sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Gabriela

Abri um livro de poemas, tentando me encontrar neste mundo. Precisava de palavras precisas a me levarem a outro horizonte. Eis que enfiada entre as páginas, bem na fronteira da dobra, percebi uma migalha de pão. Estava envelhecida como meus sonhos. Seca como meus olhos afundados. Não aguentaria uma lágrima, tinha o tamanho de uma joaninha. Sinalizava um momento em que alguém por lá passou, o tal poema leu, com uma fatia na mão. Pensei em mil hipóteses sobre o que este alguém estaria fazendo. Seria meu pai, em um momento de ternura? Ou estaria ele angustiado com seus plantões desgastantes? Poderia ser a minha mãe que por lá passou, para relaxar à noite, depois de chegar da faculdade. Foi se graduar com quase 30, num esforço que me fazia ir dormir, à sua espera, na cama da minha avó. Ela assistia Gabriela, novela com a Sônia Braga, o Armando Bogus e o José Wilker. Deitávamos ao lado da pequena televisão em preto e branco. Eu mergulhava na noite, acalentava minha solidão sentindo o seu calor perfumado e envelhecido. O local escuro ficava azulado pela luz da tela. E aquela música tão melodiosa, tão sedutora, parecia remeter a doce velhinha a emoções antigas. Eu não sabia bem o quê, apenas sentia que ela respirava mais fundo, quase suspirava de emoção quando ouvia “Eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, Gabriela....” na voz da Gal. Penso que pode ser porque ela veio da Europa, sozinha em um navio, não teve muito tempo para aproveitar a alegria da vida naquela época de perseguição aos judeus, onde até a hierarquia familiar obrigava a filha mais velha a se casar antes. Parece que minha vó, mais nova que algumas irmãs, era a mais bonita. Todos queriam se casar é com ela. Por isso foi obrigada a se mudar para o Brasil. Contava que viajou só, de navio, chorando apenas na companhia do céu e do mar. Sofreu mas se recuperou. Acho que eu era um dos seus motivos de júbilo. Ela devia criar uma ponte ao se equiparar à linda Gabriela, vendo-a esbanjar sensualidade no entardecer da Bahia, para ir aterrissar, ou navegar, lá naquele quarto, comigo, tranquilizada e trocando sua feição idosa, com os cabelos prateados e curtos, pela empolgação juvenil refreada no torvelinho dos acontecimentos. Ela dizia, sempre que me despedia antes de ir para a escola, que eu tinha postura de presidente. Não cheguei a tanto. Mas se me visse com este livro na mão, acho que não se decepcionaria. Veria-me um tanto conformado. Ou melhor, orgulhoso. Por conseguir me manter como ela neste mundo com outras conturbações, mas também difícil. E ainda sorrir, acompanhado das lembranças, alegre por viver de migalhas.

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