, contra o não ser. Ambas as correntes se complementam. Ser ou não ser, eis a questão. Ser e não ser, eis a solução. Hipotética, diga-se de passagem.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Prima

Minha prima mais velha passou uma temporada na praia, com a minha família. Eram minhas férias escolares. Eu, no entanto, não deixava de pensar em uma menina de minha classe. Estava apaixonado. A garota passava férias perto de mim, mas nunca eu conseguia vê-la. Eram desses sentimentos juvenis que se tornam torturantes, nos arrebatam e nos deixam nas cordas bambas de nossa insegurança. Destacavam-se em minha prima a pele bronzeada, em harmonia com os cabelos lisos e castanhos. Sua beleza, porém, não me assustava. A voz suave, feminina, desta moça, que vivia o fim da adolescência, é que me acalmaram.
Naqueles dias, me confessava com ela, abria meu coração. Confiava em seu acolhimento e até hoje o tenho como verdadeiro. Depois, nunca mais conversamos com tanta profundidade.
O namoro com a menina nunca ocorreu. Talvez envergonhado pelo trauma, e por outros futuros, afastei-me da minha prima. Cansei-me de desabafar com outras pessoas não tão confiáveis.
Somente agora, passados muitos anos, pude me aproximar dela novamente, ainda com receio. Deixei-a me ver trocar a fralda de meu filho, no quarto de seus pais. Enquanto ela via a criança desnuda, de pernas para cima, senti-a tão próxima como outrora.
Tive vontade de desabafar sobre meus temores. Mas palavras de menino não caberiam mais em um adulto. Meu filho já se desnudara por mim. Se eu falasse algo, sabia que ela iria entender. Sua ternura era a mesma. Eu é que já não era.

Colônia

Eu era uma colônia de exploração. Por anos me vi enredado em uma cultura de extração de riquezas. Com poucos recursos, entrei no caos. Mergulhei em abismos insuperáveis. Quase sucumbi à falta de planejamento. Precisei mudar meu paradigma para sobreviver. Passei a cultivar plantações em locais apropriados. Em outros me industrializei. Encarei os tempos modernos sem me esquecer das tradições mais importantes. Depois me libertei da escravidão das minhas culpas. Permiti que cada órgão se desenvolvesse à sua maneira. Estimulei a atividade de um cérebro são e de um coração livre. Destinei toda a produção à formação de uma identidade. Transformei-me em uma colônia de povoamento. E dei meu grito de independência.

Gálapagos

Nunca deu muita atenção à pergunta "com quem gostaria de estar em uma ilha deserta?" Até o momento em que se viu solitário na ilha de Galápagos. Lugar inóspito aquele. Assustador. Ao seu redor, picos vulcânicos, praias desertas, animais exóticos, como na antiguidade. Tudo se mantinha como há cinco milhões de anos.
Sem alternativas, ele montou uma barraca com a lona que restou do navio. E lá ficou por anos. Fez fogueira, olhou o horizonte. Avistar um celular móvel com TV digital boiando sobre o mar transparente foi um milagre. Ainda maior quando conseguiu ligar o aparelho e sintonizar na TV do Equador.
Voltou à infância ao assistir as novelas que o marcaram, agora em outra linguagem: Baila Comigo; Pai Herói; Sétimo Sentido. Quando viu uma água-viva tentar abocanhá-lo sem sucesso, lembrou-se da trama com aquele nome. Em cada enredo havia vida, emoções, romances, beijos, personagens iluminados, em busca de objetivos, como se fossem reais.
As cenas se configuravam uma ponte dele com o mundo. A resolução dos dramas televisivos demorava, mas sempre no final se fazia a justiça. O amor vinha para os que mereciam, assim como a punição ao vilão se transformava em aprendizado eterno.
Aquele retrato, na verdade, era o cenário onde ele se desenvolveu. As novelas sempre foram sua salvação. Ao ver-se aprisionado nos Gálapagos de sua existência, compreendeu a pergunta inicial. O porquê de seus figurinos, de seu roteiro taciturno e sem fim. Entendeu que gostaria é de estar consigo, mas silenciando ruídos ameaçadores da sua ilha. Com outra paisagem. Das pedras emergiria uma vegetação. Já estaria bom ter a chance de despertar paixões com a sua paixão, mostrar sua face em um cenário fértil. Vislumbrou a tela imaginária como uma janela. Era mergulhar e se reconhecer finalmente como um heroi de novela, sendo apenas ele mesmo.

sábado, 16 de outubro de 2010

Falésias

As falésias da praia de Morro Branco um dia não mais estarão lá. Serão dissolvidas pela maresia e pelo desgaste no contato com água, quando sobe a maré. Soube disso em conversa com um guia, andando pelas trilhas por entre aquelas montanhas de areia colorida. Já no buggy, seu filho adormeceu no seu colo. Conversou com o motorista luso sobre futebol português. Contemplou, com o vento envolvendo seu rosto, o mar turquesa, a brancura da praia, a luz cortante do sol. De repente um contorno surgiu à sua frente, uma áurea, como uma estampa em movimento, revelando imagens de seu atual momento: pai, adulto, busca da independência financeira e emocional. Desafiou então a implacável fala do guia. Superou aquela ideia fatídica do fim com um profundo respiro. Inspirou aquela maresia com intensidade, como se interiorizasse todo seu instinto vital. Aquilo tudo iria acabar, mas ainda havia tempo.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Criaturas

Filho que tem raiva do pai, político que rompe com seu mentor, jogador que derruba o técnico que o promoveu. Psicóloga da esposa, indicada pelo marido, que alimenta a discórdia do casal. A história de Frankenstein, de Mary Shelley, se repete aos montes. É a criatura se tornando monstruosa e se voltando contra seu criador. Ingratidão? Vingança? Pode ser também a sanha competitiva do ser humano a aflorar desenfreadamente na tentativa de extinguir a própria origem, se esquecer da fragilidade inicial. Mas a fraqueza se mantém, escondida, apesar da ilusão da onipotência. Há uma passagem bíbilica que diz do pó vieste e ao pó voltarás. Quando odiamos a fagulha que nos originou, pode haver algo errado. O sopro tomou ares de tempestade. As faces do criador se tornam incômodas, espelhos de nossa própria condição humana. E, ao invés de agradecermos pela força criativa que nos fez, fremimos nossa fúria contra ela, anestesiamos a dor do parto diário que é viver. E perdemos a beleza de termos sido criados à sua imagem e semelhança.