sábado, 19 de março de 2011

Pedidos

De presente de aniversário, quero a dádiva de me descobrir cada vez mais, assumindo plenamente o papel de pai. E a força interior que esta conquista propicia. Quero também o amadurecimento suficiente para não ver uma fechada de carro, uma acusação grosseira ou a falta de generosidade como o fim do mundo. Quero achar graça de muita coisa que ainda temo: críticas descabidas, desabafos invasivos, ameaças veladas. Quero trocar a figura do para-raio pela imagem de um relâmpago que rompe a noite, cheio de si. E quero cair nos braços acolhedores desta noite, para dormir um sono tranquilo em suas nuvens acolchoadas. E acordar no outro dia sentindo a luminosidade do céu como um afago. Ao levantar, quero me olhar no espelho e ser reconhecido. Neste dia seguinte, então, me encontrarei pleno, com prazer de sorrir, com a esperança no porvir. E com um ano a mais de vida, o maior de todos os presentes que quero receber.

Alma

Evito falar de guerra, não gosto de falar de fome, finjo esquecer-me da miséria. Digiro estas ideias transformando-as em palavras bonitas, suaves, que exaltam o lado mais nobre da alma humana. Mas neste oceano fabricado por mim, rondam ainda os tubarões que amputam pernas de crianças, deixam meninos sem comer e atentam contra a dignidade das cidades. Hoje dei um prato de comida a uma menina de três anos. Não perguntei seu nome. Ela tinha os cabelos negros, um vestidinho rosa, dentinhos brancos e fazia da cena de sofrimento um motivo para se superar com brincadeiras e sorrisos de um jeito que só as crianças sabem fazer. Ela também parecia, como eu, não querer falar de mazelas, apenas brincar, brincar e comer, ao lado da mãe, na mesa do fundo do restaurante por quilo. Se divertia a cada novo componente: batatinha, ovinho, franguinho... Quando saí, ela me acenou dando tchau, com o mesmo sorriso e um olhar profundo de gratidão. Gratidão. Taí uma das palavras bonitas, suaves, que exaltam o lado mais nobre da alma humana.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Refrão

No berço meu filho adora ouvir What´s new pussycat?. Canta, achando graça, o refrão da música, dando uma cor especial à penumbra da noite. Uma cor de alegria, como se estivesse desenhando os contornos de seu mundo imaginário. Um mundo criativo, também real, pois nele ele se vê um adulto. E um dia o será. E eu me vejo nele, porque hoje já sou, mas também alimento minhas esperanças. Não tão criativas, mas ainda fontes de vida. Por isso é bom ouvir esta música, antiga, de 1965, que remonta a uma época de esplendor semelhante ao que se espalha pelo quarto. What´s new pussycat? foi um filme, cuja música, de mesmo nome, deu alma ao enredo. Seu autor é Burt Bacharach, que a fez junto com Hal David. Foi feita no passado como um presente para o futuro. A letra fala sobre novidades e exalta uma linda moça. “Qual a novidade, gatinha?”. Por enquanto fico satisfeito ao ouvir outra indagação, sentado na cadeira, enquanto o meu bebê, como ele não gosta de ser chamado, reluta em dormir. Ele me pergunta, sem palavras, apenas com os olhinhos tremeluzindo um brilho que faísca do berço: “Quais as novidades, papai?”

terça-feira, 15 de março de 2011

Simples

Para os professores de literatura e jornalismo que condenam os adjetivos, meu desabafo. Não posso falar que os olhos azuis daquela menina são lindos, retratam o céu em órbitas ondulantes, reluzentes, inebriantes. Nem dizer que o mundo caminha de uma maneira complicada, imprevisível, dissonante. Isso é muito triste, porque o segredo de uma paisagem simples são seus traços rebuscados de coloração precisa, de curvas milimétricas, de pessoas distantes, de ondas espumantes, de uma magia que toca o coração. A paisagem, assim como os conflitos e os fatos, não são prolixos. Nem o objetivo vive sem o subjetivo, por mais que muitos se iludam. A paisagem, os conflitos, os fatos, na verdade, superam as barreiras da concretude. Denotam estados de espírito, característica, qualidade. A paisagem, os conflitos, os fatos, na verdade, são adjetivos.

Bloqueios

Fico tentando encontrar palavras no silêncio, nas paisagens, nos textos que leio. E elas me fogem, ensaboadas e efêmeras, como um sopro que se enche de vida, e depois desvanece, gasta o ar, como se estivesse trancando a imaginação em um quarto escuro, jogando a chave fora. E no derradeiro movimento do pulmão contraído, em meio à frustração deste labirinto sem fim, sinto apenas uma leve golfada de ar superar meus lábios cerrados e tímidos, que também não encontram palavras, e se transformar em um suspiro de lamentação.