terça-feira, 31 de agosto de 2010

Confiança

Teu olhar é um oásis no deserto urbano. A tarde escapa por trás dos prédios, deixa em seu rastro o atrito entre o asfalto e o homem. E teu olhar é a vegetação a se estender pelas paragens de minha consciência, enquanto vago pelas ruas secas. Hidrata minha pele para o bem do metabolismo de minha alma. Vejo em teu olhar a nascente de água doce que sacia minha sede no calor arenoso. Percorro dunas ondulantes de solidão para me refrescar na brisa do teu olhar. E no seu núcleo côncavo e rajado, me renovo, ouvindo o doce canto da menina de teus olhos. Teu olhar está em tudo. É religioso quando se faz prece. É sensual quando inspira um beijo. É psicanalítico como um sonho encantado. Ensina tal qual um mestre. Acolhe como uma mãe compreensiva. Traz a paz, se revela na palavra amiga, cicatriza tecidos de meus órgãos feridos, aparece nos momentos mais difíceis. De dentro de tuas retinas emergem fios energizantes. Teu olhar é real. Teu olhar é um oásis, não é uma miragem.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Leituras

Bialik era o nome da escola em que seu pai o colocou na infância. Bialik era um escritor judeu russo, conhecido, do início do século passado. Bialik, para ele, foi a história da história. Lá aprendeu a ler e escrever. E enquanto seu pai estava deitado na cama, no hospital, ele sentou-se à beira do leito e começou a ler em voz alta o início do livro A trombeta envergonhada. Em uma das passagens Bialik relata em tom sensível momentos de sua infância, seu medo dos adultos opressores, sua saudade dos campos e matas que podia contemplar como um abraço do universo. O pai, atento, buscava resumir cada trecho, destrinchando detalhes, ainda que com a voz enfraquecida pela doença. O filho, emocionado, sentia-se levado também a tempos antigos, quando o pai, na melhor de suas formas, ficava até tarde o acompanhando nos estudos. Enquanto ele lia, as lembranças vinham, junto com o soluço, atropelando suas palavras, trazendo de volta as lições tomadas à noite, em outras leituras, numa reminiscência bialikana que substituiu seu adeus.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Vocações

Na tarde de quinta-feira, ensolarada e seca na cidade, a médica utilizou-se do instrumento da dedicação para operar o milagre e conduzir o paciente de volta à vida. E nesta mesma tarde, o maestro, em gestos cênicos, transfigurou-se nas ondulações sonoras da orquestra apaixonada. Como espectador, um escritor se inspirou na magia, relativa àquele momento, ao elaborar em sua mente um enredo fantástico, em que um escultor procurava pela mãe que o esculpira no ventre. Um arquiteto, então, baseou-se nestas ideias, para desenhar uma casa com lajes, colunas e telhados que representavam curvas esculturais de uma mulher. Não demorou para um escultor de verdade, ao saber desta realização, moldar o desenho de uma doce ninfa ao lado de serafins, copiando algo do estilo do arquiteto. Até um agricultor entrou nesta ciranda, regojizado pelo lampejo de vida, que de outra forma o levou a plantar uma safra inigualável, tamanha a perfeição dourada de seu trigo...Mas na tarde de quinta feira, regojizado pelo lampejo de vida, o maestro se inspirou na magia da orquestra ao lado de serafins esculturais, copiando algo do estilo de uma mulher. Um arquiteto, então, entrou nesta ciranda de outra forma ao elaborar em uma casa nas ondulações sonoras e moldar sua mente apaixonada. Nesta mesma tarde, um escultor de verdade utilizou-se do instrumento da dedicação para desenhar um enredo fantástico com curvas que representavam lajes, colunas e telhados. Até um agricultor transfigurou-se como espectador do arquiteto, para operar o desenho de uma doce ninfa ensolarada e seca na cidade. Não demorou para o paciente, ao saber desta realização, e de volta à vida, conduzir o milagre que o levou a plantar uma safra inigualável, tamanha a perfeição dourada de seu trigo. Um escritor baseou-se nesta ideia, relativa àquele momento, em que um escultor procurava pela mãe, a médica que o esculpira no ventre, em gestos cênicos.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Divagações

O jornal deixou de publicar as crônicas de um famoso músico sobre futebol. Suas palavras sensíveis e poéticas foram consideradas divagações. Falavam do subjetivo justamente para aqueles que repetem já sem pensar que “futebol é uma caixinha de surpresas” e que, paradoxalmente, não entenderam a imprevisibilidade dos textos. Se o futebol imita a vida, e a vida às vezes é injusta, não é justo que o futebol se torne um esporte justo. Mas para o homem é difícil aceitar a frustração de uma derrota injusta. Por isso o mundo do futebol detesta a injustiça e ao mesmo tempo tenta negar que seja tão injusto.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ponto

Quero meu filho, quero meu filho! Os anos passam voando, os dias correndo, os minutos se arrastando. É duro ter de esperar a hora de bater o ponto, para não ser descontado, escancarando a submissão da figura do pai herói à do reles funcionário.

Gabriela

Abri um livro de poemas, tentando me encontrar neste mundo. Precisava de palavras precisas a me levarem a outro horizonte. Eis que enfiada entre as páginas, bem na fronteira da dobra, percebi uma migalha de pão. Estava envelhecida como meus sonhos. Seca como meus olhos afundados. Não aguentaria uma lágrima, tinha o tamanho de uma joaninha. Sinalizava um momento em que alguém por lá passou, o tal poema leu, com uma fatia na mão. Pensei em mil hipóteses sobre o que este alguém estaria fazendo. Seria meu pai, em um momento de ternura? Ou estaria ele angustiado com seus plantões desgastantes? Poderia ser a minha mãe que por lá passou, para relaxar à noite, depois de chegar da faculdade. Foi se graduar com quase 30, num esforço que me fazia ir dormir, à sua espera, na cama da minha avó. Ela assistia Gabriela, novela com a Sônia Braga, o Armando Bogus e o José Wilker. Deitávamos ao lado da pequena televisão em preto e branco. Eu mergulhava na noite, acalentava minha solidão sentindo o seu calor perfumado e envelhecido. O local escuro ficava azulado pela luz da tela. E aquela música tão melodiosa, tão sedutora, parecia remeter a doce velhinha a emoções antigas. Eu não sabia bem o quê, apenas sentia que ela respirava mais fundo, quase suspirava de emoção quando ouvia “Eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, Gabriela....” na voz da Gal. Penso que pode ser porque ela veio da Europa, sozinha em um navio, não teve muito tempo para aproveitar a alegria da vida naquela época de perseguição aos judeus, onde até a hierarquia familiar obrigava a filha mais velha a se casar antes. Parece que minha vó, mais nova que algumas irmãs, era a mais bonita. Todos queriam se casar é com ela. Por isso foi obrigada a se mudar para o Brasil. Contava que viajou só, de navio, chorando apenas na companhia do céu e do mar. Sofreu mas se recuperou. Acho que eu era um dos seus motivos de júbilo. Ela devia criar uma ponte ao se equiparar à linda Gabriela, vendo-a esbanjar sensualidade no entardecer da Bahia, para ir aterrissar, ou navegar, lá naquele quarto, comigo, tranquilizada e trocando sua feição idosa, com os cabelos prateados e curtos, pela empolgação juvenil refreada no torvelinho dos acontecimentos. Ela dizia, sempre que me despedia antes de ir para a escola, que eu tinha postura de presidente. Não cheguei a tanto. Mas se me visse com este livro na mão, acho que não se decepcionaria. Veria-me um tanto conformado. Ou melhor, orgulhoso. Por conseguir me manter como ela neste mundo com outras conturbações, mas também difícil. E ainda sorrir, acompanhado das lembranças, alegre por viver de migalhas.

Gladiador

Alguns filmes representam um lado do ser humano que não evoluiu como outros. Tropa de elite, por exemplo, toca na violência nos morros, na carnificina brutal que a rotina por lá se tornou para certos moradores. Comparando-se com a Idade Média, com a época do Império Romano, o homem realmente aprimorou algo de seu espírito selvagem. Mesmo com um aspecto animal ainda latente, predomina pelas ruas um certo controle. Já não se mata por qualquer motivo, como nas eras citadas. Exceto, é claro, nestes palcos propícios para a miséria humana, onde um código de ética paralelo ainda tem voz ativa. O protagonista do tal filme é um policial que faz justiça pelas próprias mãos, desabafa um pouco da ira sublimada de cada um de nós. Entretanto, ele apelou para uma opção cruel, permitindo-se se tornar um moralizador pelo ódio, ceifando vidas como um gladiador moderno. Curioso que seu nome na trama seja Nascimento.

Burocrata

Há funcionários que trabalham em um local durante 30 anos e mal criam laços afetivos. É aquele que atua ao lado de uma mesma pessoa durante esse longo período e o vínculo nem de longe esbarra em uma amizade, permanecendo alimentado por cumprimentos formais e conversas profissionais. Chega à sua mesa diariamente, coloca sua bolsinha de couro com documentos na gaveta, olha com esmero para seu celular adormecido ao lado do computador, fala oi para os presentes, e se enfurna em seus problemas. Enquanto passam os dias, fica submerso em uma rotina amedrontada, vive fugindo da ideia de descobrir em seu íntimo o porquê deste aprisionamento. Torna-se um autômato de seus hábitos enraizados, padronizados pela sociedade que o cerca, que age de maneira idêntica, calando-se diante de injustiças, cúmplice desta tortura da omissão.
Sempre que anda pelos corredores, teme que ouçam suas conversas, até seus pensamentos. Passa o tempo inteiro com medo de perder o emprego. O tema mais abordado pelos cantos da redação é justamente esse, demissão. “Este foi embora por isso”, ouve em uma conversa no banheiro. “Aquele por aquilo”, escuta na baia ao lado. Desenterra-se, na arqueologia desta paranoia, casos de décadas anteriores. “Há 17 anos o tal fulano saiu porque escreveu com erro de ortografia”, chegou a escutar. Mas ele mesmo se entregou a essa atmosfera de permanente fritura. De auto-fritura. E se mantém nesta frigideira contínua, na oleosidade de caráter que frita seu espírito. Um dia ele perderá até a oportunidade de sair da caverna, colorindo seus dias com mais ousadia, criatividade e amor. Será a realização de seu anátema, a derradeira demissão com a chegada da morte.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Fases

Jura, que nunca mais viajarás pelas nuvens, me deixando descalço, em terra batida, sem te enxergar pela noite perdida. Jura, não ser como Cecília no poema da lua, onde ela posa crescente, vai a minguante, se torna reclusa, depois amante. Se isso um dia acontecer, ficarei invulnerável, controlarei com um botão as ondas do teu universo, sintonizarei o teu espanto, compreenderei sereno a cadência do teu pranto. Terei eu poderes sobre o firmamento. Viajarei pelo teu mais profundo sentimento. E acreditarei piamente na doçura do teu juramento.

Gargalhada

Mãos fechadas em torno da boca. O menino cochichou no ouvido do vizinho na mesa e em seguida viu, entusiasmado, a chispa de sua mensagem se espalhar em roda. Sussurros, olhares ávidos, sorrisos contagiantes. Um falou para o outro que contou para o do lado. O jantar, de tedioso se tornou radiante, imerso neste telefone sem fio. Na palavra final, todos libertaram uma estremecedora gargalhada, que, de tão forte, me fez esquecer até qual era a frase dita inicialmente.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Traves

Lá na praia de São Vicente, há umas traves cravadas na areia. Sempre que ele passava de carro por lá, ficava entusiasmado com a ideia de jogar futebol, com traves e de graça. Falava para o seu pai sobre isso. Numa tarde foram juntos jogar bola no incrível local. Ficaram até anoitecer, sentindo a brisa no rosto. Ele no gol, o pai chutando de longe. Eram chutes fracos, para que o menino pudesse defender. Num deles, o garoto pediu que a bola fosse alçada por cobertura, para ele defender, salvando o gol com um chute de calcanhar para o alto. Muitos anos depois Higuita fez algo assim em Wembley, em uma jogada marcante. Marcante. Essa é a palavra para descrever cada um daqueles momentos do anoitecer, sob a brisa de São Vicente.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Insônia

Pela madrugada ele se revirava na cama, sem conseguir dormir. Sua vida estava mudando. Sentia-se mais forte e isso gera responsabilidade. Cuidar dos filhos, ganhar dinheiro e conservar seu gosto pela liberdade. Precisava conciliar tudo isso nesta nova fase. Teria de intervir em um conflito familiar em que um dos filhos de seu antigo tio agia grosseiramente. Virou-se para um lado, para o outro. Sua esposa deve ter percebido. Os primeiros pássaros da manhã já cantarolavam. O canto fino atormentava, como um sinal de uma noite perdida. Sentiu medo de se levantar. Queria pedir ajuda, mas não havia mais ninguém.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Perfume

Os raios da manhã lascavam a fronde de uma árvore, como se esta estivesse sob o ataque de lanças de fogo. Recostado ao pé do tronco, um menino bebia água de côco. Desfrutava da sombra e dos perfumes refrescantes da mata verde. Levantou-se apenas à tarde, sentindo na face o brilho acolhedor em que se transformara o sol. Assim sou eu, filho. A fronde da árvore que te protege e te liberta pela trilha da vida na companhia de um beijo iluminado.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Realidade

Acabara de discutir com um alcoólatra. Foi na saída de um bar na Vila Madalena, já na noite funda, mergulhada no silêncio sem luar. Envolveu-lhe uma sensação de humilhação por ter proferido palavras raivosas, cuja origem até era legítima, mas que perderam seu brilho ao alimentarem tão inócuo diálogo. Não adianta se confrontar com um alcoólatra, ralhá-lo porque bebeu. Ofender-se com o que falou. Entrou em casa, deitou ainda trêmulo com a confusão. Sonhou com um antigo amigo, de escola. Estavam juntos, indo e vindo por uma série de salas, pertencentes a um clube recreativo. Conversavam com diretores, sócios, sentindo-se plenos e seguros. Em outra ocasião, ouvia sua esposa, em um saguão de hotel. Ela lhe falava com serenidade e tom conciliador, acalmando-o. Na sequência, vencia uma corrida de carros de passeio, pelo trânsito paulista, contra competidores que iam de ex-colegas até o piloto Felipe Massa. Os afoitos concorrentes batiam, seduzidos por mudanças repentinas de trajetória, por arrogância e ambição. Ele se manteve reto, com perícia, na pista da esquerda. Desviou-se só o necessário e se surpreendeu com a vitória. Chegou antes a um prédio com uma escadaria na entrada. Esperava no saguão quando os organizadores já iam dando a vitória para outro. Ele não permitiu a afronta, fruto do descaso alheio. Argumentou sem perda de tempo e finalmente conseguiu o reconhecimento, ainda que sem impedir os ares de desprezo. Não fazia mal, estava feliz. Conseguia enfim se comunicar e obter retorno. A trama foi uma paradoxal obra-prima de sua mente, numa fusão harmoniosa do inconsciente com a sensatez da consciência. Ajudou-o a se sentir aceito por si mesmo, suportar a rotina de realidades que não podem ser sonhadas por outros. Sonhos são resoluções individuais. No dia seguinte, ao acordar, soube por telefone que o alcoólatra tinha morrido atropelado.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Travessura

O garoto nunca mentia para a sua mãe. Com frequência ele aprontava na escola. Faltas leves, até criativas. E a cada anotação de um professor em sua agenda, era um desabafo de contrariedade. “Ah, não, vou ter de contar para minha mãe...” Era de sua índole admitir suas culpas, às vezes até exageradamente. A mãe, por outro lado, irritava-se com a série de estripulias do menino levado, mas honesto. Porém, sempre em seguida a uma reclamação particular, ela o defendia em público. Não permitia que o estereotipassem, como mãe, e também porque conhecia suas qualidades. Talvez ela intuísse alguma razão oculta, uma fraqueza enviesada na direção de uma necessidade de aparecer, justamente para não descobrirem uma dificuldade de relacionamento. Sentia-se, possivelmente, culpada por uma falha, por uma desatenção qualquer. Uma vez, após ele ter jogado da escola uma casca de mixirica no quintal do vizinho, junto com seus amigos, foi punido sozinho. Desta vez a mãe se cansara. Um pouco em função das dificuldades da rotina, que põe os nervos à flor da pele. Bateu-lhe firme, não com violência. O suficiente para deixá-lo magoado. Horas depois, ela foi ao seu quarto, onde permanecia deitado, no escuro, ouvindo um jogo do Corinthians no rádio da cabeceira. Inerte, ele apenas moveu o olhar para avistar o contorno de seu corpo, aureado na luz coada pela fresta da porta. Ela lhe pediu perdão. E perguntou se ainda a amava. Ele respondeu que sim, e muito. Sentimento que, junto com a gratidão, perdurará pelo resto de seus dias. Afinal, ele não poderia mentir para sua mãe.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Dimensões

A terceira dimensão chegou de forma definitiva ao cinema. Imagens inebriantes surgem na tela quando mais de um foco de luz se dissipa para convergir em uma única imagem em nossas retinas cobertas por uma lente especial. O espectador sente-se participando das cenas, impele-se a se colocar no lugar dos personagens. O maniqueísmo da visão em duas dimensões fica enfraquecido. O espectro do universo se amplia em forma de paisagens, cenas simultâneas, movimentos. Dá para se perceber os pássaros revoluteando em sincronia, no fundo de um campo em que os protagonistas interagem.
Pode-se dizer, sem generalizar, que escritores vêem em três dimensões e jornalistas, em duas. O outro lado, tão propagado em redações, pode no fundo ter vários outros lados incógnitos. É insuficiente, e cômodo, se ater a ele, geralmente uma resposta padronizada a um ataque. O futuro promete novos horizontes a desafiarem cada vez mais a capacidade humana de absorção do universo, com a possibilidade de nossos olhares captarem uma gama maior de pontos de vista. A tecnologia 4D surge com volúpia para incluir o tempo às três dimensões. É possível que venham no rastro a 5D, a 6D, até um dia enxergarmos o que hoje nos é invisível. Novas percepções revolucionariam a civilização, em uma situação similar ao momento em que a escuridão conheceu a luz, os mares, os céus, a vida animal, a modernidade, as novas tecnologias. Um ciclo pode estar se encerrando para o início de vários outros. Até chegarmos a algo como a sétima dimensão, a 7D. Sete dias, o intervalo que durou a criação do mundo. Número sete, letra D, de dias. De Deus.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Análise

O paciente, por um lado, necessitava reconstituir um vasto repertório de hábitos enraizados em sua mente, que o levavam à angústia, ao desamparo e ao medo do contato social. Mas ele não podia deixar escapar, nesta enxurrada, suas qualidades nobres. A sua rica sensibilidade era, justamente, quem o deixava vulnerável. Não queria perder este encanto, instrumento para as mais criativas divagações. Por isso tinha de evoluir sem mudar. Precisava se transformar.

Andarilhos

Encontraram-se novamente em Nova Iorque. Ele chegou naqueles táxis amarelos. Mal apertou o número 10 da botoneira e lá estava o velho amigo, abrindo-lhe as portas do pequeno edifício da rua 52, east side. Foi um tanto constrangedor, isso ficou perceptível no sorriso amarelo de ambos. Afinal, viam-se, antes da viagem, quase diariamente, e aquela familiaridade pareceu esquivar-se no reencontro. Dos olhares, no entanto, hauria uma alegria incandescente.
Logo recuperaram a afinidade. Não precisavam conversar para intuir o que sentiam. O hóspede, amparado pelo núcleo acolhedor que simbolizava aquele apartamento, desfrutou a cidade com prazer especial. Enquanto o companheiro trabalhava, ele andava pelas ruas repletas de todo o tipo de gente, admirando a peculiaridade de cada um. Passeou pela beleza das tardes douradas no parque. Entrou nos museus, visitou locais tradicionais, outros desconhecidos, procurou captar todos os detalhes daquela metrópole pungente.
E à noite, iam jantar em restaurantes, colocando a conversa em dia. Quando não havia o que falar, voltavam a pé por quarteirões, embebidos pelo luar, ouvindo músicas do Sting, imersos cada um em seus fones de ouvido. O diálogo, nessas ocasiões, era feito pelo ritmo dos passos, pelos vultos andarilhos dos dois, que se revezavam, distorcidos e efêmeros, nas paredes iluminadas, dando a confortável percepção da presença do outro.
Foi uma temporada intensa, passou rápido. Serviu para que ele se revigorasse ao fortalecer ainda mais aquele vínculo. Na volta, rumo ao aeroporto, após se despedir, olhou para trás e viu, da ponte, a cordilheira de prédios candentes. Sentiu uma enorme gratidão por aquela massa urbana imprevisível, construída à imagem e semelhança dos seus habitantes, os cidadãos do mundo. Pensou que deixara lá um pouco de si, naqueles momentos de pura amizade. Pensou no parceiro que ficara, mantendo a cidade com o calor de sua individualidade. O cenário, naqueles dias, pareceu ter se contagiado com aquela empatia mútua, que já não acalentava a necessidade fremente da presença física. Experiências deste tipo, boas ou más, devem ocorrer com todos os turistas e moradores de lá, porque são as relações humanas que constroem uma cidade. Se não fosse assim, e sem o seu melhor amigo, Nova Iorque não seria tão linda.