quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Vizinho

Já tinha medo de lobisomem. Morria de pavor ao ver a Cuca nos seriados. Acordava gritando pela noite quando sonhava com o lobo mau. E ainda um adulto lhe contou que, se fizesse bagunça, seria castigado pelo “vizinho”. Vizinho se tornou um protagonista de seus horrores, figura sinistra com cara de bravo e um martelo na mão, usado para pregar meninos nos porões do prédio. Então, por muitas vezes, ao ouvir batidinhas nas portas de sua vida, o coração palpitava na sala. Seria ele? E a única resposta a emergir em balbucio trêmulo era: “Não tem ninguém”.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Hoje

A frase lembro-me como se fosse hoje desfaz o abismo do tempo em um instante. Revela o hoje como um permanente eco do passado. O hoje é o cansaço da nossa pele, o acúmulo de nossas vivências, nosso quarto antigo, a velha sala de aula, um amigo de infância que pensávamos ter esquecido, na ilusão de que seu nome nunca mais deixaria de ser Ontem.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Esplendor

Raul Pompéia, no esplendor artístico de O Ateneu, dizia que a arte está acima da moral. Por outro lado, algumas pessoas, em geral autoritárias, repudiam qualquer questionamento jurídico a qualquer pretensa manifestação artística, até mesmo aquele que coloca em dúvida a existência de arte em certa manifestação. O senso estético para estes está na provocação, na ameaça de ruptura a qualquer custo de valores e padrões de um monstro permanentemente hipócrita chamado sociedade. Poderiam assim até achar bonito um quadro de nazistas assassinando judeus em um campo de concentração, em prol do que chamam de arte. Em seus tribunais de conceitos, diriam que aquele que se opõe a tal obra não passa de um defensor de regimes ditatoriais. A verdadeira arte, no entanto, supera estes desafios astutamente colocados pelos homens em sua cegueira de buscar o auto-engano, de não tentar resolver suas mazelas, mas sim negá-las através de um conceito, questionável sim, de arte. É preciso tomar cuidado com estes embustes falsamente democráticos. A verdadeira arte prima pela estesia e é essencialmente corajosa. Está acima da moral quando não se verga canhestramente à moral corrompida dos patrulhadores.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Turma

De repente o redemoinho do tempo lhe trouxe antigas vivências. Na escola, era o brincalhão. Soltava-se, para esconder alguma fraqueza, mas, mesmo assim, permitia-se criar, ainda que para esconder seu lado obscuro, de forma precária. E a alquimia dos dias transformou a pedra filosofal da imaginação, que deveria ser lapidada, em medo de novamente ser tachado de babaca, infantil pela sociedade competitiva com a qual se deparou depois de ultrapassar os muros da infância.
Congelou algo em seu íntimo, sentiu uma mancha taciturna em seu peito até saber que reencontraria, mais de 30 anos depois, aquela turma do ginásio e do primário, em um bar. Sabia que poderia se deparar com alguns cabelos embranquecidos, barrigas salientes, faces abatidas pela pressão da vida. Mas esperava também reencontrar sorrisos sinceros que talvez não tenha captado na alegoria frenética em que se via naqueles tempos antigos: estudar, conviver, se expor sem se mostrar frágil, sem esmorecer. Era difícil ser colega. Era difícil ser aluno. Então novamente voltou a brincar, fez piadas como há muito não fazia, despiu-se da roupagem diáfana que o descoloriu por décadas. Provocou um, outro, de forma lúdica, tal qual crianças em uma guerra de travesseiros. E ao ler as mensagens se multiplicarem nesta corrente eletrônica da internet, em que cada um falava de sua vida, exalando satisfação com a reunião, apagando mágoas, reconstruindo o passado, percebeu finalmente que não estava só. E que, na verdade, nunca esteve.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Canção

A música Eu quero você como eu quero traz em sua melodia doce um toque de melancolia. A cantora quase se desfalece em um choro cantado. Fica no ar um sentimento de frustração, na harmonia da sedutora canção, caminhando em contraste com o desejo de transformar o outro, um amigo, um amor, um filho, à nossa feição. Desejo que teima em não se realizar plenamente, menosprezando a si mesmo, numa irônica reação à sua essência efervescente, até ingênua. Borbulha, borbulha e esfria no diapasão da dor, desvanecendo-se na impossibilidade que cansa. Em seu rastro fresco vem um quase gemido, em tom de lamento. “Uuuuuu eu quero você como eu quero...” Ele se esvai tristonho em forma de ondas sonoras, saudoso do êxito jamais obtido, neste movimento que engrandece o homem, o torna mais forte, mais esperançoso, mais bonito. É bonito sonhar.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

MP3

Deitou-se no antigo sofá. Era noite, via pelo lusco-fusco os contornos da cortina balançarem com o vento que vinha da janela. A cabeça manteve-se erguida, no braço do móvel. Sentia-se reconfortado com o cobertor de lã a aquecer seu corpo. Antes de dormir, ouviu as músicas de seu mp3. Eram melodias antigas, que o remetiam a momentos remotos. Passeou por várias épocas, divagou, remeteu-as à sua atual fase de vida. Percebeu então que colocara o aparelho no lado esquerdo de seu peito, ouvindo pelo viva-voz, sem fone, músicas que se fizeram pedacinhos de sua existência. Na sala escura, seu coração estava cantando.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Estudante

Bom dia menino rebelde, cabelos lisos, franjeados. Dentro do carro batuca um rock, lá fora vê passos acelerados. Para ele chegar à escola, me pergunta por que tanta pressa. Joga futebol, brinca e se envergonha, come chocolate que é bom à beça. Pula do banco levando a mala, sobre rodinhas ao estilo Pinóquio. Perninhas brancas, bermuda e tênis, cada momento para ele é heróico. Cumprimenta aqui e ali, a caminho do portão grande e liso. Vai sumindo no meio do agito, vai entrar e me manda um sorriso.

Propaganda

Prefiro descrever uma onda sonora a uma escrivaninha de um escritório de luxo. Não sei bem montar diálogos corriqueiros, tendendo obcecadamente a divagar sobre conflitos da alma. Só se eu fosse um protagonista da moda, daqueles bem-sucedidos, dinâmicos, arrojados, antenados, com expertise, cheio de termos atuais, vestiria um blazer casual com uma camisa com estampas alegres. Manteria os cabelos raspados, ou repicados, sempre com um look moderno. Nem me preocuparia se minha imagem irrepreensível me escondesse de mim mesmo. Como escritor, publicaria cenas como se fossem fotografias, diálogos reproduzidos, após ficar anotando o que escutasse na rua. Seria cool, undergraound, me orgulharia de meu veio irônico, sarcástico e debochado, alardeando perversidade em tom de decreto. Se fosse fazer uma propaganda, andaria com passos firmes ao encontro da câmera, por canyons paradisíacos. E quando chegasse próximo da lente, olharia fundo e falaria com cara de bravo, implacável como os fortes devem agir, bradando meu grito de vitória, sem titubear. “Este é o meu estilo, esta é minha marca”. Depois, não deixaria ninguém me ver chorar.

Centenário

O futebol parece teimosamente viver de polêmicas. Mais uma surgiu no centenário corintiano. É a velha história do copo meio cheio e meio vazio, que pode servir como reafirmação pessimista ou esperança otimista. Os torcedores adversários disseram que o Corinthians só celebrou a data em um evento na rua, junto à população, porque não tem estádio. Como réplica, poderiam ouvir de um corintiano sociólogo que o sentimento de paixão corintiana extrapola os limites de um campo de futebol e os anéis de uma arena. Não consegue, como água a escorrer pelas fendas de uma montanha, ficar restrito a eles. Sua essência harmoniza o sentimento por um símbolo e a própria identidade de cada torcedor. É uma crença, massificada, mas que conta histórias individuais, se mistura à fé de cada um, única na luta de seu dia a dia para se curar da dor e para viver o amor. O palco maior do corintiano não é o estádio, onde seu canto uníssono reflete um cotidiano acumulado vindo lá de fora, dos escaninhos da cidade. Seu cenário é feito dos dramas e das vitórias fora das quatro linhas. O uniforme preto e branco e o emblema de um timão são apenas roupagens deste enredo. E tudo isso, nas semanas que antecedem os jogos, emana na rua, e é lá o melhor local para os festejos. As calçadas e as sarjetas são a verdadeira arquibancada do povo, como o carnaval é para o brasileiro. Ser corintiano é um sentimento mais carnavalesco do que futebolístico.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Quartier

Tentei recordar o nome de um hotel barato no qual fiquei em Paris. Era em uma ruela, entre prédios antigos. A rua desembocava em outra movimentada, com uma casa de crepes aconchegante e branca. Paralela, corria a boulevard Saint Michel, à noite iluminada por luzes amareladas, transmitindo o glamour nas mesinhas espalhadas nas calçadas e nas obras de arte expostas a céu aberto, junto com livros e discos. Voltei ao local dez anos depois. O hotelzinho era o mesmo, ainda pertencia a uma família portuguesa, acolhedora. Aproximei-me do dono, então mergulhado em papeletas atrás de um balcão, na saleta de entrada escura. Diferentemente de São Paulo, ele não tinha uma caneta presa na orelha. Usava sim um par de óculos mal acomodados. Estava despenteado. E não se lembrava de mim. Seu sorriso espontâneo, porém, permanecia inalterado, ainda que pertencente a um rosto envelhecido. Não enriquecera, mas mostrava-se satisfeito com sua rotina. Parecia estar aberto às novidades e não ligar para os esquecimentos. Dele emanava uma admiração pela própria simplicidade, o que o tornava um ser humano genial. Agora, por ironia, não me lembro do nome do hotel. Não por vingança, mas por solidariedade. Meu esquecimento é um pedaço de mim. E ficou eternamente hospedado, bem ao lado do dele, num cantinho bem escondido de Paris. Lá ainda existo muito bem acompanhado de todo aquele cenário por onde outras figuras geniais e relaxadas como Sartre, Barthes, Foucault pensaram e se esqueceram, também com óculos desajustados. Posso dizer que estou ao lado de todos eles, num reflexo invisível de criações esquecidas. Estou esquecido por lá, mas lá existo. E todo o dia quando acordo, tento seguir o exemplo do que aprendi naquele inesquecível Quartier Latin, onde morarei para sempre, mesmo não usando óculos. Não me lembro do nome do hotel, mas não esqueço de me levantar.