quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Marsilac

A sociedade perde suas áreas verdes. Não só para a especulação imobiliária. Mas pela teimosia em não encarar a exclusão social. Regiões de belezas naturais, antes palcos de contemplação e prazer, tornaram-se redutos de pobreza e violência. Marsilac, no sul de São Paulo, é um exemplo. Miséria e descaso das autoridades se escondem no manto da Serra do Mar. O Parque Ecológico do Tietê está degradado pela falta de infraestrutura e pelo clima tenso. O fenômeno ocorre mais nas periferias, como no Parque do Pedroso, área de manancial em Santo André. A ganância urbana ultrapassou em selvageria a vida natural nas matas. Nossas matas estão socialmente incendiadas. Ecologia também significa equilíbrio humano. A palavra homem vem de humus, cuja tradução do latim é terra. O homem veio da terra para fazer dela algo melhor, a cada dia. Floresta não se restringe a esconderijo. E nem é um depósito de miséria. Rios, montanhas e bosques não são guetos, onde o sangue se mistura à seiva e ao fel da desilusão.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Globinho

No dia em que todos os seres humanos encontrarem seu lado artista, a paz amenizará guerras e desconfianças. Poemas, quadros e sinfonias substituirão os tiros. Na abertura da TV Globinho, lá pelos anos setenta, havia um cowboy que disparava a arma engatilhada e dela saía um buquê de flores. É por aí. Algumas pessoas acham que o mundo é feito de maldade. Para elas não passa de ingenuidade, ou hipocrisia, pensar de forma diferente. Elas estão certas, se analisarmos sob seus enfoques. São pragmáticas, espertas e até mais inteligentes do que os outros. Apenas não tiveram a coragem de ser artistas.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Cidade

Não há cidade feia quando a luz do sol que se apaga envolve o desenho das nuvens em uma áurea dourada. Nem quando o céu recebe uma golfada iluminada para tingir seu azul em transição. Tampouco quando as árvores se tornam misteriosas, escondidas em suas copas negras. Não há cidade feia quando as pessoas já caminham pela rua tranquilizadas. E contemplam as esquinas refrescadas pela brisa. Nem quando o silêncio vai se sobrepondo aos ruídos dos carros e das buzinas, deixando ecoar apenas os últimos cantos dos pássaros que se recolhem. O concreto dos prédios, perfilados em caos, recebe então a carícia de raios alaranjados, que esmaecem. Não há cidade feia quando a luz dos apartamentos começa a pipocar nas alturas. E em cada lar aceso o brilho de fora se dilui, transformando em sonho o dia que passou. Não há cidade feia, seja ela feita de mar, de mata ou de asfalto, quando chega o entardecer.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Nostalgia

No primeiro acorde de Human Nature mergulhei direto na adolescência. Esta música é uma ponte entre o passado e o presente. O ritmo suave e acolhedor simboliza uma dança no tempo, um desenho vivo daquilo que já passou. Vejo, como se fosse hoje, crianças brincarem no pátio da minha escola ou se encontrarem na doceira ao lado na hora da saída. Ouço o alarido, acompanho a correria, relembro os sonhos, rio da timidez. É uma canção eterna, mescla nostalgia e esperança. A letra, entremeada pelo inesquecível sussurro Why, Why, fala sobre a vida urbana, solidão e sensualidade na metrópole que nunca para. Na época eu pensava que o futuro era infinito. Hoje vejo o contrário: infinito é o passado, o acúmulo de vivências. Elas podem ser transformadas, nunca apagadas. Não tenho resposta para o why que se refere à natureza humana. Michael Jackson também não está mais aqui para reinterpretar sua pergunta, movida por uma voz e um sentimento que embalaram gerações. Não sei. Apenas revivo. Não sei como é possível trinta anos se passarem tão rápido.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Trôpegos

“O mundo é injusto mesmo”, diz um humorista para o lutador. “Temos por isso o direito de achincalhar as pessoas”, completa, em tom sarcástico de piadista. O lutador concorda e emenda, autoritário. “A sociedade é mesmo hipócrita. É violenta e condena o UFC, nada mais do que um esporte”. Cada um com seus sofismas. Na mesa do bar, lutador e humorista bebem cerveja, desabafando um oculto sentimento de culpa. Quando o dia raiar, sairão pelas ruas por caminhos distintos, trôpegos, defendendo suas bandeiras. Sem perceber que se escondem. Que se embriagam de desculpas e de ilusões. E que, por medo, não tomam atitudes para construir um mundo mais justo e menos violento.

Parquinho

A menininha de quatro anos ficou emburrada. A mãe deixou-a ao lado da balança para levar seu irmão menor à gangorra, do outro lado do parquinho. Isto a contrariou. A garota usava um vestidinho rosa, sapatinhos brancos e tinha cabelos castanhos um pouco compridos, iluminados pelo sol da tarde. Transparecia ares de princesinha. Ou de dama de honra de casamento. E se pôs a chorar, solitária. Soluçava e esfregava as mãozinhas nos olhos lacrimejantes. “Ninguém gosta de mim, fico sempre sozinha”, repetia. As queixas se misturavam ao alarido das crianças que brincavam na areia ou desciam no escorregador. Era uma reclamação até corriqueira, tanto que ninguém se deu conta. Somente eu. Enquanto chorava, passei por ela sem que percebesse. Já à distância, quando eu quase saía do parque, nossos olhares se encontraram, com minha cabeça voltada para trás. Ela se aquietou. Ficou me observando, com as mãos encostadas no vestido. Então acenei. Ela acenou de volta e sorriu. Foi um sorriso volumoso, cheio de brilho e alívio. Um sorriso que carregou suas lágrimas e acolheu seu pranto. Não foi só o seu semblante delicado que sorriu. Ela parecia sorrir de corpo e de alma, reconfortada em seus últimos soluços. Sorri também para ela, me virei e fui embora. Pensei que ela deve ter ficado contente. Pelo menos ela sabia que agora, no mundo, não estava só.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Epicentro

Sou o futebol brasileiro. Vivi ontem um terremoto em minhas bases. Bem no Japão, um local de instáveis placas tectônicas. Uma escola de futebol tabelou tanto em minha frente, não me deixou pegar na bola, que passei por uma mudança de paradigmas. Pela primeira vez senti um adversário em outra dimensão. Fora do meu alcance. Senti-me pequeno, infantil até. Meu melhor jogador, considerado uma joia em meu território, parecia uma criança diante de adultos vividos, seguros e talentosos. Em todas as outras derrotas de minha história, senti um gosto amargo de frustração. Foram disputas renhidas, demorei para me conformar com a superioridade momentânea, ou com a sorte, do vencedor. Ontem, não. Despenquei de meu altar. Os escombros me impediram de ver o céu, de tocar as estrelas, onde sempre comemorei minhas conquistas e até lamentei meus infortúnios. Senti-me enterrado, ao lado de Sócrates, Garrincha, Didi e tantos outros que já me projetaram grande - o maior. A onipotência e a acomodação me fizeram ruir, tal qual o Império Romano ruiu um dia. Isso já vinha acontecendo, mas eu não percebi. A cultura distorcida de meu país não me permitiu. Talvez desde os primeiros tempos, ainda no império romano, quando um tal de Barcino fundou uma cidade, ao lado do monte Táber, este fenômeno se iniciou. As ruínas do império ainda estão lá, como as minhas. Mas já estou cansado. Desnudado. Não sinto meus pés. Percebo a geografia do futebol escapar por entre as minhas pernas, abandonar meu epicentro. Preciso fazer algo para me reerguer, mas agora, neste momento, não consigo. Estou sem perspectivas. Pela primeira vez.

Pagamento

Quando ele disse ao analista que iria pagar apenas uma ínfima parte do que devia, ouviu um educado “obrigado” e percebeu que seria um eterno devedor porque a gratidão é um sentimento que jamais poderá ser pago em parcelas.

Reconhecimento

Uma vez, o famoso Jô Soares disse que não se sente unanimidade porque, mesmo com o seu sucesso, alguém, em algum apartamento distante, deve estar dizendo: “Não gosto deste cara”. Um escritor pouco conhecido deve pensar da maneira oposta. Um único admirador já serve como um prenúncio de bons tempos, como um retrato de uma qualidade não percebida. Ao artista célebre cabe não se apegar à ilusão de onipotência. Já o despercebido não pode se envolver em um mundo de trevas e de rancor. Na verdade, ambos são solitários. Apenas vivem diferentes tipos de solidão. Para a celebridade, a multidão simboliza uma pessoa. E para o que está à margem, uma pessoa é como uma multidão. Mas a essência humana prevalece nas duas. No futuro, a multidão pode minguar e se transformar em uma pessoa. E uma pessoa pode se multiplicar e se transformar em uma multidão. No tal apartamento distante, a luz que emana da janela serve como um alerta para o famoso. Esta luz é a mesma que ilumina timidamente um túnel escuro. Perdido, o autor quase esquecido a vê lá no final. Para ele, entretanto, seus raios são como sinal de esperança. Provam, enfim, que a luz existe.

Costelas

Nasceu como qualquer criança, cheia de vitalidade. A pobreza e as brigas dos pais o levaram à rua. No farol, sob o sol, ele está diante de meu carro. Veio andando da esquina, conversando animadamente com um amigo. Aproxima-se da janela do motorista. Tem olhos castanhos, cabelos negros, pele morena. É um menino bonito, sorridente. Intuo que tem sete anos. Só não se sente totalmente abandonado porque tem amigos para brincar de esconde-esconde pelos terrenos baldios. Vi a sombra de sua infância antes mesmo dele me pedir um trocado. Foi quando levantou a camisa suja de lama, contraiu a barriga e expôs suas costelas magras, na inocência inalterada de um menino comum. Ele, que bem poderia ser meu filho, continuava sorrindo, sem maldade. Afinal, só queria me mostrar que não estava armado.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Revoltas

Fiquei contrariado com o que fizeram com Kadafi. Os rebeldes cometeram o mesmo erro pelo qual o ditador líbio era acusado. Vê-lo acossado, desarmado, assustado e depois morto não me fez bem, porque das imagens exalava uma atmosfera de vingança, de descontrole dos mais selvagens instintos. Por outro lado, a Primavera Árabe é uma demonstração de dignidade. Sair às ruas clamando por liberdade, ciente do risco de morrer atingido por balas tirânicas e covardes, é, acima de tudo, um ato de amor ao país e de firmeza de caráter, que une o Ocidente e o Oriente. O Ocupe Wall Street também traz esta mensagem. Igualmente direcionada a uma forma de poder insano. Neste caso, mudam apenas os carrascos. Em vez das balas, as cifras.

Cronista

Para ser um bom cronista, saber escrever não está em primeiro plano, vem depois. O mais importante é saber conversar.

Farol

Escrevo para quem me compreende, ilumino quem está em sintonia fina comigo e gosta de mim antes mesmo de me conhecer. Aqueles que não gostam de mim irão odiar meus textos, repudiarão a luz que tento projetar. Mas, de tão frágil, estou acostumado a levar pancadas. E, de tão carente, não me contento apenas com um afago. Nesta busca incessante pela plenitude, quando a pancada supera o afago, eu apago. E quando ocorre o contrário - o afago é mais forte do que a pancada - eu existo. Pelo menos por um tempo.

Partículas

Cientistas procuram o bóson de Higgs, que explicaria a formação da matéria. Sua massa ínfima poderia conter a origem do universo. Mas eu a intui antes da crença cético-religiosa de muitos pesquisadores. Foi quando meu pai morreu e, ao sair de casa na semana seguinte, a chuva se misturou às minhas lágrimas. Vi que o universo chorava comigo. Abarquei o mundo inteiro no clamor do meu sentimento, projetando-me nas florestas, nos mares, no olhar frio das pessoas, formando uma massa única, indivisível, que inseria minha alma nas movimentações do cosmos. E veio a primeira gota gelada. Ela caiu firme no meu pescoço. Ela era a partícula de Deus. Então caiu o dilúvio. Depois meus olhos se transformaram no céu. E, por entre nuvens úmidas, vi resplandecer, alaranjada e serena, a luz da minha bonança.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Triunfo

Puskas se revoltou contra o governo húngaro. Maradona sai por aí desancando autoridades, muitas vezes corretamente. Nenhum deles, no entanto, expressou suas opiniões contestadoras com tanta intuição como Sócrates. Ele contestava com a placidez e argúcia dos grandes filósofos. Era pacífico como Espinoza, humanista como Voltaire, racional como Descartes. Cético como Sartre, mas apaixonado como Bergson. Tal qual Rousseau, era um iluminista da bola. Quase um menino em seu olhar sincero, que alternava piadas geniais com um ar de tristeza. Sua visceralidade era lúdica. Exalava paz mesmo empunhando seriamente a bandeira das transformações. Não era inimigo de ninguém. É difícil alguém puro como ele despertar rancores.
Sócrates tinha mesmo algo similar a Garrincha, como comparou Juca Kfouri. Uma espécie de alma de passarinho. Sua inteligência e o fato de ser médico ajudaram a estruturar suas convicções e seu comportamento. Ele via no futebol a chance da solidariedade humana triunfar com beleza. Pensei em mil maneiras de lhe fazer uma homenagem. Pensei em palavras difíceis, tentando retratar a importância que ele teve em minha vida, principalmente na minha adolescência. Mas não seria suficiente falar do fascínio que despertava aquela figura esguia desfilando pelos gramados. Isso aconteceu com muita gente, seria retórica apenas. Cada sequência de movimentos espontâneos, originais, tocava na espontaneidade de quem os contemplava. Porém, o significado das jogadas imprevisíveis, cuja genialidade será cada vez mais evidenciada pelo tempo, ultrapassava a admiração estética, encantando por carregar um mistério, que hoje entendo melhor, ainda que não totalmente. O jogador Sócrates fascinava por não parecer apenas um jogador. Era também uma figura circense, o homem da perna de pau, o domador de seus próprios leões, o palhaço e o malabarista. Ou um astro de cinema. Até um maestro em traje de gala e, paradoxalmente, um humilde morador de rua, ao estilo de Chaplin. Suas passadas e seus toques de calcanhar eram mágicos. Materializavam seus pensamentos, sua arte, sua identidade, sua ética. Espelhavam o seu prazer de ver o jogo como uma simples pelada e não uma guerra. Buscavam soluções. Refletiam sua alma. Retratavam suas fraquezas. Em campo, ele se desnudava por de trás do uniforme. Sócrates era tímido porque não sabia se esconder. Nada mais contestador do que tamanha diferença, tão elegante. Outros grandes craques tinham uma maneira mais comum de tocar na bola: Pelé e Zico, por exemplo. Sócrates não. Jogava futebol como quem dança balé e bailava com a vida como se ela fosse um jogo diário, que poderia acabar a qualquer momento. Por isso, a homenagem que eu posso fazer a Sócrates é ousar afirmar que ele foi o maior jogador de futebol de todos os tempos. Foi o maior do futebol por ter sido muito maior do que o futebol. E único, como todos nós somos e às vezes não percebemos.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Vento

O filósofo francês Henri Bergson defendia a intuição humana como fonte maior da sabedoria. Na sua visão, o tempo qualitativo, ligado ao espaço, é apenas uma referência numérica, já que o tempo quantitativo, mais verdadeiro, emerge de nossas vivências, das profundezas de nosso interior. Decifradas, estas turbulências internas abrem caminhos para a realização humana, como um farol a iluminar e delimitar nossos sonhos. Para Bergson, o nosso tempo não está ligado ao espaço. Está ligado à sua efêmera e intermitente passagem por nossa vida. Afaga-nos em momentos de alegria, rompe insolente e assustador nos momentos de tensão. Custa a passar na angústia. Passa tão lépido nas realizações que, lá de longe, nos acena já em forma de saudade antes mesmo de nos darmos conta. O tempo de Bergson tem o ritmo de nossas andanças. Corre como um menino delicado, suscetível aos nossos estados de espírito. Bergson nos diz que não é o espaço que movimenta o tempo. O tempo de Bergson pode se arrastar com um sopro de vida, se espalhar com um furacão de anseios. Suas mil facetas se desligam da ordem cronológica e se encontram como folhas ao vento na nossa busca do autoconhecimento.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Fórmulas

O medo da ideia de separação é maior do que o medo da separação. O medo da ideia da morte é maior do que o medo da morte. O medo da ideia do nascimento é maior do que o medo do nascimento. E a ideia da violência alimenta a própria violência. Na vida, nem sempre um mais um é igual a dois. Um mais um pode ser menos dois, pode ser solidão.