quinta-feira, 25 de maio de 2017

A casa

Chegava da escola com a irmã e logo se apresentava para mim uma série de alternativas, assim que o carro subia a rampinha e atravessava o portão aberto de ferro. Almoçar, fazer lição, brincar com o cachorrinho Bidu... Eram opções que se misturavam às esperanças e angústias da meninice, enfronhada na realidade das tarefas, da proteção e da sensação de eternidade.

Almoçava na cozinha, entre a sala de entrada e a lavanderia. Era um local até que pequeno, mas eu achava imenso, como uma companheira de anos e sua disposição histórica: a mesa, a pia, o fogão ao lado da janela e a geladeira a qual, à tarde, quando resolvia colocar o pijama já depois do almoço, abria buscando sempre uma novidade.

Descrever é difícil. Só quem viveu sabe o que era tudo aquilo, cada detalhe dos objetos, a gordura do gradil do fogão, o barulhinho que fazia ao abrir a tampa do forno...O cheiro da sala após faxina, o tirar a roupa do varal antes da chuva, o prazer de matar a sede no copo legal, a segurança em ver os móveis sempre lá, como referências. O entardecer misturando-se com a proximidade do jantar e com os programas rotineiros da televisão, embalando as expectativas do dia seguinte.

Na sala, gostava de ficar sentado no chão, em cima do velho tapete verde e apoiado na mesinha com um tampo de vidro, assistindo TV, comendo hambúrguer e arroz Uncle Beans, sempre deixando a porta envidraçada, de ferro branco, entreaberta, para respirar o ar perfumado que vinha do jardim da frente.

Do jardim se misturavam uma flora abençoada de palmeiras e outras árvores, além de um imenso pinheiro, plantado desde que chegamos, em 1970, bem perto do portão. Eram tempos em que não havia tanto risco e mantinha a segurança deixando a grade, também corrediça, trancada.

Cansei de fazer paredão no muro lateral do jardim, chutando a bola e aprendendo a dominá-la. As marcas da bola, alías, foram responsáveis também por várias mudanças de cor da casa, que já foi rosa, branca e bege, mas, acompanhando também as minhas mudanças, mantinha a mesma essência.

Esbaldei-me  de brincar com os vizinhos Carlos Fernando, Dermany e Andrea Kottel, sempre vindo me chamar tocando a campainha estridente situada no início do muro. Um dia, quando não pude ir, ouvi uma crítica e logo respondi que preferia ficar lá dentro, respirando o ar puro das árvores.

Naquele momento, estava ao lado da babe, minha avó que sempre apoiava o que eu dizia. Todo dia ia me despedir dela, deitada lá no quarto de cima, com janela para o jardim, e ouvia de seus lábios ternos que um dia eu seria presidente. Eu descia as escadas, para ir à escola, mais confiante e feliz.

No meio da tarde, era comum também o Zadig e o Júnior, vizinhos nascidos na Bahia, passarem em casa após as aulas na Estadual, deixarem as malas lá na grama e ficarem a tarde jogando bola comigo até dizerem: ih, estamos atrasados, temos que voltar para casa...

Daquela sala, na TV Philco com zoom (que substituiu uma Philps 26 polegadas),  vi novelas históricas e me transportava, fazendo dali o palco de meus devaneios: O Profeta, Pai Herói, Brilhante, Baila Comigo, A Gata Comeu...

Mais velho, antes de sair daquela casa, aos 30 anos, assisti no videocassete filmes lendários, adentrando na madrugada, sempre sentado no chão, acompanhado de A felicidade não se compra, O homem que sabia demais, Intriga internacional...


Acordava todo dia às 6h50, pela mãe, após tomar um copo de café com leite, ao som de Trabuco e do programa do José Paulo de Andrade, Jornal da Bandeirantes Gente, no aparelho de som da sala. Saíamos às 7h10, sempre apressados, para tentarmos chegar às 7h25 na escola, levados pelo pai, no Fusca verde azeitona, na Variant vermelha ou na Brasília oliva, conforme a época.

Contemplava também a paisagem da janela do meu quarto, que dava para a areazinha (a “arinha”) de serviço. Minha cama ficava entre a da irmã, sobre um carpete avermelhado, e o  armário branco que, quando embutido lá, foi uma revolução de alegria. Tão grande quanto a que senti quando ganhei a bicicleta com marcha, em 1981.

No armário, guardava o telejogo, o projetor e os slides, com histórias como a do Leão Cantor, e o carrinho branco de controle remoto. Do quarto, via o prédio da Bandeira Paulista e as árvores do quintal do Osvaldo irem se desenvolvendo, em conversa com a cidade, entrelaçadas na própria memória que se construía a cada dia. Tinha a impressão de que, daquela vista, meus sonhos alcançavam o mundo todo. E dia, quem sabe, poderiam se realizar.

Não foram raras as vezes em que subi na laje, do telhado da frente, acima da garagem (que depois se tornou um depósito) e ficava contemplando a tarde, sentindo o aconchego de estar em um lugar isolado e ao mesmo tempo seguro. Nem sabia que, no fundo, fomentava o meu futuro de lembranças, no movimento daquelas nuvens.

Meu futuro, daquela casa, se construiu por vivências. Resumidas em imagens: a prateleira de vidro onde ficavam os copos; o bufê onde se guardava doces, bebidas e documentos; a mesinha onde ficava o telefone cinza claro; a porta da cozinha que parecia um chocolate; o fundo da escada onde se guardava partituras; o piano onde a mãe dedilhava acordes; o quadro de leões pontilhados que ela tão bem pintou; os retratos dos avós; a escada com um quadro meio impressionista de um pastor.

A sala foi envelhecendo e, mesmo assim, mantendo a paisagem campestre de um quadro do avô; a imagem de Carlos Gomes em outra tela dele; os amigos do Bialik passando a tarde brincando; meus tios e primos sempre enchendo a casa de alegria nos aniversários e festas; os papeis de parede muitas vezes trocados; o não lembrar das vivências acumuladas; algumas discussões; o pai chegando no fim da tarde com a doçura de seu olhar; a babe assistindo TV de sua poltrona, com seu poncho de lã e seu jeito angelical.

Vejo ainda com alívio a mãe chegando à noite da faculdade; os abraços que se abstraíram pelos hábito dos dias; as tantas moças que lá trabalharam, como a Nivalda, a Do Carmo, a Zefa; o Bidu fugindo e voltando; a busca de refúgio no antigo quartinho atrás da lavanderia; os barulhos de copos da cozinha; as histórias grandiosas inventadas com a irmã; as preocupações que já não existem; a primeira vez que a cadelinha Princess entrou lá, um fox paulistinha preto, ornado com pelos brancos e beges no peito e nas patinhas. Ela chegou em 1982, comprada do Pet (ainda não se chamava assim) do homem da Pedroso, por 900 cruzeiros.

Do quarto, a mãe gostava de jogar, pela tela, o resto da água com gás para o telhado, e eu achava legal porque era um ato ousado e não causava algum tipo de sujeira. Escutava o barulho da água sobre o telhado, como se ouvisse um sinal de liberdade, abençoada pelo prédio iluminado, que testemunhava nossa rotina na rua Galeno Revoredo.

O edifício parecia se erguer em disputa com o pinheiro. Este, companheiro enraizado, crescia um pouco a cada dia e nos acompanhou também, desde criança até o último dia, representando o nosso desejo de atingir o céu das conquistas, como na lenda de João e o Pé de Feijão. E aproveitava para pedir proteção, em nosso nome, para o firmamento. Nunca negada.

Centímetros quadrados que se acumularam em mim, naquela superfície de histórias a se multiplicarem até o infinito e ressurgirem a cada dia, de repente ou de propósito. Nada contém, mais do que aquela casa, um manancial de vivências tão grande em minha história.

O imóvel, agora, está de mudança. Para dentro da nossa alma, formada lá, entrelaçada naquele cenário. A obra grandiosa que se construirá no local, não substituirá a que foi construída para a família. A vida serve para isso. Ela sim é a maior obra. Nos ensina até nas despedidas necessárias. A cada instante, a cada mudança, com ela aprendemos que gratidão, memória, orgulho e amor, afinal, não cabem apenas em um endereço.