quarta-feira, 23 de maio de 2012

Lete

Quando criança ele ia a pé do Bom Retiro ao Pacaembu, por várzeas e trilhas. Tempos em que o Estádio Municipal era de todos. Sem esta besteira de hoje: minha casa, casa do outro... Nem se pensava em Morumbi. Ele atravessava a cidade para ver o seu São Paulo. Em jogos contra o Corinthians, são-paulino era raridade no estádio. Um dia, nas numeradas abarrotadas, um monte de corintianos o cercou. Pra bater? Que nada, o acolheram e falaram: “senta aqui do nosso lado, menino, mas não exagera não, tá?”, brincaram. Ele colecionava histórias sobre futebol. Contava que o Remo parava a bola chutada lá em cima pelo goleiro. Num toque só, como se a pelota fosse pluma. Falava da família do Zaclis, judeu, que tinha comércio de roupas perto de sua casa. E passou a vida inteira praguejando o Corinthians. “Time de maloqueiros”, bradava, demonstrando uma contrariedade absoluta. Seu sobrinho predileto, corintiano, entrava na discussão, que sempre terminava com uma brincadeira carinhosa. Agora ele está velhinho, acometido pelo Alzheimer. De supetão, o filho o levou para outra cidade. Não viu mais ninguém. Mas não é que, outro dia, justo ele, esquecido de tudo nesta vida, quase purificado por um vazio nebuloso, como se viesse do rio Lete - o rio do esquecimento na mitologia grega - comemorou um gol do Corinthians? Sim, desapegado da aversão, algo de seu interior que estava contido emergiu diante da TV. Seu isolamento mental quis expressar alguma mensagem. E mostrou um lado bom do Alzheimer. O lado que supera o orgulho e abstrai rivalidades antes insolúveis. Esse fenômeno flerta com o ocaso, mas nem sempre se rende a ele. Apenas limpa a mente, mas não a alma. O Alzheimer o alçou a um novo mundo, distante como o alto de uma cordilheira, envolta em nuvens, alienada no tempo. E mostrou que, mesmo lá de longe, ele ainda não se esqueceu de seu querido sobrinho.

Um comentário:

  1. Bonito texto, especialmente para se refletir numa época em que as rivalidades infelizmente ficam cada dia mais selvagens, mais irracionais, inclusive em clássicos mundiais como Barça vs. Real.
    Será que um dia voltaremos ao dia em que um menino de um outro time adversário pode sentar no meio de outros torcedores sem problemas???

    ResponderExcluir