quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Roteiristas

Registro em poucas palavras que Sidney Sheldon e Robert Sherwood tinham muito em comum. Viveram em um mesmo momento suas visões idealistas e construtivas do mundo. Um mundo difícil, corroído pela guerra, pela vaidade hollywoodiana, humana. Eles souberam superar isso com leveza, inteligência e amor pela vida. Sheldon foi um roteirista criativo, tendo, constantemente, que reinventar histórias e se reinventar diante das adversidades. Sherwood também era roteirista e, por conta de suas obras, foi parar na Casa Branca para escrever os discursos de Roosevelt. Escreveu com maestria e humildade a obra-prima Roosevelt & Hopkins, que abordou toda uma época, revelou vínculo de confiança do poder, se aprofundou em uma amizade, colocando-se acima da política. Antes de ganhar o Pulitzer pelo livro, Sherwood ganhou o Oscar em 1947, com o roteiro de Os melhores anos de nossas vidas. Sheldon ganhou o Oscar em 1948, com O Solteirão Cobiçado. Ambos, coincidência ou não, foram figurantes no filme Os três xarás, do qual Sheldon foi roteirista. Pareciam apenas se satisfazer em realizar seus trabalhos como protagonistas longe das telas. Em sua autobiografia, Sheldon cita vários colegas e amigos: Cary Grant; Ladislas Bush-Fekete; Bob Roberts; Louis Calhern; Groucho Marx...Esqueceu-se de Sherwood. Talvez não o conhecesse bem. Talvez ambos não tivessem noção daquilo que os ligava de maneira tão forte, daquela união tácita formada por convicções, ideais e obras. Entretanto, eram companheiros de era, esse tipo de amigo não-declarado que ajuda com sua empatia, com a energia da própria presença. Talvez, porque pareciam ser íntimos um do outro – o que não seria estranho. Fica o registro deste roteiro de uma história sem falas, que ganharia o Oscar do cinema-mudo num filme que poderia muito bem se chamar Sheldon & Sherwood.

Erudição

Desconfio de análises cheias de informações presunçosas; contraio os lábios e franzo a testa quando leio articulistas impondo suas palavras, mostrando o que consideram erudição, falando com intimidade da sociedade egípcia, do destino líbio, do futuro da humanidade. Depois, eles terminam a exposição de seus conhecimentos dizendo mais ou menos o seguinte: “Esta é a verdade”. E eu viro a página.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Scriar

Um escritor não deveria nunca ter infecção hospitalar. Já que isso não acontece, devido à petulância dos micróbios, que pelo menos eles fiquem sabendo que seu poder é limitado. Conseguem penetrar nos pulmões, como em divertido salto em túneis de vento; correr livremente pelos trilhos das artérias e até alojar-se nas fendas da meninge. Não podem, no entanto, destruir o poder criativo que emana daquele corpo, volátil, mas concreto em seu conteúdo vivo, de onde cidades são povoadas, campos são visitados, figuras emblemáticas interagem em um mundo imaginário tão próximo mas também tão inalcançável. Mesmo que atinjam seu cérebro, é inútil tentar destruir as reações neurológicas que criam histórias de amor e drama, que inventam sorrisos, matam vilões, constróem heróis. Sua pele está abatida, mas ainda é suave. Seu olhar mantém o jeito tímido de criança indefesa. O brilho cintilante permanece puro e intenso. No leito, a boca semi-aberta indica dificuldade de respiração. Mas todo o seu passado, todas as palavras silenciosas exalam intactas daqueles movimentos ofegantes. No seu coração fragilizado, ainda pulsam com força os pensamentos, os ideais, os sentimentos. E do ar que silva tíbio de seus lábios, a emoção emana acumulando-se em um tufão. Então se vê que a infecção foi derrotada. Não destruiu o mais importante. Então o escritor se torna quase divino, ressurge nas nuvens como um imortal. E deixa como legado a ideia de que ele é um ser asséptico. De que o amor é asséptico.