terça-feira, 29 de maio de 2012

Israelita

Não adianta colocar a desculpa no outro. Não adianta dizer que o povo judeu pode ser identificado acima de tudo pela tradição e cultura e não necessariamente pela religião. Acontece que a tradição e a cultura são frutos diretos da religião, chama essencial e razão de ser não só do judaísmo, mas do povo judeu. Até daqueles que o renegam. Ninguém é obrigado a seguir os preceitos da Torá, a entender o Talmud ou a estudar a Halachá, mas os preceitos são a raiz da identidade judaica, o que impediu o povo israelita de se diluir como os filisteus, os caldeus, os fenícios e tantos outros. As leis e a história religiosa são a essência, remotas para os que não percebem, de Israel, o alter ego do Estado Judeu. Um colono esquerdista do kibutz Hulda, disse a Amós Oz, enquanto partulhavam as cercanias à noite, que não poderia jamais sair de Israel. Sentia que não seria aceito em nenhum outro país. Ele era um laico, avesso às celebrações espirituais. De certa maneira, acolhia uma verdade. Mesmo que não se considerasse judeu, outros o considerariam. Melhor, então, é admitir a não aceitação de certos valores judaicos como opção pessoal. E não usar subterfúgios para esconder um eventual sentimento de culpa jogando-a na religião. E antes que me acusem, não sou religioso e nunca obedeci a um shabat. Talvez, infelizmente.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Telepatia

Os especialistas já afirmam que os bebês sentem tudo ao seu redor. E se manifestam à sua maneira. Eu, por exemplo, senti que o Brasil fora campão mundial de 1970 e, enquanto os rojões estouravam no céu e a multidão comemorava, chorei no berço. Meus pais deixaram os copos e foram me ver. Pensaram que era susto, mas, mesmo sem me lembrar, sei que era alegria. Desde então meu destino se ligou ao da seleção brasileira. Na Copa de 1982, a eliminação me fez sofrer como se tivesse perdido um parente. Sentia exatamente, ou até mais, o que os jogadores sentiam em campo. Esquecera-me deste vínculo até a Copa de 2010. O Brasil jogava muito bem contra a Holanda, fez um 1 a 0 e, no intervalo, o telefone tocou. Era um tio de Israel, que me demandava muita energia, porque era muito admirado por mim quando criança. Mas bem naquela hora eu não poderia falar. Pela primeira vez na história não dediquei toda a minha atenção a um jogo do Brasil em Copa. Talvez por excesso de confiança. Resultado, enquanto eu via os lances e ouvia meu tio, a Holanda fez 1 a 0 e depois 2 a 1. A conversa se encerrou, tentei recuperar o tempo perdido junto com os jogadores, mas era tarde. Chorei como sempre e só depois me dei conta da relação dos fatos. Agora, para a Copa de 2014 prometo concentração total. Nada de telefonemas, nada de desvios. Isso não tranquilizará os jogadores, eles nem me conhecem. Mas me deixará muito mais sossegado para cumprir esta tarefa silenciosa, oculta no meu anonimato. Porém sagrada para mim, pelo fato de eu saber que só eu a tenho.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Lete

Quando criança ele ia a pé do Bom Retiro ao Pacaembu, por várzeas e trilhas. Tempos em que o Estádio Municipal era de todos. Sem esta besteira de hoje: minha casa, casa do outro... Nem se pensava em Morumbi. Ele atravessava a cidade para ver o seu São Paulo. Em jogos contra o Corinthians, são-paulino era raridade no estádio. Um dia, nas numeradas abarrotadas, um monte de corintianos o cercou. Pra bater? Que nada, o acolheram e falaram: “senta aqui do nosso lado, menino, mas não exagera não, tá?”, brincaram. Ele colecionava histórias sobre futebol. Contava que o Remo parava a bola chutada lá em cima pelo goleiro. Num toque só, como se a pelota fosse pluma. Falava da família do Zaclis, judeu, que tinha comércio de roupas perto de sua casa. E passou a vida inteira praguejando o Corinthians. “Time de maloqueiros”, bradava, demonstrando uma contrariedade absoluta. Seu sobrinho predileto, corintiano, entrava na discussão, que sempre terminava com uma brincadeira carinhosa. Agora ele está velhinho, acometido pelo Alzheimer. De supetão, o filho o levou para outra cidade. Não viu mais ninguém. Mas não é que, outro dia, justo ele, esquecido de tudo nesta vida, quase purificado por um vazio nebuloso, como se viesse do rio Lete - o rio do esquecimento na mitologia grega - comemorou um gol do Corinthians? Sim, desapegado da aversão, algo de seu interior que estava contido emergiu diante da TV. Seu isolamento mental quis expressar alguma mensagem. E mostrou um lado bom do Alzheimer. O lado que supera o orgulho e abstrai rivalidades antes insolúveis. Esse fenômeno flerta com o ocaso, mas nem sempre se rende a ele. Apenas limpa a mente, mas não a alma. O Alzheimer o alçou a um novo mundo, distante como o alto de uma cordilheira, envolta em nuvens, alienada no tempo. E mostrou que, mesmo lá de longe, ele ainda não se esqueceu de seu querido sobrinho.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Moria

Thomas Morus foi considerado exemplo de retidão. Pai devoto e humanista. Viveu entre 1478 e 1535, na Inglaterra e, depois de se tornar célebre escritor e advogado, foi chanceler na corte de Henrique VIII. Por interesse próprio, o rei quis se divorciar de Catarina de Aragão. Pediu a Morus que organizasse o divórcio. Ele se recusou, afirmando ser assunto do papa. O rei, então, o obrigou a se declarar favorável a um ato de supremacia do monarca em relação à religião. Seria Henrique VIII o novo chefe da religião protestante. Poderia assim se casar com Ana Bolena, o que aconteceu. Morus, que em grego significa loucura (moria), se manteve calado. Foi preso, depois enforcado. Anos depois, santificado pela Igreja Católica (1935). E personagem do filme O homem que não vendeu sua alma, ganhador do Oscar de 1966, representado por Paul Scofield, que também levou o prêmio de melhor ator. Morus ficou calado até sua morte. Depois, sua mensagem falou mais alto e se perpetuou. O conselheiro disse ao rei que aquela não foi a melhor maneira de se iniciar uma religião em um país. E nem precisou de palavras.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Sobrado

No meio da noite, ele entreabriu os olhos, sentindo que estava sonhando com seu pai. Viu-se nos tempos de menino, sendo levado por ele para a escola. Conversavam sobre as casas da região. Enquanto dirigia, seu pai lhe dizia que gostaria de morar naquele sobrado com portão baixo, com um jardim florido na frente e uma linda varanda na entrada. Ainda em meia vigília, na cama, chegou a gritar por ele, saudoso, desejoso de revê-lo neste mundo. O desejo aumentou até que, enfim, abriu os olhos. Ao seu redor, o quarto silencioso. As cortinas estavam adormecidas, a TV desligada, sua esposa dormindo, seus chinelos perfilados no chão, os DVDs contando um pouco mais de sua história. Respirou o profundo silêncio da madrugada, testemunhou aquele momentâneo descanso do mundo que o cercava. Ia gritar novamente, mas sua voz não saiu. Ficou sufocada. Implodiu no silêncio enquanto ele mexia os lábios: “Pai”. O jeito, então, foi se virar para o outro lado, voltar a dormir o quanto antes e ainda tentar pegar um restinho daquele sonho.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Monoglota

Parecia o Pequeno Príncipe. Tinha cabelos dourados, só que lisos, olhos esverdeados, pele branca e corpo magro, de menino. Lutava, no entanto, para se desfazer desta imagem única que construiu de si mesmo. Tentava se comunicar com os outros como adulto que era. Então almoçou com o mais bem informado jornalista e, mesmo acanhado, defendeu a ponderação dos pontos de vista. A conversa esfriou logo, não conseguiu cativá-lo, seu jeito esquivo afastava as pessoas. No jantar com um amigo banqueiro ressaltou a necessidade de não rotularmos os outros no dia-a-dia. Soou estranho. Escutou como resposta algumas frases concretas, do tipo, “isso não presta para nada”, interrompidas por telefonemas sobre reuniões e negociações. Isso o fez lembrar da primeira epístola de São Paulo aos Coríntios, sobre o amor e a compreensão. Sentiu-se só, porém não iria desistir da essência do que defendia. Apenas precisava descansar naquele momento, encontrar uma fórmula. Sentou-se nos degraus da escadaria, com a cabeça encurvada sobre as pernas, para pensar. Então chorou, por somente saber falar a língua dos anjos e não conseguir se expressar na linguagem dos homens.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Alerta

Cuidado com o homem sério de camisa social. Penteado para trás, óculos da moda, ele entra na sala dos funcionários com olhos de ferro. Seu rosto tenso sinaliza ameaça. Seu silêncio cortante é escancarado. Cuidado. Se você se levantar para ir ao banheiro, pode ser demitido. Ele tem passos firmes, fala pausada, reações intempestivas. Ninguém se mexe na presença dele. Nem pensamento. A equipe congela de medo, aborta a criatividade. Quando ele vai embora, pega o paletó, sai com ar glacial e entra no carro quase sem pressa. Quem está no corredor se esconde para não ser pego fora da sala. O alívio do pessoal fica estampado na cara quando ele se vai. Inclusive o seu. Mas é por pouco tempo. Se você bobear, com toda aquela influência, ele impedirá que você consiga qualquer emprego. Impedirá que você crie, que você trabalhe. Até que sorria. Impedirá você de fazer o que ele quiser. E você se sentirá aterrorizado ao ouvir aquela voz tão próxima ecoando pela noite e transformando seus sonhos em pesadelos. Cuidado com o homem sério de camisa social. Ele conhece o seu endereço. E você o dele. Ele habita em sua mente. E você, na dele. Não haverá escapatória, se você não tiver cuidado.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Uniforme

Ele entrou com o filhinho na classe. Disse oi para a professora, viu os trabalhinhos pendurados na parede, reparou novamente nos brinquedos espalhados pelas mesinhas, nas almofadinhas postas lado a lado e, mais do que tudo, no bolo de 14 crianças que se concentrava no centro da sala. Logo eles viram seu menino, correram para recebê-lo, com braços abertos ou com as mãos esticadas. O menino esticou também, esboçando um contentamento tímido, e sem demora correu para junto dos outros, misturando-se ao grupo, que se transformou numa corrente alimentada pela amizade mais linda, a dos primeiros anos. Aquela massa infantil então se transformou aos seus olhos em um corpo único, num movimento harmônico de uniformes vermelhos. Ele ficou contente ao ver seu filho estampar 14 sorrisos na face e ecoar na voz um alarido fino, cheio de vida, semelhante ao dos passarinhos que cumprimentam a manhã.

Tamanhos

É sufocante e prejudicial se apegar a todas as coisas pequenas da vida. Mais importante é se preocupar somente com as coisas pequenas que têm grande repercussão. Por exemplo, o pequeno detalhe de diferenciar uma da outra.

Caminhos

Seu pai era de esquerda. O restante da família era de direita. Para encerrar o conflito ele, então, decidiu seguir pelo centro.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Futurismo

Pode ter sido o texto de uma colunista, que insinuou a união de forças, mas não citou as funções da dupla. Pode ter sido isso que inspirou aquele sonho, na noite seguinte. Ele viu Dilma e Lula, de mãos dadas, subindo a rampa do palácio. Dilma como presidente do Brasil. Lula, como vice. E, como se fossem de algodão, pedaços de nuvens se elevavam na amplidão daquele plananto, desenhando o número 2015.

Repetitivas

Não é à toa que os técnicos insistem em respeitar os adversários. Nem que os jogadores preferem evitar comparações entre si, se mostrem comedidos, apesar de confiantes, em relação ao próprio talento. Existe verdade nestas declarações tidas como repetitivas. Elas relativizam a crítica superficial, positiva ou negativa. E elas só se tornam repetitivas porque há uma multidão que não quer ouvi-las, para que o show possa continuar.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Sorento

Ao sair com o carro, levou uma fechada brusca. Fingiu não ver os xingamentos do outro motorista. Seu filho estava na cadeirinha atrás. Não poderia assustá-lo. Precisaria passar-lhe tranquilidade e segurança. E no dia em que o menininho ficou em casa, viu que a mudança estava consolidada. Quase foi jogado para fora da pista, por um Sorento em alta velocidade. Percebeu-se calmo, controlando sua irritação. Antes de engatar a primeira, olhou para o banco de trás, satisfeito por acalmar a sanha competitiva, comum no trânsito, onde as pessoas expõem seu lado selvagem. A cadeirinha estava vazia. Apenas fisicamente.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Judeia

Golda Meir costumava olhar Jerusalém de seu apartamento, quando era ministra do Trabalho. Ficava horas contemplando a cidade sagrada espalhada pelas montanhas da Judeia. Enquanto isso, o menino Amós andava pelas ruas de Kerem Avraham, bairro pobre, onde ia a lojas com a vizinha, morta com um tiro na cabeça na Guerra de Independência, atravessava a cidade com a família, para visitar o tio em Talpiot, ouvia o pai desferir seus conhecimentos, seu carinho e suas suaves broncas desagradáveis, tentava ajudar a mãe, introspectiva, sensível e deprimida, descobria o mundo através da leitura e da imaginação, obedecia, temia, confundia-se por ser querido e ao mesmo tempo não ser ouvido, preparava-se para o maior drama, a perda da mãe, para sua ruptura com a cidade, para a ida a Hulda e para a consagração por meio de seu mergulho no mundo que o cercava. Golda viu tudo isso sem saber com precisão, apenas intuindo que olhava para Israel e para seu futuro, marcado, como o título da biografia de Amós Oz, por amor e por trevas.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Aproximação

O padrasto viu o garoto de longe. De fora do parque, acenou para o enteado. Foi um aceno entusiasmado, para alguém por quem nutria muito carinho. Como resposta, recebeu uma cara emburrada e um olhar de contrariedade. Nem um tchau de volta. Irritado, e depois conformado, o homem tentava encontrar uma solução. Para preservar sua identidade e respeitar os momentos de aversão do menino a ele. De novo se acusou. "Você não aprende mesmo, né?" Até a próxima tentativa.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Maniqueísmo

Parte da imprensa projeta no público algo que está nela. Como as pessoas em geral fazem com o outro. Muitos jornalistas se irritam quando suas opiniões petrificadas são desfeitas. Quando idealizam, como fazem com Neymar, chamam de céticos aqueles que, não desmerecendo o enorme talento do menino, preferem esperar um pouco para elevá-lo ao Olimpo do futebol. Ficam irados com o contraditório, como se fossem eles torcedores apaixonados por certezas aparentes. E quando depreciam, dentro de um modelo maniqueísta, chamam de ingênuos e idealistas aqueles que vêem qualidades no depreciado. Um exemplo é Ronaldinho Gaúcho, outrora também comparado a Pelé, e que depois passou a ser considerado um zumbi, sem perdão. É comum, porém, que o cético e o ingênuo sejam os que acusam, enquanto não percebem o disfarce que a própria profissão os fornece. Das redações e dos estúdios, eles se culpam por se sentirem vulneráveis à crítica, ao diferente, e se prendem a frases feitas, como uma referência contra a própria insegurança ou dúvida. O discurso parece estar pronto, não permitindo saída, nem meio-termo. Uma solução seria saber que o respeito à opinião do outro, quando embasada em elementos coerentes, também faz parte da tão defendida liberdade de imprensa.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Bondade

Rousseau foi rotulado como defensor da tese de que o homem é originalmente bom. E Hobbes ficou com a fama de considerar maligna a essência humana. Há outro lado, porém. Rousseau, por exemplo, acha que o amor é invenção da sociedade, inclusive o materno. Para ele, uma galinha não está nem aí para seus pintinhos, comparando esta situação com a do ser humano. Ele se coloca contra o casamento, contra valores morais como respeito e convivência para defender o que ele chama de liberdade. Mas como dá para existir a bondade sem o amor? Já Hobbes, o Mau, busca mostrar que a sociedade pode extrair o melhor do homem e não necessariamente corrompê-lo. Um consenso comodista estigmatizou o "bom selvagem" e o "lobo do homem". Ser um bom selvagem não é garantia para se tornar um bom cidadão. Mais importante é transformar o “mau” selvagem em cidadão de bem.