segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Vozes

Um dia o semblante do seu pai se desenhou à sua frente, como uma fina estampa em um tecido de seda. Era tênue, poderia se desfazer em um piscar de olhos, em um sopro do vento no entardecer. Parecia a vida da gente. A voz do passado era tão presente, surgia remota, mas ao mesmo tempo próxima, ressoando em seus ouvidos lufadas silenciosas de recordação. As idas para a escola, as conversas sobre política, os estudos de Biologia à noite. Sentiu-se tão perto dele, que esticou o braço, tentando apalpar seu rosto já envelhecido, com aquele mesmo olhar tímido emergindo de suas retinas azuis (ou verdes?). “Pai”, sussurrou, logo espantando a imagem, que se esvaiu como um sonho. Suas palavras ecoaram, porém, em outra voz, fina, infantil, o chamando para brincar. “Pai”, escutou. Voltou-se para baixo, viu um sorriso aberto e um olhar de filhote pronto para uma nova travessura. Dança do amor e da saudade para distrair o vazio. Veio-lhe então uma vontade enorme de escrever sobre a graça dos dentes-de-leite. Tão transitórios, como a vida da gente.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Direito

Ouviu no rádio a entrevista de um grande advogado. O doutor defendia o direito da defesa, como uma garantia de um julgamento justo. Um conceito filosófico admirável, de certo. E ele, ouvinte, logo concordou. E se aprofundou nesta linha de raciocínio. O defensor é imprescindível, certamente. Ele, porém, muitas vezes sabe que o réu que defende é mesmo o assassino, por de trás do manto que encobre sua culpa. Defende-o, porém, com unhas e dentes, argumentando que ele não matou ninguém. O defensor sabe, mas não pode dizer. No palco sagrado de um tribunal, sobre suas vestes juramentadas, sua figura é sacralizada mesmo assim. Ele pode ser um ator, tem a prerrogativa legal para encenar. Essa função é que favorece a justiça da pena dos jurados. A filosofia do Direito dá a ele o direito da mentira. Neste caso, seria lícito mentir. É o homem chegando ao limite entre o moral e o imoral. Mas há um problema em toda esta encenação cheia de glamour jurídico. Vai que, de tão envolvido neste personagem real, o defensor convença o juri. E acabe ganhando a sua causa...

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Senhora

Quando achamos que terminamos tudo, impiedosa, ela envia outras tarefas, como se sadicamente as estivesse escondido só para nos tripudiar. Mas não é nada contra nós. É o jeito dela mesmo. Indiferente, implacável, detalhista, surda aos nossos apelos mais íntimos, que imploram por um refresco permanente. Somos nós, porém, a chave de tudo. Nós é que temos de ir atrás, seguir as diretrizes ípsis litteris, botar a mão na massa, encarar, sofrer, pagar contas, consertar o carro, enviar o projeto minucioso. Depois, comemorar ou lamentar, dependendo dela. Ela é injusta, ela vive comodamente em seu castelo, ela exige nossa obediência permanente, mas poderemos ser mais felizes quando descobrirmos que ela não é tanto assim, diante do tamanho de nossos objetivos. Ela é apenas a realidade.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Abismo

O radical é quem mais duvida de suas certezas. A angústia em estar em conflito interno é tão insuportável, que a culpa transborda, carregando ódio e ressentimento, projetados naquele que o questionou. Ele nega, esbraveja, mas se sente diante de um abismo. De um lado, o desejo da certeza. De outro, a própria certeza, inalcançável como as nuvens flutuando sobre as montanhas à sua frente. O radical, então, afogado na insatisfação interior, sufocado pelo desespero, busca todas as maneiras para preencher este vazio, da forma mais emergencial possível, pois ele desafiou o próprio limite de sua existência e agora não pode retroceder. Então ele grita, ele agride, ele mata, ele se explode na tentativa urgente de encerrar a discussão, na busca insana pela vitória, não sobre o outro, mas sobre si mesmo.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Esperança

Enquanto as boas notícias teimarem em existir, as guerras não superarem a solidariedade, a humanidade continuar a evoluir com sorrisos, lágrimas e perdões, poderemos prosseguir desfrutando a vida, com a convicção de que, apesar de tudo, o bem prevalece. E caso o mundo se afunde no inferno do apocalipse, coroando a concretude dos céticos e daqueles que julgam por hábito, não sobrará mais ninguém sobre a Terra e eles não poderão comprovar que estavam certos.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Roupinhas

Lembrei-me de quando eu estava em uma loja para recém-nascidos, na João Cachoeira. Ia comprar roupa para meu filho, que ia nascer. As roupinhas, emparelhadas nas prateleiras ou espalhadas em uma mesa de centro, causavam expectativa. Quando revi esta cena, senti um arrepio, a desafiar meu apego incondicional. Houve uma época em que eu existia e meu filho ainda não, por incrível que pareça. Quem eu era? O que eu valorizava? Um pouco de tudo que sou agora, com aquela existência imperceptível em mim, um adulto ainda fragmentado. Sempre que eu lhe conto alguma coisa da minha infância, ele me pergunta. “E eu estava lá também?” Um dia, de brincadeira, eu disse a ele. “Filho, eu já te conhecia sem saber”. Ele me disse então, com a voz carinhosa. “Papaizinho, papaizinho...” Acho que se orgulhou da resposta, tão verdadeira.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Manchete

Matou por causa de um real. Estranhos a ironia e o contraponto da vida com o valor financeiro que, segundo a frase, causou a tragédia. Matar por causa de um bilhão de reais pode?

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Efeminado

Um dia, ele começou a se sentir pouco à vontade para escrever sobre futebol. Algo vazio prevalecia em seus sentimentos cada vez que ele elogiava um gol, admirava um jogador, comparava o jogo com arte. Sentia-se envolvido em uma balela, repetindo um discurso padronizado. Jogo é jogo, arte é arte. O futebol costuma tornar o homem mais rude. A arte não. Um poeta que fala sobre futebol não deve se surpreender se for considerado efeminado por torcedores e jornalistas. Poucos percebem que não se transforma algo em arte apenas com o discurso. O personagem principal de Proust, admirador do escritor Bergotte, viu-se decepcionado com a presença física do mesmo em um jantar, porque não adianta estar perto de um escritor famoso, observar seus gestos, a maneira que ele segura os talheres ou seus diferentes semblantes, para escrever bem. Na relação entre futebol e arte, vale o mesmo. Florença é o berço da arte renascentista. Na Galeria de Uffizi estão expostas obras de Leonardo da Vinci, Botticelli, Rafael, Rubens, Tiziano e Michelangelo. O local é um palácio estruturado em pilares da Renascença. Na arquitetura, a cidade é recheada de arcos curvilíneos, colunas com capitéis coríntios, harmonizando-se com as casas perfiladas em ruas estreitas. Lá nasceu Dante Alighieri. Os campos e os montes fiorentinos respiram história e beleza que traduzem os conflitos mais profundos do homem. Nem por isso o clube local, a Fiorentina, deixa de ter os mesmos vícios do futebol. Nem por isso, em uma disputa de bola, seus jogadores reproduzem o olhar contemplativo de da Vinci, a postura humilde e reta de Donatello ou o semblante compadecido de Giotto. A arte não prima por ser competitiva. O futebol arte, portanto, é apenas uma expressão. O futebol arte, afinal, não existe nem em Florença.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Partida

Faz tempo, faz tempo. Os movimentos da vida são frenéticos, remontam a histórias lindas, quase lendas, como a de Puskas, que já não vive mais. Quanto ardor, quanta paixão, quanta revolta que se tornaram serenos e contemplativos quando tudo passou, quando o silêncio assumiu o papel de condutor das lembranças e das histórias. Elas se movem na imaginação dos que ficaram, como se eles estivessem em uma arquibancada vazia, em um estádio que dias antes foi palco de uma efervescente final. De concreto, apenas as traves sem rede, o campo amplo, com suas demarcações, algumas marcas de chuteira e o vento balançando as bandeiras de escanteio, flagradas sem função, descansando, saciadas de emoção. Então eu vejo a escalação dos times do Honved e do Combinado Flamengo e Botafogo de um amistoso em 1957, no Maracanã. Duas culturas, símbolos de paixões individuais e de uma era coletiva. Era da brasilidade católica, alegremente triste de Garrincha, Didi, Evaristo e Dida. E da amargura misturada com a esperança daqueles que precisavam tocar a bola pra frente, distantes de sua pátria, renegados pelo comunismo, como os húngaros Kocsis e Puskas. Os nomes citados foram os autores dos gols desta partida, retratos humanos dos talentos e sonhos que alimentaram aqueles dias. Todos em um mesmo campo de jogo, compartilhando um pedaço de suas vidas. De minha parte, só me resta dizer, em linguagem atual e em tom de exclamação. "Que vidas foram aquelas!" "Que jogo foi este!"

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Paternal

Voltaire, Voltaire, apagaram a luz. Seu rival Rousseau disse que a sociedade corrompeu a natureza humana essencialmente boa. E que, no estado natural, os filhos, crescidos e depois dos necessários cuidados na infância, saem para a floresta e nem reconhecem os pais. “Pela lei da natureza, o pai não é senhor do filho senão enquanto o seu auxílio é necessário; que, passando esse termo, tornam-se iguais, e, então, o filho, perfeitamente independente do pai, só lhe deve respeito e não obediência. Porque o reconhecimento é bem um dever que é preciso cumprir, mas não um direito que se possa exigir”, escreveu. Ele ainda ressaltou em vida que Locke estava errado em afirmar que o homem é mau por origem. Para Rousseau, Locke usava conceitos sociais para abordar um comportamento natural anterior à sociedade. Mas Rousseau abandonou seus cinco filhos em um orfanato! Pode ser que considerasse o local apropriado para suprir a necessidade das crianças, que naturalmente não reconheceriam mais seus pais. Pode ser que tentou deixá-los livres, para o próprio bem deles, na sua concepção. Mas tudo o que escreveu foi voltado a uma sociedade já formada, posterior ao estado natural do homem. Neste ponto ele não abriu mão de sua vaidade. Se fosse coerente, antes de abandonar seus filhos, que fosse ele morar na floresta. Voltaire, Voltaire, apagaram a luz.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Aprisionados

Há um hospício em uma rua arborizada. A rua é uma ladeira, e o local fica no meio de sua extensão, em um bairro residencial. Um homem subia pela calçada, em direção à esquina onde fica o hospício. Ouvia tranquilamente Don´t Stop Believin’, do Journey, enquanto anoitecia. No momento em que passou pelo muro do manicômio, não escutou nenhum barulho. A construção de dois andares era como um templo misterioso. Era assustadora. Parecia uma tumba da sanidade, um rótulo para os que teriam perdido o próprio fio condutor. Lá fora, uma brisa perfumada refrescava o ambiente acolhedor. Árvores dançavam lentamente. Sobre uma cadeia de telhados das casas tranquilizadas, o céu gris coloria docemente o cenário, sugerindo amplitude, apontando conflitos e soluções por toda a parte embaixo de seu véu alaranjado. Era como uma pintura de aquarela, cuja beleza e profundidade se diluíam em esperança. Sentiu paz interior. Lembrou-se do trecho da música: someone will win, someone will loose. Por trás da quietude, e quando a paz dá lugar à luta, é esse o lema básico da sociedade. Uns loucos irão perder, outros irão ganhar. Dentro ou fora do hospício. Sem se dar conta de como é lindo o cair da noite.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Perdas

O escritor Amós Oz perdeu sua mãe quando ele tinha 12 anos. Ela cometeu suicídio. Acho que quando uma mãe ou um pai se suicidam e deixam filhos pequenos, na verdade, eles estão se suicidando em dobro.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Antipatia

Há pessoas que não gostam de você gratuitamente. Basta lhes dizer “oi” para que vejam segundas intenções em sua ação. Encaixam no lado negativo tudo o que você faz. Conseguem, muitas vezes, fazer com que você se encolha, que desconfie de si mesmo. E você acaba se enclausurando em uma cômoda, por trás de um espelho na parte de cima, de onde você vê calado e escravizado o mundo que o cerca, do qual desejaria participar mais ativamente. Mas você não consegue. Porque você se tornou apenas reflexo do que estas pessoas vêem nelas, refletindo movimentos que elas não gostariam de fazer, sentimentos que elas não gostariam de ter, lembranças que elas gostariam de esquecer, olhares que elas gostariam de esconder.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Morada

Ele sempre disse que não gosta da cidade em que mora, por senti-la muito agressiva. Apenas gosta de ir ao shopping antigo e familiar, ao clube para correr, a um ou outro parque e aos cinemas. Ou de ler em alguns cafés. Às vezes gosta de ir a jogos do Corinthians. Também aprecia algumas praças, ruas, construções e monumentos que lhe trazem fortes recordações. Tem carinho especial por algumas árvores em que se refrescou de uma contenda ou encontrou-se com um amor. Foi enumerando tantos locais que se sentiu impelido a mudar um pouco seu discurso. Continuaria a dizer que não gosta da cidade em que mora. Mas começaria a dizer que gosta da cidade que carrega dentro de si. Da cidade que mora dentro dele.