quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Marsilac

A sociedade perde suas áreas verdes. Não só para a especulação imobiliária. Mas pela teimosia em não encarar a exclusão social. Regiões de belezas naturais, antes palcos de contemplação e prazer, tornaram-se redutos de pobreza e violência. Marsilac, no sul de São Paulo, é um exemplo. Miséria e descaso das autoridades se escondem no manto da Serra do Mar. O Parque Ecológico do Tietê está degradado pela falta de infraestrutura e pelo clima tenso. O fenômeno ocorre mais nas periferias, como no Parque do Pedroso, área de manancial em Santo André. A ganância urbana ultrapassou em selvageria a vida natural nas matas. Nossas matas estão socialmente incendiadas. Ecologia também significa equilíbrio humano. A palavra homem vem de humus, cuja tradução do latim é terra. O homem veio da terra para fazer dela algo melhor, a cada dia. Floresta não se restringe a esconderijo. E nem é um depósito de miséria. Rios, montanhas e bosques não são guetos, onde o sangue se mistura à seiva e ao fel da desilusão.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Globinho

No dia em que todos os seres humanos encontrarem seu lado artista, a paz amenizará guerras e desconfianças. Poemas, quadros e sinfonias substituirão os tiros. Na abertura da TV Globinho, lá pelos anos setenta, havia um cowboy que disparava a arma engatilhada e dela saía um buquê de flores. É por aí. Algumas pessoas acham que o mundo é feito de maldade. Para elas não passa de ingenuidade, ou hipocrisia, pensar de forma diferente. Elas estão certas, se analisarmos sob seus enfoques. São pragmáticas, espertas e até mais inteligentes do que os outros. Apenas não tiveram a coragem de ser artistas.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Cidade

Não há cidade feia quando a luz do sol que se apaga envolve o desenho das nuvens em uma áurea dourada. Nem quando o céu recebe uma golfada iluminada para tingir seu azul em transição. Tampouco quando as árvores se tornam misteriosas, escondidas em suas copas negras. Não há cidade feia quando as pessoas já caminham pela rua tranquilizadas. E contemplam as esquinas refrescadas pela brisa. Nem quando o silêncio vai se sobrepondo aos ruídos dos carros e das buzinas, deixando ecoar apenas os últimos cantos dos pássaros que se recolhem. O concreto dos prédios, perfilados em caos, recebe então a carícia de raios alaranjados, que esmaecem. Não há cidade feia quando a luz dos apartamentos começa a pipocar nas alturas. E em cada lar aceso o brilho de fora se dilui, transformando em sonho o dia que passou. Não há cidade feia, seja ela feita de mar, de mata ou de asfalto, quando chega o entardecer.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Nostalgia

No primeiro acorde de Human Nature mergulhei direto na adolescência. Esta música é uma ponte entre o passado e o presente. O ritmo suave e acolhedor simboliza uma dança no tempo, um desenho vivo daquilo que já passou. Vejo, como se fosse hoje, crianças brincarem no pátio da minha escola ou se encontrarem na doceira ao lado na hora da saída. Ouço o alarido, acompanho a correria, relembro os sonhos, rio da timidez. É uma canção eterna, mescla nostalgia e esperança. A letra, entremeada pelo inesquecível sussurro Why, Why, fala sobre a vida urbana, solidão e sensualidade na metrópole que nunca para. Na época eu pensava que o futuro era infinito. Hoje vejo o contrário: infinito é o passado, o acúmulo de vivências. Elas podem ser transformadas, nunca apagadas. Não tenho resposta para o why que se refere à natureza humana. Michael Jackson também não está mais aqui para reinterpretar sua pergunta, movida por uma voz e um sentimento que embalaram gerações. Não sei. Apenas revivo. Não sei como é possível trinta anos se passarem tão rápido.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Trôpegos

“O mundo é injusto mesmo”, diz um humorista para o lutador. “Temos por isso o direito de achincalhar as pessoas”, completa, em tom sarcástico de piadista. O lutador concorda e emenda, autoritário. “A sociedade é mesmo hipócrita. É violenta e condena o UFC, nada mais do que um esporte”. Cada um com seus sofismas. Na mesa do bar, lutador e humorista bebem cerveja, desabafando um oculto sentimento de culpa. Quando o dia raiar, sairão pelas ruas por caminhos distintos, trôpegos, defendendo suas bandeiras. Sem perceber que se escondem. Que se embriagam de desculpas e de ilusões. E que, por medo, não tomam atitudes para construir um mundo mais justo e menos violento.

Parquinho

A menininha de quatro anos ficou emburrada. A mãe deixou-a ao lado da balança para levar seu irmão menor à gangorra, do outro lado do parquinho. Isto a contrariou. A garota usava um vestidinho rosa, sapatinhos brancos e tinha cabelos castanhos um pouco compridos, iluminados pelo sol da tarde. Transparecia ares de princesinha. Ou de dama de honra de casamento. E se pôs a chorar, solitária. Soluçava e esfregava as mãozinhas nos olhos lacrimejantes. “Ninguém gosta de mim, fico sempre sozinha”, repetia. As queixas se misturavam ao alarido das crianças que brincavam na areia ou desciam no escorregador. Era uma reclamação até corriqueira, tanto que ninguém se deu conta. Somente eu. Enquanto chorava, passei por ela sem que percebesse. Já à distância, quando eu quase saía do parque, nossos olhares se encontraram, com minha cabeça voltada para trás. Ela se aquietou. Ficou me observando, com as mãos encostadas no vestido. Então acenei. Ela acenou de volta e sorriu. Foi um sorriso volumoso, cheio de brilho e alívio. Um sorriso que carregou suas lágrimas e acolheu seu pranto. Não foi só o seu semblante delicado que sorriu. Ela parecia sorrir de corpo e de alma, reconfortada em seus últimos soluços. Sorri também para ela, me virei e fui embora. Pensei que ela deve ter ficado contente. Pelo menos ela sabia que agora, no mundo, não estava só.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Epicentro

Sou o futebol brasileiro. Vivi ontem um terremoto em minhas bases. Bem no Japão, um local de instáveis placas tectônicas. Uma escola de futebol tabelou tanto em minha frente, não me deixou pegar na bola, que passei por uma mudança de paradigmas. Pela primeira vez senti um adversário em outra dimensão. Fora do meu alcance. Senti-me pequeno, infantil até. Meu melhor jogador, considerado uma joia em meu território, parecia uma criança diante de adultos vividos, seguros e talentosos. Em todas as outras derrotas de minha história, senti um gosto amargo de frustração. Foram disputas renhidas, demorei para me conformar com a superioridade momentânea, ou com a sorte, do vencedor. Ontem, não. Despenquei de meu altar. Os escombros me impediram de ver o céu, de tocar as estrelas, onde sempre comemorei minhas conquistas e até lamentei meus infortúnios. Senti-me enterrado, ao lado de Sócrates, Garrincha, Didi e tantos outros que já me projetaram grande - o maior. A onipotência e a acomodação me fizeram ruir, tal qual o Império Romano ruiu um dia. Isso já vinha acontecendo, mas eu não percebi. A cultura distorcida de meu país não me permitiu. Talvez desde os primeiros tempos, ainda no império romano, quando um tal de Barcino fundou uma cidade, ao lado do monte Táber, este fenômeno se iniciou. As ruínas do império ainda estão lá, como as minhas. Mas já estou cansado. Desnudado. Não sinto meus pés. Percebo a geografia do futebol escapar por entre as minhas pernas, abandonar meu epicentro. Preciso fazer algo para me reerguer, mas agora, neste momento, não consigo. Estou sem perspectivas. Pela primeira vez.

Pagamento

Quando ele disse ao analista que iria pagar apenas uma ínfima parte do que devia, ouviu um educado “obrigado” e percebeu que seria um eterno devedor porque a gratidão é um sentimento que jamais poderá ser pago em parcelas.

Reconhecimento

Uma vez, o famoso Jô Soares disse que não se sente unanimidade porque, mesmo com o seu sucesso, alguém, em algum apartamento distante, deve estar dizendo: “Não gosto deste cara”. Um escritor pouco conhecido deve pensar da maneira oposta. Um único admirador já serve como um prenúncio de bons tempos, como um retrato de uma qualidade não percebida. Ao artista célebre cabe não se apegar à ilusão de onipotência. Já o despercebido não pode se envolver em um mundo de trevas e de rancor. Na verdade, ambos são solitários. Apenas vivem diferentes tipos de solidão. Para a celebridade, a multidão simboliza uma pessoa. E para o que está à margem, uma pessoa é como uma multidão. Mas a essência humana prevalece nas duas. No futuro, a multidão pode minguar e se transformar em uma pessoa. E uma pessoa pode se multiplicar e se transformar em uma multidão. No tal apartamento distante, a luz que emana da janela serve como um alerta para o famoso. Esta luz é a mesma que ilumina timidamente um túnel escuro. Perdido, o autor quase esquecido a vê lá no final. Para ele, entretanto, seus raios são como sinal de esperança. Provam, enfim, que a luz existe.

Costelas

Nasceu como qualquer criança, cheia de vitalidade. A pobreza e as brigas dos pais o levaram à rua. No farol, sob o sol, ele está diante de meu carro. Veio andando da esquina, conversando animadamente com um amigo. Aproxima-se da janela do motorista. Tem olhos castanhos, cabelos negros, pele morena. É um menino bonito, sorridente. Intuo que tem sete anos. Só não se sente totalmente abandonado porque tem amigos para brincar de esconde-esconde pelos terrenos baldios. Vi a sombra de sua infância antes mesmo dele me pedir um trocado. Foi quando levantou a camisa suja de lama, contraiu a barriga e expôs suas costelas magras, na inocência inalterada de um menino comum. Ele, que bem poderia ser meu filho, continuava sorrindo, sem maldade. Afinal, só queria me mostrar que não estava armado.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Revoltas

Fiquei contrariado com o que fizeram com Kadafi. Os rebeldes cometeram o mesmo erro pelo qual o ditador líbio era acusado. Vê-lo acossado, desarmado, assustado e depois morto não me fez bem, porque das imagens exalava uma atmosfera de vingança, de descontrole dos mais selvagens instintos. Por outro lado, a Primavera Árabe é uma demonstração de dignidade. Sair às ruas clamando por liberdade, ciente do risco de morrer atingido por balas tirânicas e covardes, é, acima de tudo, um ato de amor ao país e de firmeza de caráter, que une o Ocidente e o Oriente. O Ocupe Wall Street também traz esta mensagem. Igualmente direcionada a uma forma de poder insano. Neste caso, mudam apenas os carrascos. Em vez das balas, as cifras.

Cronista

Para ser um bom cronista, saber escrever não está em primeiro plano, vem depois. O mais importante é saber conversar.

Farol

Escrevo para quem me compreende, ilumino quem está em sintonia fina comigo e gosta de mim antes mesmo de me conhecer. Aqueles que não gostam de mim irão odiar meus textos, repudiarão a luz que tento projetar. Mas, de tão frágil, estou acostumado a levar pancadas. E, de tão carente, não me contento apenas com um afago. Nesta busca incessante pela plenitude, quando a pancada supera o afago, eu apago. E quando ocorre o contrário - o afago é mais forte do que a pancada - eu existo. Pelo menos por um tempo.

Partículas

Cientistas procuram o bóson de Higgs, que explicaria a formação da matéria. Sua massa ínfima poderia conter a origem do universo. Mas eu a intui antes da crença cético-religiosa de muitos pesquisadores. Foi quando meu pai morreu e, ao sair de casa na semana seguinte, a chuva se misturou às minhas lágrimas. Vi que o universo chorava comigo. Abarquei o mundo inteiro no clamor do meu sentimento, projetando-me nas florestas, nos mares, no olhar frio das pessoas, formando uma massa única, indivisível, que inseria minha alma nas movimentações do cosmos. E veio a primeira gota gelada. Ela caiu firme no meu pescoço. Ela era a partícula de Deus. Então caiu o dilúvio. Depois meus olhos se transformaram no céu. E, por entre nuvens úmidas, vi resplandecer, alaranjada e serena, a luz da minha bonança.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Triunfo

Puskas se revoltou contra o governo húngaro. Maradona sai por aí desancando autoridades, muitas vezes corretamente. Nenhum deles, no entanto, expressou suas opiniões contestadoras com tanta intuição como Sócrates. Ele contestava com a placidez e argúcia dos grandes filósofos. Era pacífico como Espinoza, humanista como Voltaire, racional como Descartes. Cético como Sartre, mas apaixonado como Bergson. Tal qual Rousseau, era um iluminista da bola. Quase um menino em seu olhar sincero, que alternava piadas geniais com um ar de tristeza. Sua visceralidade era lúdica. Exalava paz mesmo empunhando seriamente a bandeira das transformações. Não era inimigo de ninguém. É difícil alguém puro como ele despertar rancores.
Sócrates tinha mesmo algo similar a Garrincha, como comparou Juca Kfouri. Uma espécie de alma de passarinho. Sua inteligência e o fato de ser médico ajudaram a estruturar suas convicções e seu comportamento. Ele via no futebol a chance da solidariedade humana triunfar com beleza. Pensei em mil maneiras de lhe fazer uma homenagem. Pensei em palavras difíceis, tentando retratar a importância que ele teve em minha vida, principalmente na minha adolescência. Mas não seria suficiente falar do fascínio que despertava aquela figura esguia desfilando pelos gramados. Isso aconteceu com muita gente, seria retórica apenas. Cada sequência de movimentos espontâneos, originais, tocava na espontaneidade de quem os contemplava. Porém, o significado das jogadas imprevisíveis, cuja genialidade será cada vez mais evidenciada pelo tempo, ultrapassava a admiração estética, encantando por carregar um mistério, que hoje entendo melhor, ainda que não totalmente. O jogador Sócrates fascinava por não parecer apenas um jogador. Era também uma figura circense, o homem da perna de pau, o domador de seus próprios leões, o palhaço e o malabarista. Ou um astro de cinema. Até um maestro em traje de gala e, paradoxalmente, um humilde morador de rua, ao estilo de Chaplin. Suas passadas e seus toques de calcanhar eram mágicos. Materializavam seus pensamentos, sua arte, sua identidade, sua ética. Espelhavam o seu prazer de ver o jogo como uma simples pelada e não uma guerra. Buscavam soluções. Refletiam sua alma. Retratavam suas fraquezas. Em campo, ele se desnudava por de trás do uniforme. Sócrates era tímido porque não sabia se esconder. Nada mais contestador do que tamanha diferença, tão elegante. Outros grandes craques tinham uma maneira mais comum de tocar na bola: Pelé e Zico, por exemplo. Sócrates não. Jogava futebol como quem dança balé e bailava com a vida como se ela fosse um jogo diário, que poderia acabar a qualquer momento. Por isso, a homenagem que eu posso fazer a Sócrates é ousar afirmar que ele foi o maior jogador de futebol de todos os tempos. Foi o maior do futebol por ter sido muito maior do que o futebol. E único, como todos nós somos e às vezes não percebemos.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Vento

O filósofo francês Henri Bergson defendia a intuição humana como fonte maior da sabedoria. Na sua visão, o tempo qualitativo, ligado ao espaço, é apenas uma referência numérica, já que o tempo quantitativo, mais verdadeiro, emerge de nossas vivências, das profundezas de nosso interior. Decifradas, estas turbulências internas abrem caminhos para a realização humana, como um farol a iluminar e delimitar nossos sonhos. Para Bergson, o nosso tempo não está ligado ao espaço. Está ligado à sua efêmera e intermitente passagem por nossa vida. Afaga-nos em momentos de alegria, rompe insolente e assustador nos momentos de tensão. Custa a passar na angústia. Passa tão lépido nas realizações que, lá de longe, nos acena já em forma de saudade antes mesmo de nos darmos conta. O tempo de Bergson tem o ritmo de nossas andanças. Corre como um menino delicado, suscetível aos nossos estados de espírito. Bergson nos diz que não é o espaço que movimenta o tempo. O tempo de Bergson pode se arrastar com um sopro de vida, se espalhar com um furacão de anseios. Suas mil facetas se desligam da ordem cronológica e se encontram como folhas ao vento na nossa busca do autoconhecimento.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Fórmulas

O medo da ideia de separação é maior do que o medo da separação. O medo da ideia da morte é maior do que o medo da morte. O medo da ideia do nascimento é maior do que o medo do nascimento. E a ideia da violência alimenta a própria violência. Na vida, nem sempre um mais um é igual a dois. Um mais um pode ser menos dois, pode ser solidão.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Arquibancada

O torcedor, em muitos aspectos, é um frustrado. Projeta na vitória de seu time o seu próprio desejo de vencer. Mas ele nunca é o protagonista. É sempre um ser à mercê dos jogadores, os verdadeiros herois. É por isso que, na primeira oportunidade, ele achincalha os ídolos, iludindo-se que faz isso por amor à equipe. Ele se apega ao time por algum motivo íntimo, cujo significado é importante. Mas há muita inveja, há a raiva de se sentir de fora, apenas assistindo. Quando, na comemoração do título de 2009, vi um flamenguista agredir outro flamenguista, me veio o insight. O agressor transferiu para o agredido, que vestia a camisa vermelha e preta, toda a sua ira contra o clube. Uma conquista alheia não é capaz de mudar a vida de quem torce. Claro, a alegria transparecerá, mas ela será efêmera, às vezes falsa. Pode até ajudar a amenizar sofrimentos, mas não traz de volta o amor que se foi, nem o emprego que não vem. Os premiados são outros, os beneficiados também. O torcedor é um ser frágil, dependente. As conquistas de desconhecidos, tão distantes como as estrelas no céu, não se materializam em realizações do seu dia-a-dia. Há um lado ilusório no futebol, que esconde o ódio que o torcedor tem de seu time. Afinal, ninguém gosta de se sentir secundário na vida.

Dramaturgia 1

Um famoso jornalista empurra a mulher em público. Outro se sente no Olimpo ao noticiar os fatos na TV. Tem um olhar ameaçador e não pode ser contestado. O reconhecimento profissional não é suficiente para manter a auto-estima, em muitos casos. Em vez disso, a pressão da fama estimula a arrogância. O problema é que, no discurso, estas celebridades expõem algo falso. São capazes de posar em campanhas institucionais, na roupagem de gente humilde, como carpinteiros e motoristas. É quando a verdade vem à tona. Não combina a personalidade irascível que escondem em seu interior turbulento com a imagem santificada que procuram passar. Então eles se fragmentam como árvores despedaçadas, deixando à mostra a seiva ilusória de suas vidas. São bons apresentadores e são péssimos atores.

Dramaturgia 2

No fundo, todos nós somos atores, tentando atuar e encaixar personagens o tempo inteiro neste cenário que é a vida. As relações humanas são o alimento cotidiano de uma grande peça de teatro. Não é à toa que Shakespeare é o maior dramaturgo da história, por evidenciar a dificuldade do homem em conhecer seu real papel, em cumprir sua verdadeira missão. Em ser ou não ser.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Câmera

As imagens vêm como um filme em minha cabeça. Pessoas, a cada instante, tocando a campainha e entrando animadas pelo portão verde da casa, após alegres cumprimentos. Amigos sentados ao redor de uma mesa, no centro da sala. Transpareciam afeto e respeito, relembrando acontecimentos ou falando sobre futebol, casamento e política. Enquanto isso, na sala lateral, outros familiares se reuniam, também em animada conversa. Convidados interagiam, pulavam de um lugar ao outro, em meio a deliciosos salgadinhos e refrigerantes gelados. De repente, crianças rompiam pelo corredor, se esbaldando, gargalhando em alarido, como um pequeno exército mirim. O Parabéns a você, para o pequeno aniversariante nos braços dos pais, ressoou por quarteirões, tamanha a energia do canto devotado à felicidade da criança, que irradiava um sorriso, atônito e encantado, em retribuição. Este foi apenas um pequeno retrato daquela linda tarde. Um retrato feito por minhas retinas, trabalhado pela minha memória. Espontâneo e verdadeiro. Um retrato tirado lá de dentro de mim.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Profecia

Rivalidade será considerado um termo rude, inapropriado, que não existirá no futebol. Será trocado por complementaridade. Se o sol rivalizasse com a lua, não haveria dia. E os rivais no futebol seguem o ritmo da dança da noite com o dia. Quando estão em alta, brilham como o sol que se impõe na paisagem. Os períodos sem vitória são mais reflexivos, quando o manto noturno os envolve em contemplação e frescor. A beleza de tudo é que, nos movimentos da terra, o dia será noite e a noite será dia. Sempre, enquanto o universo existir. Portanto, quando não vier a vitória, a lua renascerá no céu e em sua placidez o derrotado se acalmará, aplacará sua ira, enriquecendo a constelação com o brilho de sua luta, transformando a lágrima numa estrela iluminada e serena que se chamará humildade.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Parabéns

Primeiro peguei você no colo na maternidade. Depois vi seu rosto de nenê. Ouvi você falar “gol”, aos nove meses. Então acompanhei seus primeiros passos, com um ano e quatro meses. De repente, vejo tudo isso hoje reunido em seu sorriso de menino. O rosto ganhou feição, linda, é verdade. Os olhos castanhos e a pele clara já revelam a harmonia de uma criança de três anos, iluminada, que causa perplexidade em todos. Vejo você agora como um conjunto de seu desenvolvimento, como uma paisagem de peças que se encaixam a cada dia, incessantemente, depois se transformam, neste quebra-cabeça mutante, colorido, impressionista que é a sua existência, a enriquecer, a cada dia, a minha própria existência. A traduzir minha vida, libertando-me de qualquer definição de tempo e espaço. Vejo-me alforriado e aprisionado pela paternidade. Fui conduzido para outro mundo, conheci outra dimensão da realidade. Estou envolto na obrigação de homem maduro, que não tem volta. Já não sou um bobo. Às vezes até me esqueço de quem fui, de quem sou, para tentar me lembrar o tempo inteiro quem é você. Levo comigo seu passado recente, baú encantado que parece tão longínquo, onde tranquei seu primeiro respiro, seu primeiro passo, seu primeiro choro. Eles adormeceram em mim, diluíram-se em imagens abstratas. Sim, eu as guardo, mas não lembro. Todos estes momentos estão devidamente acomodados nas gavetas de minha alma. Desapegados de definições, entregues à passagem da vida, presentes na beleza da natureza que me cerca. Este cenário absoluto é o único local onde, por ser infinito, meu amor por você se mistura, além dos meus limites. À noite, quando olho para o céu límpido o vejo em mim, filho, incendiado pela luz prateada de seu sorriso. Raul é luar ao contrário.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Latido

A dor se torna maior para quem se esconde e se afasta do mundo justamente com medo de senti-la. O cachorro late mais para aquele que não quer ser visto, como se o animal farejasse a fraqueza e, sabiamente, deixasse sua essência selvagem falar, em forma de latido: "venha, venha..." Mas como o homem tem medo e não entende a linguagem da natureza, nem a sua nem a do universo, ele pensa que o latido é uma ameaça. E foge, como se o cão lhe falasse: "sai daqui, sai daqui..."

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Carona

Telefonei para um amigo à tarde. A ligação estava tão clara a ponto de eu pensar que ele falava de sua mesa de trabalho. Mas ele dirigia na estrada, um carro que ia de Porto Alegre a Gramado. Não ouvi o barulho da brisa perfumada que devia estar entrando pela fresta da janela. Mas, de pronto, me transportei para lá. Vi-me no banco de carona, apreciando a paisagem bucólica da região, a chamada Rota romântica, cercada por vilarejos, vaquinhas pastando, carros de bois e flores. Senti-me na Europa ao me deparar, em suaves curvas, com árvores de plátano, vindas da Alemanha pelas mãos dos imigrantes, exibindo tons amarelos e laranja que colorem o cenário. Respirei a atmosfera de paz, ornada pela simplicidade dos trabalhadores rurais, andando na beira de estrada com pás, foices e um olhar profundo. Desemboquei em uma verdadeira caverna de árvores, até penetrar em uma alameda de hortênsias, já em Gramado. E então, do outro lado da linha, encerrei a ligação e o devaneio. “Boa viagem de volta”, desejei para nós.

Idealismo

A má interpretação do idealismo alemão influenciou de alguma maneira a ascensão do nazismo. O idealismo, em resumo, defendia no fim do século XIX a autonomia do espírito, destacando a subjetividade do sentimento como o mais importante. Fichte, Hegel, dois discípulos de Kant, encabeçam a lista dos idealistas filósofos, que viam na valorização ética do “eu” o caminho para as realizações humanas. Tal sensação de autossuficiência contribuiu para inflar o povo alemão de ilusão de onipotência. Foi uma das fagulhas na I Grande Guerra e, após a humilhação da derrota, se reinventou com mais ódio na II Grande Guerra. Logicamente, não era esta a intenção dos filósofos, muito pelo contrário. Tais preceitos cheios de sabedoria serviram como um pretexto para preencher lacunas de uma sociedade esvaziada. Mas essa questão é importante para nós, hoje, em busca de nossa afirmação no dia-a-dia. Por mais que estejamos certos e convictos, não convém tentar impor nossa opinião sobre a dos outros, nem nos irritar em excesso com fraquezas e defeitos alheios. Senão, rumo a essa autossuficiência libertária, podemos interpretá-la mal e liberar nossos instintos mais primitivos. Nossa felicidade não será plena se os outros não agirem como desejamos. Assim, sem perceber, nos transformaremos em nazistas. Ou, no mínimo, em chatos.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Desconhecido

Olhei o homem de bigode branco e cabelos volumosos no balcão da lanchonete e vi meu pai. Também vestia camisas sociais e calças antigas, que realçavam sua simplicidade. Suas pupilas em alerta reinavam nos olhos esverdeados como a luz no mar. Prestavam atenção ao doce que comia com satisfação. Após uma mastigada e outra, pensamento imerso no infinito, terminou. Amassou e jogou o guardanapo no lixo. Ao se virar, olhou para mim, mas não fez aquele aceno à distância, com as mãos espalmadas, que ele fazia sempre, entusiasmado por me encontrar de repente. Saiu como um estranho. Então eu percebi que ele não se parecia em nada com o meu pai.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Escapada

O dedicado funcionário precisou um dia ir a um trabalho estilo free lancer. A proposta era boa, de última hora. Faria uma entrevista com um jogador renomado, que concedia coletiva em um badalado restaurante. Almoçou e foi para lá, sentindo-se culpado por se afastar do trabalho, mesmo que por algumas horas apenas. Não deixou, porém, de informar o chefe. Poderia até conseguir um falso atestado médico para explicar a escapada, tentado pelo comichão do disfarce. Suas palavras, no entanto, se desviaram para outro caminho. "Estou aqui em um restaurante badalado, tive de sair e você não estava, deixei recado, mas estou ligando novamente para dizer que não demoro. Precisei vir porque a entrevista era importante e a oportunidade, única". O chefe pareceu não gostar. Fez um muxoxo, como se estivesse torcendo o nariz. E passou a persegui-lo após o episódio. Muitos chefes são assim. Valorizam muitas coisas: a aparência, a obediência cega, até a enrolação. E deixam escapar de suas vistas a valiosa qualidade de um funcionário esquisito, só porque ele o chama de você e, por outro lado, lhe diz apenas a verdade.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Bigger

Noite densa em Aventura. Cidade aberta, cercada de luzes e de vento suave. Entro com minha familia em uma pizzaria que ja fomos outras vezes, em ampla e arborizada rua. O dono ja nos conhece. Seu fisico corpulento, atarracado contrasta com sua leveza de espirito. Empolga-se com a presenca de meu filho. Brinca com ele, o pega no colo. O olhar radiante do menino de quase tres anos o contagia, ele parece agradecer por se sentir iluminado, por potencializar a vida em si ao ver a inocencia a sua frente. Ele fala alto, faz brincadeiras com a crianca, pergunta se esta satisfeito. E cai na gargalhada com os trejeitos cheios de graca do garoto. Orgulho-me porque ele e parte de mim. E na despedida, o homem solta uma frase, parecendo comovido pela nossa partida. "I'll see you bigger". Assim e a vida, cheia de chegadas e partidas, de encontros fortuitos que duram para sempre. Prometi para mim que, quando meu filho crescer, ver o mundo de outra maneira, aprender com outros encontros fortuitos, voltarei la, para aquela pizzaria. O menino, talvez, nem se lembrara que um dia foi la pequeno. Mas duas pessoas se lembrarao: eu, e o dono da pizzaria - um grande homem, um bigger.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

City

As ruas de Miami nao tem buracos. Suas praias sao claras, seu mar turquesa seduz. Seus vizinhos sao cidades bem cuidadas, como Aventura, e Sunny Isles, em que o mar convive com construcoes imponentes, de forma harmonica, parecendo que o homem entendeu e respeitou os designios da natureza. Me senti tao acolhido neste cenario, que entendi completamente a musica-tema da famosa serie Miami Vice. You belong to the city.

Parque

Ha filosofos que dizem que a Disney e um lugar de alienacao. Discordei desses intelectuais quando me vi em ruas ao estilo de interior, entrei em um castelo, viajei com piratas, percorri o velho oeste, cumprimentei o Mickey, caminhei pelo mundo da fantasia, do amanha, da aventura, por lagos placidos, por jardins floridos ate a noite, quando as luzes do parque se apagaram realçando a passada, quando os carros e personagens desfilaram em trajes luminosos e quando, depois de toda essa alucinacao, pude ver um sorriso, real e iluminado, estampado no rosto dos meus filhos.

sábado, 22 de outubro de 2011

Cedilha

Com um pequeno trator, um trabalhador apara a grama de um jardim em Orlando. O hotel onde ele trabalha precisa ficar muito bem cuidado pra atrair mais hospedes e gerar mais renda para a empresa e para o pais. O homem sabe que e peca importante de uma engrenagem. Ve sentido no que faz. Os Estados Unidos possuem tres diferenciais. Uma e a civilidade do povo, em um grau mais acentuado do que na media. Outra e a organizacao social e economica, na qual todos tem importancia. Por fim, o comprometimento do povo se inclui como fator importante. Em Orlando, nao se suja a calcada porque se sabe que outros irao utiliza-la. Construcoes irregulares sao severamente punidas. E muito mais dificil para qualquer empreiteira dar um jeitinho como no Brasil. Ha, no fundo, um lado do capitalismo que e corporativista. Neste comunismo as avessas, a solidariedade entre os trabalhadores funciona tambem em busca da justica social. Nos antigos paises comunistas, o comprometimento vinha na base da forca. E da forca. Como nos Estados Unidos o alfabeto nao tem cedilha, e a mesma coisa.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Relatividade

Um físico vê um raio de sol como a emanação de uma onda. Na visão de um romântico, esta onda é poética, explode em sete cores e remete ao arco-íris. A penetração dela em uma cachoeira, então, é de uma beleza estonteante. O romântico, inclusive, pode ser o físico. Tudo se entrelaça nas combinações do universo. Os fenômenos da física desembocam em poemas, que discorrem sobre a magnitude de uma paisagem e sobre a doçura dos sonhos, independentemente das explicações psiquiátricas para estes impulsos freudianos. Os elementos da ciência são astros no universo da poesia e do romance: o sol, a lua, as estrelas, o mar, o cosmos, o infinito. O racional e o subjetivo caminham juntos. O amor não passa de reações químicas de um organismo em turbilhão, na linguagem da química e da fisiologia. Mas um químico apaixonado conhecerá bem a outra visão. Entenderá como mágica a palpitação no encontro com a pessoa amada. Como milagre a chegada de um filho. E suspirará enternecido ao testemunhar o pôr-do-sol no topo de uma montanha. As fórmulas são também versos sobre a poesia da vida, variam de acordo com a atmosfera, a pressão e a velocidade, sempre em busca da solução de mistérios. Imaginação, sentimento e conhecimento se entrelaçam como cadeias de DNA e extraem de qualquer teoria a sua própria relatividade. Portanto, respiro fundo, sinto o ar entrar refrescante em meus pulmões, enquanto meus olhos estão lacrimejantes de emoção quando recito, do fundo do meu coração: ê é igual a emecê ao quadrado.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Desenhos

Minhas palavras não alcançam a sonoridade do universo. Não são as ondas marulhando na praia. Tampouco o raio de sol que beija a copa de uma árvore no entardecer. Seu alcance não descreve o estímulo penetrante de uma música que encanta. Minhas palavras são pobres em comparação aos meus sonhos malucos e coloridos. Podem falar em cenários, mas jamais desenham perfeitamente pontes movediças, portões ornamentados, tapetes aveludados que só a minha imaginação vê. Feliz e genial é o escritor que consegue desenhar, pintar e cantar com as palavras. Mas se não consigo fazer desta maneira, também não posso deixar de me manifestar. Então esta atividade se torna mais importante para mim até do que para o meu leitor. Aprendi a me conformar enquanto não desenho, não pinto, nem canto. Eu escrevo, apenas.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Roupa

Com o tempo ele perdeu a ingenuidade. Antes, no primeiro contato com um Rato de redação, animal jornalístico que se autodenomina um vencedor, abria totalmente o jogo. Não que falar a verdade não seja imprescindível. Mas a exposição transparente de certos pensamentos que contrariam a indústria cultural soa estranha aos "vitoriosos": nada de dúvidas, nada de questionamentos, nada de fragilidade. Isso remete à necessidade de o homem se vestir antes de sair de casa. Ele coloca uma camisa social, sua calça bem cortada, o sapato de camurça, devido a exigências da sociedade. O asseio pessoal é inclusive um fator de status social. Pois o comportamento também precisa de uma vestimenta adequada. Não é indicado sair por aí desnudado emocionalmente porque, neste mundo competitivo, isso cria um sério risco de destruição. É preciso se proteger em tons harmônicos, com textura correta, nos relacionamentos pessoais e profissionais. Não deve ser à toa que o conjunto destas convenções leva o sugestivo nome de etiqueta.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Graxa

Ele acabara de fazer a regulagem do motor de um Fiesta. No galpão da oficina, sentiu-se cansado logo pela manhã. Precisou, novamente, dar uma paradinha. Lembrou-se da infância, pensou em como sempre foi apaixonado por carros, pelo universo das peças, pelo cheiro de combustível que a ele lembrava os mais requintados perfumes. Ficou recostado na frente do carro que consertara, com o capô erguido. Voltado para a rua, seu olhar alcançava o infinito. Cabelos penteados para trás, nariz retilíneo e queixo longo. Aquele estilo italiano já despertou muitas paixões na juventude. Agora, perto da velhice, ele continuava com o hábito da divagação, de avental e com as mãos sujas de graxa. Sobre a vida, sobre como podia ser feliz e infeliz naquele lugar, em que os carros, apesar dos roncos, não são ferozes, tampouco surpreendentes, como aqueles que os dirigem. Lembrou-se de um personagem de Voltaire que dizia algo a respeito da nobreza do trabalho. “O trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade”. Nada de ambições desenfreadas, que só levam o homem à loucura, distanciando-o do engrandecimento pessoal. Pensou nisso e virou-se para a máquina, agora perfeita graças à sua dedicação. Sentiu-se satisfeito, e não apenas conformado, com o seu mundo. Tinha como principal ferramenta a reflexão. Ele era mecânico. Mas seu pensamento, não.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Gravação

O homem resolveu um dia ligar para o número de uma menina da escola em que estudou. Ficavam horas conversando, cada palavra dela fazia seu dia ficar melhor ou pior. Cada telefonema era um acontecimento, símbolo e resumo daquela época de sonhos, medos e esperança de um adolescente. Ele ficou indignado, no entanto, com a resposta que ouviu do outro lado da linha, feita por uma gravação com voz feminina. “Este número de telefone não existe”. Ele, já adulto, continuava com sua essência sensível. Gostaria de obter uma resposta mais correta, menos fria. “Este número de telefone não existe mais”.

Telefonema

Um dia, quando eu tinha mais de 40 anos, liguei para 624395. Era o número da menina que eu amava no colégio. Ela atendeu, com os mesmos 13 anos. Perguntei: “Quem é?” Ela respondeu “é a ...” Conversamos por horas, como no passado. Ela falou das questões de nossa escola, de como se via no futuro e de como me via no futuro. Confessou que imaginava para mim uma situação bem mais confortável, como a de um diretor de jornal ou de escritor consagrado. Disse a ela que a vida nem sempre realiza o que esperávamos, mas mesmo assim não podemos perder a esperança. E contei que queria estar lá, ao lado dela, naquela casa que eu idealizava, naquele tempo, mas isso não seria possível. Ela admitiu que me ama (ou me amava). Que sente ciúmes de mim quando me vê brincando com outra amiga no recreio. E que adora quando eu vou de bicicleta até lá. Foi uma revelação importante. Eu admiti que a amava, mas que era tímido demais para dizer pessoalmente. E que às vezes tinha prazer em contemplá-la, subjetivamente. Como estava fazendo com o passado, naquele momento. Contemplando para me fortalecer e entender um pouco mais o que fiz, como vivi. Ia desligar, quando desconfiei de que tudo não passava de um sonho. Acendi a luz do quarto, até me belisquei. Então, ainda na linha, ouvi do celular uma voz de menina. Ela dizia, “alô, alô”. E como ninguém respondia, encerrou o telefonema.“Boa noite. Tenho de desligar porque preciso dormir cedo. Amanhã temos aula. Foi bom falar com você, onde quer que esteja”. Percebi então, que tudo isso não foi um sonho. E que também não foi engano.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Escritório

Não sei se foi por causa de seu jeito simples. Ou pela necessidade da vida. Ele não se tornou cantor, como sonhava, mas contínuo. Era baixinho, de cabelos brancos e lisos, corpo atarracado e rosto com olhos e boca volumosos. Tinha a voz macia, como a de Cole Porter, a de Nat King Cole ou a de Bing Crosby. Seu chefe, infernal, não parava de lhe dar broncas. Aos gritos. Ele não respondia. Apenas saía da sala e ia cumprir as ordens, descendo as escadas cantando inúmeras composições estrangeiras decor, com letra e melodia. Perto do Natal, entoou lindamente I´m dreaming of a White Christmas, após um surto no escritório. Em outro pito, desceu cantarolando Let´s do it. O chefe havia gritado “Faça alguma coisa!” Outro dia, conheci a música Always, de Irving Berlin, pelo timbre aveludado do contínuo. Os corredores pareciam camarins hollywoodianos, onde ele ensaiava. “Eu te amarei sempre...Com um amor que é verdadeiro sempre...” Agia com tranquilidade, quase mecanicamente. Na vez em que ele saiu da sala e iniciou a acelerada e frenética She loves you, dos Beatles, entendi um pouco mais daquela engrenagem que refreava sua cólera. O chefe havia urrado para ele ter pressa.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Pimenta

Maliciosos contumazes costumam dar gargalhadas entre si. Vêem graça apimentada em palavras como encurralado, em frases como estar por trás, ou em qualquer coisa. São tão "criativos" que podem encurralar alguém na mais inesperada situação. No fim das armadilhas, afagam suas frustrações quando um dos seus se rende às suas virtudes verborrágicas e emenda, sem largar o copo de uísque: “seu malandrinho!” Se eu fosse irônico, poderia dizer "Ha, ha, ha..." Mas eu não sou.

Sinagoga

O menininho de dois anos e meio, cabelos curtos e lisos, olhos de jabuticaba, deu uma cambalhota no fundo da sinagoga. Era gostoso rolar naquele tapete macio. A senhora sentada na cadeira próxima olhou séria. O pai, na fileira ao lado, ficou apreensivo. Lá do púlpito, enquanto orava em frente à Torá, o rabino barbudo virou-se para a criança, que se preparava para novo rodopio. Ele sorriu com ternura. E disse amém.

Fogo

O jornalista que não bota a mão no fogo por ninguém passa a mensagem de que ele é uma ilha de moralidade em um oceano de perversão. O mais realista seria ele, antes de fazer tal afirmação, começar a não botar a mão no fogo por ele mesmo. Ou acreditar que ainda há gente honesta neste mundo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Figurinha

Existe uma criança que sempre sobe na borda do sofá para me receber, quando chego do trabalho. Em pé diante da janela da sala, me acena pelo vidro, enquanto não entro na casa. Seu sorriso lindo e o olhar cheio de brilho me remetem a um personagem de fábula infantil. Adora figurinha, principalmente quando tira alguma brilhante do Campeonato Brasileiro. Algo brilha em seu interior, sinalizando a efervescência da vida pedindo passagem. Mais do que com perfeição, chuta a bola com alegria. Já começa a choramingar quando os pais vão para o trabalho. É apaixonado por balas, pedindo aos pulinhos: “uma na outra mão, outra na outra mão...” Até já sabe quem é o Montillo, falando este nome com biquinho no L. E, no fim do dia, adora escutar Paula Fernandes, exigindo que eu coloque suas músicas no CD. Depois de me fazer uma série de questionamentos, resistindo ao sono, finalmente consegue dormir. Eu arrumo seu cobertor, faço carinho em sua face lisa e encosto a porta rezando apenas para que, no outro dia, toda esta rotina comece outra vez, em forma de descoberta. Para ele e para mim.

Busca

Escrevi na busca do Google o nome de um conhecido que já morreu. Não era celebridade. Por isso seu nome não apareceu. Vi sim o nome de seus filhos e parentes. Abateu-me um sentimento vil. Buscar no Google alguém que não mais está entre nós. Foi como se eu estivesse profanando um túmulo. Percebi o quão mesquinha foi minha tentativa e como a nossa curiosidade, alimentada pelas polêmicas da imprensa, às vezes é insana. Como nos preocupamos em preencher nosso mundinho com informações inúteis. O homem que procurei foi alguém que viveu bem. Desfrutou de uma vida mundana e exalava um ar blasé daqueles que querem o melhor. Mas ele já se foi e isso lhe dá uma dimensão cósmica. Sua existência já transpassou a nossa internet, o nosso Google, as nossas aspirações provincianas. Percebi-o em outra dimensão, distante 18 anos desta esfera material. Vi sua passagem com admiração e afeto. Senti que sua vida foi importante por me deixar vê-lo desta maneira após sua morte, compreender que seu esforço em busca da felicidade não foi em vão. Hoje ele descansa. Descansa de nossa mediocridade. Dá um sorriso paciente quando observa nossa pressa infantil. Coloca a mão em nossa consciência quando teclamos bobagens. No momento em que a tela ficou em branco, ao tentar novamente encontrá-lo, desisti de minha procura macabra. Desliguei o computador, no entanto, ciente de que havia recebido todas as informações de que precisava.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Distância

Quando o menino deixou o Rio de Janeiro rumo a São Paulo, seus olhos eram castanhos claros. Ele era gordinho, tinha pintinhas na cara e cabelos também em tom castanho. Estava sempre sorrindo. Sua ironia era fina. Parecia feliz, mesmo tendo se mudado por causa da separação dos pais. Foi com a mãe e as irmãs para a selva de pedra, acinzentada. Bem recebido pelos colegas, até que se adaptou logo. Passou a ir pouco ao Rio. Seu pai, homossexual (o que acelerou a separação), continuou tendo boa vida por lá, morando em uma praia nobre. Vivia nos melhores restaurantes do Leblon, andava em bons carros e em alta velocidade. Parecia um personagem glamouroso de novela das oito. Mas estava longe do filhão. Queria mostrar a ele que tinha qualidades, que era um homem forte. Não apenas uma bicha, estereótipo muito utilizado naquele tempo. O filho, por sua vez, se orgulhava do pai do jeito que ele era. Às vezes lutava contra si para se convencer disso. Durante as brincadeiras no recreio, não demonstrava sua tristeza. Até que disfarçava bem. O fato é que, depois de um tempo, os olhos do garoto ficaram azuis. Da cor do mar e do céu límpido do Rio. Era uma forma de ele carregar, por onde quer que fosse, um pouco da cidade onde nasceu. E, junto com ela, o seu pai.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Verdade

O ginásio estava abarrotado. No palco, Geraldo Vandré discutia com a multidão em alarido, que o defendia. O público queria ver Pra não dizer que não falei das flores em primeiro lugar no Festival. Estava indignado com a vitória de Sabiá, de Tom e Chico. Vandré, iluminado, enfrentou a plateia efervecente. “Gente, Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem todo o nosso respeito.” Novo alarido. Vandré esperava, com paciência, a manifestação arrefecer. E não se intimidava. Dizia o que tinha a dizer, estava impregnado de verdades. “Estamos aqui para cantar. Quem deve julgar é o júri”. Novo frenesi de contestação. Vaias, assobios, gritos de revolta. “Gente”. Quando interrompido pelo barulho, Vandré novamente aguardava o momento certo. Então encerrou a balbúrdia com uma frase. “Gente, a vida não se resume a festivais”. E começou a cantar, do fundo da alma, em tom de dever cumprido. “Caminhando e cantando e seguindo a canção...” A juventude era consciente. O alarido, por isso, aumentou.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Companheiros

Não sou egoísta. Apenas amo meus rins. Quero que o processo de filtrar e excretar impurezas do corpo por meio do ato de urinar seja o melhor possível. Não gosto de maltratá-los. Sinto-me altruísta em me preocupar com meu fígado. Vejo-o como um operário do meu corpo. Agradeço todos os dias por sua textura lisa e seu formato perfeito. Adoro também meu coração, escuto constantemente o seu pulsar e até converso com ele. Digo "calma" quando o percebo acelerado e me sinto ofegante. Ele me pede que eu pare, eu, sempre que posso, paro para descansar, refletir, respirar. E colocar nos meus pulmões, outros dos quais sou fã, o ar mais tranquilo possível. Poderia falar das minhas artérias, pelas quais tenho o maior carinho, das minhas delicadas veias que interligam meu corpo como rotas de seda pura e facilitam minha comunicação interna. Levam meu sangue do Oiapoque ao Chuí, percorrendo com precisão o meu território ornado de plaquetas, leucócitos, complexos de Golgi que precisam ser bem tratados. Fico admirado com o tamanho das minhas células, tão pequeninas e eficientes. Faço de tudo para que elas se alimentem direitinho, para que seus núcleos permaneçam fortes e mantenham as informações preciosas que carrego dentro de mim. Ficaria horas discorrendo sobre meus órgãos, todos disciplinados, exigentes, que só me retribuem satisfatoriamente se estão felizes. São semelhantes em cada indivíduo, mas ao mesmo tempo únicos em cada corpo. Especiais e imprescindíveis à sua maneira. O mais ardiloso de todos, porém, é o meu cérebro. Ele já, por várias vezes, tentou me enganar, induzindo-me a me esquecer dos meus órgãos só porque eu nunca os vi. Cérebro invejoso...Procuro sempre orientá-lo, como a uma criança, para que desenvolva seu lado sábio. Aquele que me conta que meus órgãos me acompanham desde o meu nascimento. São meus mais fieis amigos. São meu espelho. Se eles não estão bem, não fico bem e vice-versa. Não gostaria de viver para desrespeitá-los. Para me esquecer deles. Seria ingraditão. Tenho uma responsabilidade e me sinto na obrigação de cuidar deles. Se fizesse o contrário estaria sendo enganado pelo ardil da minha mente. Nada mais do que isso. Não sou egoísta. Apenas sou solidário aos meus companheiros e a mim mesmo. Para fazer minha parte pela sociedade. Ah, antes que eu me esqueça, gostaria de terminar deixando um caloroso beijo ao meu tão querido pâncreas.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Caçadores

Aquele filme é feito de clichês. A frase daquela música não empolga por ser um clichê. O beijo do casal da novela remete a antigos clichês. Será que a caça de muitos jornalistas e críticos aos clichês não passa de um grande clichê?

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Estranho

Sou detalhista ao extremo no trato com as pessoas, sensível a ponto de travar e avesso a convenções burocráticas. Enquanto boa parte do mundo quer fatos, atitudes e aparência. Para não dizer sangue. Entretanto, bola pra frente. Não critico os que me estranham porque sou estranho e sei que, muitas vezes, o mundo concreto não tem instrumentos para me compreender.

Frieza

Sócrates sempre foi um grande ídolo para mim. Sua presença se destacava no campo. Alto, esguio e extremamente técnico. Elegante, habilidoso. Discreto na comemoração, apenas erguendo o braço. Às vezes frio, às vezes sentimental. Muitas vezes introspectivo. Por tudo isso o admirava. Havia algo do meu pai nele. Uma racionalidade em busca de respostas para os dilemas da vida. Como se o toque de calcanhar fosse uma delas: em vez de girar o corpo, ir para lá e para cá, gesticular...vamos direto ao ponto. Com o tempo, me desapeguei do futebol, por causa de seus descaminhos. Achei que, de certa maneira, tinha me esquecido do Doutor Sócrates, até ficar sabendo que seu estado era grave. Em vez de no campo, estava no leito. Era um sinal de que eu também não era mais criança. Olhei para o meu filho, após receber a notícia pela TV. Ele viu meu rosto preocupado. "O que aconteceu?", perguntou. Fingi que não era nada. Fingi como aprendi a fingir para despistar as decepções. Como fingia que não gostava mais tanto de futebol. Pensei de repente em levar meu filho ao hospital para, junto comigo, ver meu ídolo de longe. Dar uma força a ele, lá do corredor. Mas desisti porque sabia que não iria mais conseguir esconder meus sentimentos. Eu iria chorar.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Menina

A menina era conhecida na escola por "ficar" com muitos meninos. Chamavam-na de “vaquinha”, em risinhos cada vez que ela passava, sem amigas, no pátio no recreio. Tinha 14 anos, cabelos lisos e longos, corpo magro. Sorria pouco. Ela sentia dificuldades de comunicação, talvez medo das pessoas. Mas não quer dizer que o que contavam sobre ela era verdade. As histórias dos adolescentes tinham um tempero apimentado, cruel e exagerado. Talvez tenha dado um beijo em um ou dois meninos. Talvez, tempos depois, tenha transado um pouco mais cedo do que as colegas, por alguma carência. Ou para tentar encontrar um afeto que a acolhesse. A verdade é que outro dia a vi, no clube, já adulta com o seu filho. Ela tinha um ar maternal, responsável, doce. O menininho tinha cabelos lisos e olhos volumosos, brilhantes. Corria batendo uma bola de um lado a outro, sorrindo. Ele exalava doçura, deixando a praça e as árvores perfumadas. A mãe, mulher feita e amadurecida, o observava com amor e orgulho. “Oi mamãe”, o pequeno respondia com a mãozinha aberta. Ele não gostaria de saber que a chamavam de vaquinha.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Convergência

Acordei, divaguei. "Espinosa é natureza, Gabirol é a certeza. De que o homem em sua passagem só precisa de coragem. Para ir atrás de algo comentado por Ibn Ezra. Que é a humildade no agir, representada pela reza. Averrois, por sua vez, abordou com sensatez. A importância da razão, da ciência e religião. Cada uma para ele caminhava em paralelo. A verdade filosófica e a verdade teológica. Dois caminhos importantes, precisavam existir. Sem importar de onde vinham ou para onde deveriam ir. Cristianismo, judaísmo e a nobreza do islã. Em muito se convergem, na essência e na origem. À filosofia, à ciência, ao seu Deus, ao nosso Deus. Diferenças que se unem, com unção sem punição. Isto na Idade Média, que ainda teve São Tomás. A escuridão não foi total, a luz do homem venceu o mal. Repressão que emergiu combatendo a criação. Criação que sobrevive ao poder e à opressão. Não fosse assim, não citaria Espinosa e seu legado. De ideiais imortais, elaboradas lá atrás. A historia continua neste mundo network. I-pad é bom, mas I-pad não reza, viva Gabirol, salve Ibn Ezra." E fui pro trabalho.

Luan

Um burocrata de uma Prefeitura criticou Luan Santana. No refeitório da repartição, destilava a velha filosofia destrutiva daqueles que se acham um nada e culpam o mundo por isso. “É a cultura de massa”, argumentam. Não separam o joio do trigo. Tudo que faz sucesso, para eles, é banal. Não percebem a própria inveja, enquanto vestem trajes simplórios e despojados de qualquer autoestima. A simplicidade é uma característica fundamental. A questão é que ela deve levar a algum lugar, não deixar a pessoa remoer, entre uma e outra colherada de sopa, o ódio ao vizinho de mesa durante a vida inteira. Luan Santana, Justin Bieber, Bruno Mars têm méritos sim. Fazer sucesso requer força interior e talento que motivam a inveja. Muitos jornalistas e atores da Globo também merecem igual reconhecimento. A cultura de massa, quando mal utilizada, é mesmo um fator alienante. Não é o caso desses artistas. Eles despertam algo no público. Cativam, muito mais do que com técnica ou afinação, por revelarem algo de si com poesia e impacto. A voz de Luan pode não ter o preparo adequado, mas talento é muito mais do que isso. Em uma de suas músicas, o jovem cantor diz, com seu timbre único e especial. “No seu olhar enxergo sua alma”. Por isso essas pessoas encantam multidões. Porque revelam a sua alma com o que fazem. Quem as contempla, capta, assimila e, em um fenômeno inexplicável, projeta sonhos, se infla de esperanças, se eleva espiritualmente. De certa maneira, o grande artista também revela a alma de seu público. E presta um serviço, não somente artístico, mas social e religioso. Fazer cada um dos fãs se sentir uma pessoa melhor.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Malandragem

Quando ouço alguém, em geral homem, bradar que a fidelidade a um clube é maior do que a fidelidade a uma mulher, desconfio do machista. Fico com a impressão de que ele tenta revelar a lealdade do torcedor e não percebe que está expondo com isso um desvio de caráter bem comum nos tempos de hoje: o de se gabar de ser malandro. Ele tenta fugir da sua realidade frágil, mas na verdade se aproxima dela sem perceber. O futebol é mesmo um espelho da sociedade. Às vezes invertido.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Medieval

Serei aqui advogado do diabo, só para utilizar um termo bem medieval. Unir o racionalismo científico à fé não é fácil. Requer uma abertura de espírito, para os espiritualistas, e de mente, para os racionalistas, que por si só já é um avanço para a humanidade. É uma forma de conciliar lados opostos. Lembrei-me do embate visceral do medievalista Léo Nafta com o progressista Ludovico Settembrini em A Montanha Mágica. Nafta, em sua violência verborrágica, não soube expressar de forma clara o lado iluminado da Idade Média. Apenas tripudiou o lado iluminista de Settembrini, até a sua própria autodestruição. Nafta suicidou-se no duelo final. Não quer dizer que ele estivesse totalmente errado. É comum nos tempos atuais se jogar o bebê junto com a água, como se diz o jargão popular. Por isso a Idade Média é tratada apenas como Idade das Trevas. Justo o período em que surgiu a escolástica para unir a ciência à religião. Representada por Santo Agostinho, no início, e São Tomás de Aquino, no fim, só por isso esta era já pode ser considerada iluminada. Depois vieram o antropocentrismo, o Renascimento e o Modernismo com suas cores frenéticas e certa arrogância questionadora. Que pregava uma ruptura de dogmas, mas negava a tentativa semelhante que a própria escolástica buscou realizar. Criou assim seus próprios dogmas, com ares de novidade. Esses modernos são muito presunçosos mesmo...Mas, calma, não vou me suicidar. Prefiro tentar a conciliação, da minha fé com a minha razão.

domingo, 21 de agosto de 2011

Párias

Deu um abraço afetuoso no menino e sentiu-se repelido. Ninguém olha para o padrasto. Ela nem sabia que ele era casado e agora não quer se separar da esposa. Ninguém olha para a amante. Desde jovem dedicou sua vida à religião, fez voto de castidade pelo bem e o chamam de retrógrado. Ninguém olha para o padre. O mendigo tem aparência tão repugnante que já é considerado um espantalho na cidade. Ninguém olha para o pobre. O pobre tem um pouco de padrasto, de amante e de padre. Mas todos nós também. Acontece que muitos de nós fingimos que nosso lado padrasto, amante e padre são figuras bem-sucedidas. Pobres coitados de nós.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Fantasmas

Fantasmas podem ser entidades sobrenaturais não-visíveis, esquecidas pelo mundo dos vivos. Somente de vez em quando são lembradas, gerando mais terror do que compaixão. Há pessoas que são como fantasmas para os outros. É como se não existissem, apenas flanam sua desmaterialização pelo mundo. Para esses outros, quando não aterrorizam, fantasmas são apenas fantasmas. “Deixem eles lá”, dizem. Há pessoas que dizem isso sobre outras pessoas. “Deixem elas lá”. Para tais pessoas, esses “fantasmas” não ouvem, não choram, não sentem. Elas só acreditam no que elas vêem. O outro é uma sombra, uma alucinação. Por isso elas não acreditam nos sentimentos. Os sentimentos são invisíveis. Por isso elas pensam que os sentimentos são fantasmas.

Sonhos

Sentaram na mesinha ao lado da janela. Nunca tinham tomado café juntos. Ele, atribulado pelo trabalho cheio de competitividade, que deixava sua rotina sem cor. Ela, ocupada produtora de moda, estilo moderno e independente. Tinha cabelos lisos, loiros, pele alva, olhos escuros e brilhantes, como uma noite luminosa. Por esbanjar simpatia, a moça logo despertou o interesse dele, um eterno romântico. Ele pode falar de coisas sobre sua vida, de suas ideias, sentindo-se leve e fascinado. Sentia-se flanar ao lado dela por entre as mesas, enquanto degustava o café sem perceber. Ficou tão livre e empolgado que não viu o tempo passar na lanchonete. Ela, de repente, olhou para o relógio. “Tenho de ir”, disse. Ele, como se tivesse despencado na terra, vindo de um lindo sonho, disfarçou. “Claro, também estou atrasado”. Lembrou-se naquele momento da frase de Pirandello, em que as mulheres, como os sonhos, nunca são como as imaginamos. E voltou para sua dura realidade cinzenta, inconformado. Sem deixar de questioná-la, em pensamento. “Por que em encontros assim tem de haver sempre a despedida?”

Babe

Hoje faz 32 anos que perdi minha vó materna. Ela morou na minha casa por anos, era doce, paciente e carinhosa. Eu ficava no seu quarto enquanto esperava minha mãe chegar da faculdade à noite. Sua companhia era adorável, ela transmitia tranquilidade, após ter vivido experiências difíceis de solidão, quando deixou a Polônia ainda jovem em um navio. Encontrou lá na minha casa um porto seguro, alegrando-se com a luz que brilhava nos olhos de seus netos, crianças com a vida pela frente. Em retribuição, dedicava seu amor sincero, que se perpetuou em mim. Hoje faz trinta e dois anos que não a vejo. Foi no dia que acabou a novela Pai Heroi. Com 32 anos, um homem já pode ser um pai heroi, o meu objetivo hoje, também em homenagem a ela.

Futebol

Recebi a seguinte mensagem do meu melhor amigo, Vidigal. "Putz, o jornalismo e o futebol (visto do ponto de vista das torcidas e dos jornalistas em geral) têm me cansado tanto, Eugenio, tanto. Por isso gosto de jogar bola com o Raul, falar de Neymar etc. e tal com ele, ele tem uma outra visão, uma visão romântica, visão de quem está descobrindo o mundo, visão diferente dos demais". E o Eugenio responde que, por causa do Raul, voltou a amar o futebol.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Frase

Enquanto manuseava folhas antigas de um jornal, encadernadas em capa dura, viu o diretor do arquivo se aproximar. Foi surpreendido por uma bronca. “Não posso aceitar que você vire as páginas assim”, disse o burocrata, bem ao estilo de alguns ex-comunistas que, apenas com óculos modernizados e ar blasé, colocaram terno e gravata. Não acreditavam em Deus, hoje acreditam na política de seus chefes políticos. Ele se sentiu indignado com a interpelação. Manuseava de forma rápida, sim, mas com tanta devoção e segurança que seria impossível rasgar aqueles papeis amarelados pelo tempo e pela história que abrigavam. Sentiu-se invadido, acusado de forma vil, rotulado sem direito a explicação. O homem só fez aquilo para mostrar autoridade. O jovem ficou sem graça, nem continuou seu trabalho. Mas, passado algum tempo, percebeu que até gostou da introdução da frase. Ela serviu como uma epifania, um estalo em sua vida. “Não posso aceitar, não posso aceitar...” E passou a usá-la em seu manual ético, como instrumento para o seu dia-a-dia. Em várias circunstâncias, defendia-se e argumentava, consigo e com os outros, por meio destas três palavras. “Não posso aceitar que me cobrem essa taxa ilegal”. “Não posso aceitar essa mentira cínica”. “Não posso aceitar essa maneira leviana de lidar com as pessoas”. “Não posso aceitar a falta de gentileza”. “Não posso aceitar esse tipo de tratamento com esta criança”. “Não posso aceitar a fome da Somália”. “Não posso aceitar o dito pelo não dito”. “Não posso aceitar que me chamem de desonesto”. “Não posso aceitar que pensem que eu faço o que eles fazem, por acharem que todos são corruptos”. Muitas das coisas que ele não poderia aceitar, ele não pode modificar. Outras sim, ainda bem. Graças à tal frase, que o acabrunhou no arquivo e que ficou nele para sempre, padronizou um modelo útil de comunicação. Sim, é possível se tirar aprendizados de uma injustiça, extrair alguma sabedoria da insensatez. Isso, enfim, ele pode aceitar.

sábado, 13 de agosto de 2011

Cinema

Não sei conviver com o mau-humor. Estou para ver alguém que saiba. Mas eu sei menos do que os outros. Nesse caso, o velho conselho de que devemos sair de nós mesmos e nos vermos em um palco, para abstrair as situações, é pura retórica. Ninguém gosta de ser criticado porque filosofa sobre a vida. Ninguém gosta de ser interpelado quando ensina algo a uma criança. E ouvir cobranças em demasia? Não vai ao banco pagar conta, trabalha menos do que eu, não sabe se vestir direito...Já seria ruim ouvir isso se fosse verdade. Mas são falácias. A cada acusação, uma distorção autoprojetada. E a cada resposta, ainda que dura, uma acusação. Abstrair tudo isso e se colocar em uma comédia romântica não é a saída. Está mais para drama de Pier Paolo Pasolini, na desconstrução de famílias, do que para enredo adocicado em que Sandra Bullock briga feio com o namorado, faz birrinha de menina, para divertimento do público, e depois tudo termina bem. Não, não sei conviver com o mau-humor. E se algum diretor atrapalhado for fazer disso um romance ideal, daqueles em que os opostos se atraem, estará cometendo um pecado cinematográfico. Sob pena de, a cada sessão do filme, ver a plateia sair no meio, revoltada, e ir direto para a bilheteria pedir o dinheiro de volta.







sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Vovô

O menininho um dia soube que tinha tal avô, mas estranhou nunca receber visitas dele. O pai lhe contou que ele se chamava vô Miguel. E o menino, antes de dormir, passou a perguntar sempre sobre o vô Miguel. O pai contou que o vô Miguel o levava a jogos de futebol. Num deles, o vô Miguel acertou quando disse que o Vaguinho era o “mapa da mina” para o time. O Vaguinho fez o gol do Corinthians, naquele empate com o Santos, em um Morumbi lotado. Na saída, ele só se lembrava do seu pai, o vô Miguel, o conduzindo no meio da multidão. Contou então que o vô Miguel o levava, junto com a irmã, todos os dias para a escola, antes de ir para o trabalho. Ele era médico, atuava em três lugares e trabalhava o dia inteiro. Voltava para casa para almoçar, pegar algumas contas e sair na correria daqueles dias atribulados. No fim do dia, ele sempre voltava para casa com um exemplar do Jornal da Tarde. O filho abria na parte de esportes e ficava admirando os desenhos que dois cartunistas faziam dos gols da rodada. Eram desenhos da realidade, transformados em linhas artísticas que davam vazão à imaginação. Contou para a criança que o vô Miguel sempre lhe dizia, em tom de conselho, para ser “bom de bola e bom na escola” e que, um dia, ele saltou o alambrado baixinho do ginásio para atender o filho que se machucara em um jogo de futsal. Todo mundo viu e achou legal a cena, comparando-a com o slogan de uma propaganda do Gelol, que dizia “não basta ser pai, tem de participar, não basta ser remédio, tem de ser Gelol”. Contou até que o vô Miguel ostentava um imponente bigode, que contrastava com seu jeito terno e sensível. Pois bem, o menininho soube de tudo isso e um dia se calou. Nunca mais perguntou nada sobre o vô Miguel, nas noites que o pai o acompanhava para dormir no berço. A imagem do vô Miguel, que já não estava entre nós, se diluiu como um sonho na mente do menino. Mas algo de real permaneceu, junto com o silêncio premeditado. O menino agora já conhecia, sem necessitar de palavras, a história do vô Miguel. Não queria mais falar sobre ela, para evitar qualquer tipo de dor. Queria apenas intuir. Então, o vô Miguel se despediu dele, para se transformar em lições e ensinamentos do dia-a-dia, durante a longa jornada que ele teria pela frente. O vô Miguel ficou em algum lugar lá dentro da criança, sempre à disposição. Como um amigo que nunca vimos. Como uma saudade de alguém que não conhecemos.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Revisão

Tentei escrever sobre Israel (no post Sinai). Enrolei-me. Quando o texto fica muito longo e eloquente, é porque os argumentos estão definhando. E é porque o assunto é complexo. No início, critiquei as recentes manifestações por mais habitações e qualidade de vida. Usei como mote o idealismo e o socialismo-trabalhista que construíram o país. Então me deparei com o capitalismo desenfreado que está gerando concentração de renda e injustiça social, ainda que pequena se comparada à de países pobres. Senti que os manifestantes têm suas razões. O governo pode estar enganando o povo, com o axioma de que precisa controlar gastos em função do alto investimento em segurança. E, não falando a verdade, é ele que pode estar ameaçando a continuidade do país. Deparei-me com a neurastenia daquela atmosfera. Essencialmente socialista, a nação judaica possui aberrações capitalistas, especulação imobiliária e uma evasão alta de divisas. Desenvolveu-se mesmo com as rusgas entre religiosos e trabalhadores, desde os idos de 1940. Os religiosos não percebiam que o suor, enevoado por argumentos céticos, era um símbolo de fé e espiritualidade. E os trabalhadores não viam que a religião é um ato de solidariedade. Os conflitos existem até hoje e ecoam pelo resto do planeta. Todos os países carregam, em sua essência, essas contradições neuróticas. Não é à toa que tudo acontece naquela região milenar e bíblica. Israel é, afinal, o umbigo da humanidade.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Sinai

Imigrantes judeus já moraram em amplas tendas de acampamentos para construir Israel nos anos 40 e 50. Médicos europeus tiveram de aprender a plantar cebola, dentistas e intelectuais se esforçaram para saber como colher laranjas e trabalhar em obras, com pá e inchada nas mãos desacostumadas com a labuta. O idealismo fez Israel renascer, se defender de países hostis, em busca de suprir as necessidades básicas e humanas de um povo. Quando Israel venceu a Guerra dos Seis Dias, a população saiu às ruas aliviada, festejando a continuidade do país, que esteve seriamente ameaçada. Hoje, a hostilidade ainda existe, porém aliada ao fenômeno da globalização, que trouxe junto o consumismo, as exigências materiais - muitas delas fúteis -, modificando o perfil do povo israelense. Por outro lado, a corrupção, a ganância e a especulação crescem em proporção semelhante. Parece um pouco o episódio dos judeus adorando a estátua de ouro, se esquecendo de seus períodos difíceis, melindrando-se como crianças mimadas contra o líder Moisés que não regressava do Monte Sinai, trazendo as tábuas da lei, o código de moral que valoriza a ética, o respeito ao próximo, o desapego de bens materiais não tão relevantes, a solidariadade. As reivindicações hoje são por moradias melhores, em maior número, em um país com desemprego controlado, que não tem desabrigados. A Saúde e a Educação, apesar das dificuldaes, se mantêm em um patamar de primeiro mundo. O governo, bom ou mau, diferentemente da maioria dos países do Oriente Médio, foi democraticamente eleito. Nestas manifestações, cada um parece estar falando por si, o que não é bom para Israel. Não será surpresa se daqui a pouco a população exigir melhores i-pods, blues skies, ou aparelhos cibernéticos de última geração. A mistura entre essência trabalhista, socialista e a realidade capitalista estão confundindo a identidade do país, cujo foco principal deveria ser o judaísmo, que abarca com sabedoria tanto o socialismo quanto o capitalismo. Manifestações são direito de qualquer sociedade. Porém, a humildade precisa voltar a esta Israel distanciada de seu espiritualismo, envolvida pelas tentações e conflitos da modernidade. Tempos bem mais difíceis ficaram para trás, o país se consolidou como potência tecnológica, porém é preciso manter os pés no chão. Sem paranoia, mas com serenidade e um pouco do antigo idealismo. O mundo mudou. Israel, com ele. Mas duas coisas se perpetuam: uma é a necessidade de o governo financiar a segurança, o que demanda grande parte do orçamento. Outra é o Monte Sinai. Ele continua o mesmo. De lá, a voz trovejante de Deus e os passos decididos e cansados do velho Moisés ainda ecoam. E se espalham por todas as sinagogas, como a razão de ser do judaísmo - o combustível de uma nação. A verdadeira morada onde habita o coração de um povo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Roqueiro

Além de vocalista de rock, Bruce Dickinson é piloto de avião, dos bons. As melodias que canta ecoam pelas nuvens, aterrissam em palcos estranhos, vindas de suas entranhas, em viagens intermináveis, percorrendo o infinito por meio de sua voz, até o grito intenso, rouco e melodioso se calar, depois subir novamente, em pulmões turbinados, como se o pássaro metálico transportasse um rugido de dor devido a pancadas nas suas costelas e como se as suas costelas fossem a guitarra fazendo o som aumentar, em proporção às batidas de seu coração, enriquecendo naturalmente a relação lírica entre a rebeldia e a paixão, na dualidade da existência, que só se unifica de verdade quando o ídolo se vê homem, condutor do destino e conduzido por ele, entoando acordes que transpõem o horizonte de sua história, tocam a veia de uma pessoa e até das multidões, levando a elas uma mensagem incontestável. De que nesta vida somos todos pilotos e passageiros.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Astro

O Astro une o passado com o presente, de uma maneira terna, quase mística. Bem ao estilo de seu protagonista, Herculano, que muito se identifica com a temática esperançosa dos anos 70, na letra de Easy, do The Commodores. “Everybody wants me to be what they want me to be. I'm not happy when I try to fake it. No!” (Todos querem que eu seja o que eles querem que eu seja. Eu não estou feliz quando tento fingir. Não!). O ator Lombardi quase se confunde com o ator Cuoco, mas sem perder a identidade. Coloca à sua maneira o jeito simples e humano do protagonista. Um astro, com poderes sensitivos, fonte de desconfianças e perseguições, morando de aluguel. Um homem comum, em busca do amor e do reconhecimento. Conheço esse tipo. Tenho 1m76 de altura, considerada média. Sempre fui um aluno nota 6. Na adolescência, não conseguia ficar com a menina mais bonita da classe. Entrei na faculdade tirando a nota da média. Não sei o que é ganhar um sorteio. Nos exames do coração, o resultado é bom, nunca ruim ou ótimo. Meu colesterol está no limite suportável, em 200. Jamais venci um concurso de crônicas. Nunca fui o melhor, em nada. E hoje ainda me sinto pior ao ler o feed de notícias do facebook – fonte de tanta presunção. Não há magia que me revele o quanto posso estar enganado em relação à minha mediocridade, no sentido literal da palavra. Sempre tentei conversar com Deus, sou crente que ele existe, mas nunca recebi respostas objetivas. Tampouco vi espíritos, como muitos o fazem. Mesmo assim acredito nestas revelações. Pelo milagre de estar vivo, esperançoso, e não por não ser o melhor. É pela paixão que me move que me sinto o astro. Visto-me de místico, com turbante e pedra ametista. Não acredito no que apenas vejo. Acredito no que sinto e no que escrevo.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Ondas

O horizonte engana. Os homens vaidosos pensam que por trás de sua linha há o infinito, como se pudessem tudo, não houvesse limites para além do mar. Já os pessimistas imaginam um abismo na divisa entre o sol e o mar, quando um barco distante vai desaparecendo em suas vistas. O horizonte é a prova de que nem tudo o que vemos é real. As ondas ligam continentes. Quando estouram na areia são como mensageiras de outras paragens. O mar é um sinal concreto de vínculo entre vários pontos geográficos. Em Iracema, de José de Alencar, o guerreiro branco Martim, ao chegar à praia, se vê envolvido por uma sensação de alívio. Ele veio a pé, fugindo dos guerreiros tabajaras desde o interior do Ceará. O local o remete à sua saudosa pátria, Portugal. “Arrojou-se nas ondas e pensou banhar seu corpo nas águas da pátria, como banhara sua alma nas saudades dela”, diz um trecho. Quando volta para Portugal, com um filho e sem o seu amor, arrepende-se das ondulações da maré de seu exílio. Com a distância, no tempo e no espaço, passa também a sentir falta do Brasil - do outro lado daquele mesmo oceano. Assim é a vida, assim é o mar. Aquilo que temos são ilhas desertas. O que não temos, são portos seguros. Todos muito reais, como a saudade. Todos muito ilusórios, como o horizonte.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Boiada

Os vegetarianos se iludem porque é impossível não se comprometer. A morte dolorosa do boi, do cervo ou da galinha realmente é triste nesta guerra pela sobrevivência entre as espécies. Ainda mais para o homem, animal dotado de razão. O sentimento, unido à consciência, permite o discernimento e a reflexão, que conduzem à compaixão. Mas não dá para se livrar do fardo de se impor a outros seres vivos. Alimentar-se de vegetais, afinal, é também uma forma de destruir vidas. O vegetal também respira, se desenvolve e morre naturalmente. Assim como destruir florestas inadvertidamente para plantar soja é um crime. Justo a soja, um alimento utilizado pelos vegetarianos para substituir a carne. O jornalista e o escritor têm um dilema semelhante. Como escrever sem expelir um cisco sequer que machuque, obedecendo a uma ética que evita qualquer ofensa, colocando-se totalmente na pele do outro, impedindo na totalidade que alguém se macule? É o ideal, mas é quase impossível. Tento ser assim, me vejo isolado, antissocial até. Sinto às vezes que minhas palavras soam aos outros como as de um padre em meio a um bordel. Para ser jornalista ou escritor, é preciso se contaminar com uma astúcia que, certamente, deixará alguns feridos. Agora, por exemplo, me aventurei um pouco e posso estar melindrando os vegetarianos. As palavras, para ter repercussão, estão cada vez mais carnívoras.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Santo

Para São Tomás de Aquino, o homem, em sua forma material é humano. Em sua forma substancial é divino. Precisa de outros homens para sobreviver. Sua natureza é social. O Estado serve apenas para organizar essa necessidade, em que cada um dá um pouco de si e recebe o que é justo, o que é seu. Esse conceito conduziu a vida de Cristo, possibilitou a Tomás se tornar santo. Todo homem tem o seu lado santo. Todo santo tem o seu lado homem. Basta se abrir para o lampejo divino, ao se desarmar, por exemplo, para um sorriso humano. Ao apreciar a cena de um menino de cabelos lisos se esticar para acariciar o focinho de um cavalo no estábulo. É o toque divino nas mãos de um menino. E se este garoto for um corrupto no futuro? Será um homem que se esqueceu de sua essência santa. Mais um.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Instante

Neymar vinha correndo pela direita, chegou ao fundo já olhando, procurando Ronaldo. Podia cruzar para qualquer um, mas queria que fosse Ronaldo, que se despedia. Mesmo gordo, lento, Ronaldo captou a intenção do menino, fez um esforço genial e surgiu na entrada da área lotada, por entre os zagueiros, como um desbravador de uma floresta. Não gritou, nem pediu a bola. Sabia que ela viria, como veio, tocada para trás, para que ele finalizasse de primeira. Todas essas linhas simbolizam uma conversa telepática, instantânea, entre dois craques, um que surgia, outro que se punha. Como a noite que se transforma em dia, um raro momento de transição. Um amanhecer, que se fez em um sopro.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Álbum

Vejo a foto de uma família no Facebook. Estão encostados em uma cerca, à beira de uma estrada de terra, com campos e montanhas se avolumando por trás. A mãe, elegante em uma blusa de seda branca, calça preta e salto alto. De maquiagem serena, ela usa óculos escuros, com um ar de responsabilidade que parece tentar suprir a ausência do pai. Ela está abraçando seu filhinho, um pequeno menino loiro, cabelos longos, olhar inocente. Uma das mãos o segura, de leve, nos ombros. A outra está entrelaçada em suas mãos. Ao lado das irmãs mais velhas, uma emburrada e outra sorridente, e da avó, também distinta, o garoto parece olhar para mim e me dar um recado. "Vou crescer, o mundo não é só uma fábula de Peter Pan". E ele cresceu, pelo que constatei no site, que hoje propicia verdadeiros álbuns de família em exposição. Está diferente do menino de outrora, entrelaçado à mãe. Seus cabelos ficaram ralos, ele passou por muitas vivências, separações, perdas. Seu olhar ganhou malícia. Suas palavras, ironia. Até certo ponto é triste vê-lo menino, sabendo que um dia aquela foto aconchegante seria apenas uma recordação de adulto, com toda aquela família espalhada, não mais reunida em um único lar. Também eu sinto falta da proteção da infância, apesar de todos os seus percalços. De estar ao lado do meu pai, o Céu, de minha irmã, a Terra e de minha mãe, a Vida. Vi que o menino da foto, sob os braços da mãe - hoje uma velhinha -, desde aquela época me olhava intrigado porque parecia saber muito sobre mim. Daí vinha seu olhar de desafio, um tanto intimidado, sentindo que não iria conseguir me superar, como não impediu muitas frustrações que deixaram marcas posteriormente. Eh...Ele, o menino, já me conhecia. E me emociono ao vê-lo tão menino, como me emociono ao ver meu filho vivendo agora a sua fase de menino. Meu filho é meu Universo. Meu nome é Tempo.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Preguiça

Uns têm preguiça de ler. Outros, de escrever. Outros ainda relutam em se levantar de manhã. Há os que não conseguem se organizar internamente: dá preguiça. Assim como pensar em adversidades e seguir em frente, para muitos, é uma tarefa árdua, tão impossível que os leva a se encostar, buscar o isolamento, a desistência, a acomodação de um bom livro em um café no meio da tarde. Sartre dizia “O inferno são os outros”. É verdade, mas também é infernal olharmos para nós mesmos. Somos muitos outros em um só. Por isso prefiro o bem. Irving Berlin contrariou intelectuais falando das belezas humanas sem ser piegas. Prefiro as letras doces de Berlin, com todo o sofrimento em sua vida, à amargura de alguns filósofos, cujo ceticismo esconde a vaidade e um medo de criança. Só tenho preguiça de explicar por quê.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Julgamento

O amor às vezes já nasce com um quê de proibido. Gera culpa, escapa pelas frestas das aparências e surge em um palco escuro e empoeirado de emoções que tentamos esconder. Há até um filme chamado “O Processo do Desejo”. E no Fórum Judicial, Jurídico e Judiciário da vida, a jurisprudência de minha alma humana se sobrepõe a regras regimentais e antecipa seu juramento. Tiro então a toga de juiz rígido e juro que te amo. E sempre que ouço um “eu também”, me sinto absolvido.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Grandeza

Nunca gosto de ver o sofrimento alheio. Aliás, acho que o futebol, maquiado pelo aspecto lúdico das rivalidades, alimenta o germe que, lá na frente, irá desembocar na intolerância e violência. Mas é um alívio ver o São Paulo um pouco por baixo. Pelo menos minha caixa de e-mails ficará, durante algum tempo, livre daquelas mensagens chatas querendo impor uma grandeza que não está ao alcance de ninguém.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Torcedores

Dois torcedores se encontraram, casualmente, em frente à Igreja da Consolação. Um corintiano, o outro santista. Não se conheciam e não se falaram. Supersticiosos, iriam rezar o Pai Nosso para seus times, que, logo mais à noite, se enfrentariam na inédita decisão da Libertadores. Só dirigiriam súplicas a esta causa, a razão de suas vidas. De repente, um deles avistou um mendigo, deitado em frente à escadaria, desamparado, traje roto, cabelos duros, olhar acinzentado pelas agruras da cidade. Entregue, já devia ter desistido de rezar. Ao mesmo tempo, o outro viu um menino magrinho, descalço, pedindo esmola na rua e sendo desprezado pelos que passavam. Continuaram sem se falar. Mas havia alguma força no ar que transformou a rivalidade em compaixão. Sentiram que seus trajes e amuletos revelavam uma compulsão. O fanatismo clubístico ganhou uma feição de máscara, que escondia alguma dor profunda, por trás dos gritos nos estádios. Então se ajoelharam e rezaram em frente ao púlpito. O corintiano rezou pelo mendigo. O santista orou pelo menino. Sem perceber, se esqueceram de seus times. Curiosamente ainda torciam de forma diferente. Um para o mendigo, outro para o menino. Isso, porém, era o de menos. No fundo, ambos haviam unificado suas agremiações, suas crenças, suas religiões, pedindo a mesma coisa. Rezando pelos homens. Para que o menino nunca fosse um mendigo e para que o mendigo, um dia, voltasse a ser menino.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Prisão

Não consigo escrever textos, destes, com apetrechos.
Destes, com imagem e contexto. Detalhados em toques certeiros.
Espalhados por palavras precisas, desenhadas por contornos geométricos. Que formam figuras, cenas e histórias exatas. Cheias de ação, verossimilhanças e esperanças. Com lustres típicos, móveis rústicos, caixas de som, tensões e pessoas. Com diálogos nítidos, perfeitos no tom, na gíria, na reverência. Então busco no meu baú, ideias que tragam à tona estes textos, estes cenários de cinema. E peço, invejoso dos outros, que venham a mim e superem barreiras. E que rompam as nuvens negras que cobrem o sol escaldante do meu potencial. E olho para o céu e vejo as nuvens fecharem o tempo. Então minha visão fica plúmbea, não escrevo textos, formo frases esquálidas, desmilinguidas, inanimadas, ressecadas como o rosto de Tom Zé, sou como a afinação de Tom Zé, nas minhas sequências sedentas da luz que colore, que as encham, ansiosas pelo vento que as movimente, à espera do calor que as aqueça, e que sopre para longe, ventilando as angústias que cegam, a timidez, antes que a força interna chegue para mim e diga esqueça, esqueça. Então não resisto, largo o teclado e ordeno para o meu lado criativo, ainda ofegante de tanto chacoalhar as grades da prisão: adormeça, adormeça.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Troco

Ele tinha pressa. Mas a moça do caixa não registrava com rapidez, sempre envolta em problemas com a máquina. Baixinha, com a touca da empresa cobrindo seus cabelos castanhos, tinha o olhar inibido e difuso. O semblante era sério, quase impenetrável. Um cliente típico dos dias de hoje, irritado e egocêntrico, poderia atribuir-lhe certo descaso. Mas não era. Talvez fosse desejo de não estar ali. Então, antes de agir por impulso e reclamar, como ele já estava prestes a fazer, respirou e se conteve. Pegou uma revista no balcão do caixa e leu as manchetes. Imaginou a vida da moça. Visualizou-a acordando às 5h da manhã, numa região da periferia, para chegar àquela padaria às 8h30, após pegar ônibus e trem lotados. Intuiu que ela não devia receber mais de R$ 600 pelo trabalho e que se sentia pressionada diante de tantas obrigações, como ajudar a família, tentar estudar, ter sonhos para o futuro, dos quais muitos morreriam com a agonia das adversidades. Por isso ele não reclamou. É verdade que ela tinha um emprego e podia ser feliz, apesar das dificuldades. A reclamação, porém, seria pequena diante de tudo isso. E não iria amenizar os próprios problemas dele. Não substituiria a vontade que tinha de gritar com o chefe, a chateação de ter de trabalhar longe de casa, a tensão de sua rotina atribulada. Aqueles pensamentos, cuja duração não ultrapassou dois minutos, diluíram sua impaciência. A cena terminou com ele sorrindo para a moça, num gesto que compensou as frustrações de ambos no dia-a-dia. O ato adoçou a realidade, trouxe leveza à cena carregada de tensão, que logo se dissipou, tornando a vida um pouco mais fácil. O sorriso foi retribuído. Junto com o troco, finalmente.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Solidária

Na inveja, prevalece o desejo de sugar o que o outro tem. Na pena, o desejo predominante é o de preencher o que o outro não tem. Há pessoas, com certa arrogância, que se recusam a sentir e a ser fontes de pena, por darem a ela o disfarce de mesquinhez. Livram-se da responsabilidade de lidar com a pena, deles e alheia, criticando-a como uma espécie de alívio, confundindo-a com o sadismo. Acusam os que são tocados pela pena. Dizem que eles afirmam: "Pelo menos não é comigo". Mas a pena, ou melhor, compaixão, é a inveja ao contrário. Sem a pena, não existiria o amor ao próximo, nem Madre Teresa de Calcutá, nem os que lutaram pela justiça social no mundo. Sem a pena, Jesus não teria entrado para a história dos humildes. Tampouco José teria perdoado seus irmãos e ajudado a dar continuidade ao povo judeu. Ter pena do inimigo é um passo para o fim de um conflito. Sentir pena é olhar o outro com olhos compreensivos. É ser humilde com o humilde e se sentir humilde diante do próprio sofrer. É um aprendizado, não é a auto-flagelação. É apenas ter a nobreza de sentir o drama do que sofre. E permitir que os outros compartilhem a sua dor. A pena, portanto, não é atroz, ainda mais se for complementada com a atitude de ajuda. E, se não for, pelo menos é a solidariedade do sentimento.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Lembranças

Tem se lembrado bastante de seu pai e de como era sua mãe, hoje uma senhora. Olha de frente para o passado e, como em um espelho, vê o rosto de um menino. Ele se transporta para dentro do espelho; revive algumas brigas no carro; as dificuldades do casal; o dia em que o pai disse o futuro a Deus pertence no bar-mitvá, causando confusão com a mãe; a vez em que ele fraquejou e não conseguiu gravar o jogo importante na TV; o dia em que ele, colocando para fora sua raiva, arrancou a antena de um carro estacionado no portão de casa, na frente do garoto; as dificuldades que ele tinha em enfrentar o dia-a-dia. Hoje, especificamente, o filho está se lembrando mais dessas coisas do que dos dias em que iam juntos a jogos do Corinthians, ainda no Morumbi que lotava; no trajeto diário que fazia ao lado da irmã, quando ele os conduzia até a escola; no fato do pai ter, apesar de seus medos profundos, conseguido se formar médico, dos bons, ter casado e tido filhos. E assim como acontece em relação à sua mãe, ele se lembra de tudo em uma saudável inversão. O que era maçante no passado, hoje é motivo de orgulho. Mas o amor permanece intacto. Ou melhor, potencializado. Ele finalmente entendeu o significado de amor verdadeiro, aquele que vence o tempo e se eterniza na lembrança, transforma em carcaças inseguranças infantis. É uma ternura, que, de tão grande, ele não consegue colocar as mãos. É um abraço dado apenas por um sorriso de recordação. É o beijo estampado no rosto por meio de uma lágrima de saudade. É um amor que se eleva acima dos remorsos, vai além das palavras. Não é um amor apenas idealizado pelas qualidades. É um amor compreensivo, esculpido pelas fraquezas humanas, fontes de sabedoria e aprendizado. Base mais consistente para o busto de um herói.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Gato

Livros de Stephen King abordam a morte como tema. Uns personagens lidam melhor com o fato de que um dia irão morrer. Outros não. Em O Cemitério, o gato de uma menina morre atropelado enquanto ela viajava. Ela o adorava, temia que se fosse. Tinha crises ao se deparar com aquela realidade, que estava apenas à espera de seu tempo para se efetivar. Seu pai, antes que ela descobrisse, enterrou o bicho em um cemitério sobrenatural, que propiciava reencarnações. O gato retornou, concretamente, de maneira assustadora. Mole, taciturno, sem o olhar que brilhava em vida. De volta da viagem, a menina, ignorando os acontecimentos, notou a diferença. Sentiu certa repugnância do animalzinho outrora dócil e meigo. Intuiu que, mesmo andando, comendo e dormindo, a morte estava nele. Percebendo que não era o mesmo, a garota já não se assustava com a possibilidade de perdê-lo para sempre. O medo da morte passou, assim como a vida passa, naturalmente.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Luar

Naquele apartamento, a sala tinha móveis simples, dois sofás e uma mesa de vidro. Na geladeirinha no canto da cozinha, apenas o necessário. Depois vinha um corredor, que dava para um banheiro e um amplo quarto acarpetado. No armário embutido, não havia só roupas. Havia sua coleção de miniaturas, colocada em estantes internas, como se ele colocasse naquele armário não só sua vestimenta aparente, mas a necessidade de guardar e organizar as pequenas riquezas que tinha dentro de si. Da janela, avistava uma linha de prédios que davam para o céu amplo da Marginal. Escolheu morar lá por divagação. Ao observar aquela vista, lembrou-se da música do Yes, Owner of a lonely heart, famosa em sua adolescência e, temperado de uma nostalgia, se encantou com o lugar. Era ótimo. Os porteiros eram como parentes. Os vizinhos, companheiros de morada. Ele escolhia os amigos que vinham. Só os mais próximos. Só namoradas com um vínculo especial. Nisto, sua coleção nunca foi muito grande. Os filmes e as novelas também o preenchiam, até a madrugada. Gostava ainda de abrir a janela e ver que a lua estava lá, convidativa e iluminada. Ela era como uma pessoa diferente de tantas outras. Dela ele não tinha medo. Chegou a ver o seu rosto naquela superfície prateada. Antes de fechar a janela, ele sempre falava baixinho, em tom solene. “Boa noite, lua”. Era como uma reza, um pedido de proteção.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

1982

Cada festa de bar-mitzvá, na sua fase dos 13 anos, era o pedaço de um quadro para ele. O quadro de sua adolescência. Também havia os bailinhos e aquela atmosfera de esperança e incertezas. Ele dançava cheio de vergonha com a menina amada, ao som de Nikka Costa, Gino Vanelli e Chicago, nos salões e nas salas das casas anfitriãs. Em paralelo, sua esperança dançava no mesmo ritmo com o seu medo.

Noites

Antes de alguns bar-mitzvás noturnos, ele dormia à tarde, para chegar descansado à festa no buffet. Ouvia no rádio o bordão que o encantava, em uma voz feminina tranquila: “É noite, tudo se sabe”. E desfrutava, no quarto escuro, daquela expectativa adolescente diante de um grande acontecimento, de frente para uma noite ampla.

Açaí

Cada bar-mitzvá e cada uma destas festinhas foram mesmo um grande acontecimento. Pousa em sua memória a lembrança do contentamento que o envolveu ao ver todos se mobilizando para ouvi-lo cantar na sua cerimônia religiosa. Por isso cantou bem, com a alma, o texto da Haftará de Isaías. E na benção após esta reza, caprichou na melodiosa canção, causando a admiração de todos. Então seus pensamentos pularam para a festa de um amigo, em que o comentário geral foi sobre a morte de Gilles Villeneuve, naquele fim de semana. Em outra ocasião, ele e um colega tomaram uma bronca do garçom, por causa de uma inocente guerra de flores, tiradas dos vasos das mesas do salão. Na festa seguinte, sentiu o clima de romance tomar conta dele, enquanto via a menina desviando o olhar em sua direção, ao som da sedutora música Açaí, que fala de vida, de natureza. De uma poeira tomando assento, sinal de que ele também um dia poderia organizar, e realizar, seus sonhos.

Peças

Assim eram aqueles dias, temperados pela paixão pela seleção brasileira, pela emoção da Copa de 1982 e pelas quintas-feiras em que assistiam à cerimônia de colocação dos tefilin, anterior ao bar-mitzvá. Era uma alegria mudar a rotina e ser especialmente convidado para o evento. Em vez de estar na escola, o grupo de amigos ia para a sinagoga, aprontando no carro, depois da meninada ter dormido na mesma casa, para não perder a hora. Assim eram aqueles dias, pedaços de um quadro, peças de um quebra-cabeça intrigante, que despertava indagações, temores. Ele amava tudo aquilo. As noites. A volta para casa no carro de algum pai de plantão, pela ruas vazias da madrugada. Adorava seus amigos e a expectativa daqueles dias. É verdade que o mundo promissor, sem injustiças e repleto de conquistas, não obedeceu à imaginação adolescente. Muita coisa se perdeu no caminho, em meio a decepções. Mas passado o furacão, ele finalmente, como se acordasse de um pesadelo, pode visualizar, de novo, aqueles tempos com carinho. Sentiu entusiasmo ao perceber que, por outro lado, tais sonhos se realizaram, não em um conto de fadas, mas na realidade da vida. Reviu a imagem daquele quadro, formado por mil peças de bar-mitzvás, aventuras e lembranças. Ela, afinal, existe até hoje. É a imagem de um coração de menino, que apenas amadureceu.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Janela

Daquela janela, na infância, o som do trem por entre os prédios o intrigava. A noite era misteriosa naquele apartamento nos Campos Elíseos. Ele via um mar de prédios, observava movimentações nas janelas, sentia o palpitar da rua adormecida lá embaixo, com o resto dos transeuntes finalizando mais um dia. Seus enigmas e seus sustos eram grandes em frente à paisagem urbana que se estendia até as montanhas da Zona Norte. Diante novamente daquele painel, muitos anos depois, ele sentiu saudade daquele medo e reconfortado por ter evoluído em suas respostas desde então. A vista continuava lá, intacta, e carregava algo intenso. Era uma espécie de nostalgia diante do que gostaria de ter sido e compaixão pelo que foi. Percebeu um pouco de seu filho e de sua doçura infantil se misturarem a estes sentimentos. Gostou ainda mais de si e da criança. Sua tia tinha envelhecido, mas ainda estava lá, morando naquele apartamento. Ele já não podia se envolver àquele cenário como antes. Parecia estar distante. Queria voltar no tempo, mas também andar para frente. Tinha medo de que tudo aquilo se encerrasse de repente, quando sua tia já não estiver mais por lá. Pensou no seu filho, na vida e na morte, na infância e na fase adulta, nas dificuldades que a vida apresenta a cada instante, representada na vastidão daquele horizonte urbano. Até a concretude daqueles prédios cinzentos parecia ser efêmera. Então o ruído de trem, vindo da Sorocabana, cortou a noite e ele teve prazer em voltar a sentir aquele susto de menino.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Consciência

Construir a estação de metrô vai denegrir o meu bairro; não jogo no Municipal porque não é o meu estádio; não ajudo um colega porque afeta o meu interesse; vou prejudicar aquele jovem que roubou minha namorada; vou parar de jogar porque esta é a minha bola; vou contar para minha mãe que não empresto o meu brinquedo. Tudo porque entrei em luta intrauterina para garantir meu nascimento. Mas quando durmo no meu travesseiro encontro a minha consciência. Ela me conta, compreensiva, que preciso mudar minha vida. Então concordo arrependido mas não encontro minha alma. Só consigo seguir em frente porque não desisto da minha busca.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Lost

Na ilha cheia de mistérios, o rosto de Jack, fino e harmonicamente alongado, prevaleceu. Seu olhar honesto, firme, convicto foi uma referência para os companheiros involuntários. Jacob nunca foi totalmente bom, teve um lado medroso. O Inimigo deixou-se levar pelo ódio. Está aí a origem do bem e do mal, em nuances que emergem de um ponto comum, de uma fonte de luz. De toda a complexidade do enredo, tão inexplicável como o nosso enredo, ficou um ponto: o vínculo afetivo dentro de um grupo. O ser humano é um ser social. Cada ilha precisa interagir com outras para uma vida plena de harmonia e superação. Lost foi uma série que contou a história de perdidos, em seus voos turbulentos, que lutavam contra a realidade da vida e que só puderam seguir em frente, na realidade da morte, quando se perceberam dependentes do amor de um pelo outro. A segunda chance veio em um momento em que não havia mais o tempo, em que a eternidade imperou no lampejo de um sorriso, no calor de um abraço, no instante de um reencontro. Este sim foi um voo sem volta.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Estima

Entrou assustado no fim-de-semana. Dirigia pela rua, a caminho do lar, e enquanto a noite caía lá fora, sentia como uma ameaça ficar dois dias sem trabalhar. Voltou para casa, encontrou seus filhos e sua esposa, não conseguiu ficar sozinho em frente à TV. Eram gritos de todos os lados, algumas cobranças que o incomodavam. Falta de afeto e palavras desafiadoras o desanimavam. Esse enredo se repetia. Pediu uma pizza. Tomou um banho, jantou e foi dormir um sono tranquilo, que só temperaria a sua vida adormecida. Na meia-vigília lembrou que ele não era Clarice Lispector, nem Raymond Chandler. Conformou-se em ser um escritor medíocre, que redigia sem se transportar. Era um escritor deveras são, sem imaginação, ávido por uma alucinação, que teimava em não emergir de sua sombra morta. De repente acordou de um salto. A esposa ao lado tinha curvas que o remetiam às montanhas e paisagens sinuosas da Califórnia de Chandler. Seus olhos eram límpidos como a luz dos letreiros de Los Angeles. Seu sorriso, nos bons momentos, estampava a alegria de Lispcetor inspirada, como uma flor que se abre para a vida. A manhã se fez por entre as frestas da janela. Ele se levantou revigorado, agradecido. Tomou um banho. Passou o indicador no vidro evaporado e redigiu então suas primeiras palavras em meses. “Eu me amo”. Pronto, abriu a porta para o ar refrescante e saiu para comprar pão para as crianças. Em vez da queixa, a esperança. A partir daquelas palavras, não importava o que acontecesse, ele estava pronto para continuar a escrever a sua própria história. Estava até preparado para ouvir, sem irritação, a bronca da mulher quando chegasse em casa. “Por que você não escreveu eu te amo?”

Desconhecido

No fundo do mar predomina o silêncio. Lá, sob pressão inacessível ao homem, a luz não chega. A escuridão é plena. Cadeias montanhosas altíssimas, algumas mais altas que o Himalaia, se arranjam em um plâncton cheio de complexidade. Às cegas, enquanto crustáceos exóticos; figuras bizarras com duas cabeças; peixes com escamas pontudas; misturas de tubarão com arraia; animais com cabeças enormes e corpos ínfimos; bichos com olhos na ponta da cabeça fazem da atmosfera marinha um lugar misterioso. A vida local é harmônica, favorece o meio ambiente, mas dá medo imaginar. Lá no fundo do mar, onde a diversidade de espécies chega aos milhões, o conhecimento do homem quase não chega. A morte sim. Por lá estão afogados o sofrimento humano, a história incógnita, o desconhecido. Uma cidade submersa se oculta, navios que carregavam esperanças se deterioram entre as algas, corpos inchados de gente que sorria e sonhava se decompõem submissos à natureza, solitários como balões perdidos. Se eram organismos fortes e ativos, hoje são carcaças frágeis e inertes. O oceano é o outro lado do homem, que na sua superfície tem condições de respirar aliviado, deixando para as profundezas o seu mundo estranho. O seu lado terrorista. Nos escombros do mar, repousa Bin Laden.

One

As melodias do U2 se misturavam com a brisa que soprava na noite estrelada. O clima era mesmo místico no estádio do Morumbi, que emanava uma energia contagiante. A massa pacificada e alegre entoava cantos em uníssono, repetindo os refrãos das músicas conhecidas, símbolos de gerações. Os rostos estavam iluminados pela luz dos holofotes, cujas partículas pipocavam no ar cintilante. Pareciam um só, todos bonitos, revigorados pelas mensagens de paz que as letras traziam, pelas imagens emocionantes do telão, se referindo à importância do respeito, do amor e da solidariedade entre os seres humanos. Lembrei-me então que a música One fala justamente sobre isso. Ao fundo, os prédios que rodeavam o estádio, pareciam testemunhar o momento épico, com janelas iluminadas representando o dia-a-dia de cada um nessa correria em busca da afirmação que é a vida. Não saberia definir o que era todo aquele cenário, em que me misturei alimentando meus sonhos, fazendo-os viajar pelo tempo, pelo meu passado, por outros mundos que eu podia ver das arquibancadas. Eles ressoavam pelo céu junto com outros tantos sonhos, passeando ao lado das constelações e da lua, observadores privilegiados da nossa era, condensada naquele show. Não saberia definir exatamente o que era aquilo tudo. Só poderia dizer com certeza que era o oposto da guerra.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Cavernas

Muitas celebridades e famosos expõem pensamentos no twitter. Acham que estão abafando, mas estão se revelando. Jogadores de futebol são um exemplo. Desabafam grosserias, revanchismo e insultos como se estivessem filosofando. O twitter é mesmo espelho de uma era de exibicionismo, em que a aparência oculta outro universo. Pesquisadores se debruçam por anos em busca de escritos em cavernas e documentos antigos. Anseiam por um mínimo sinal de como eram os tempos antigos. De apenas uma letra, ou da forma com que foi impressa, teorias comportamentais se desenvolvem. Já os documentos dos tempos modernos se multiplicam. São verdadeiros papiros eletrônicos. Abundam rumo à eternidade, quase sem o perigo do desgaste. O historiador que os ler daqui a milhares de anos terá um preciso retrato de nossa época. Entenderá o que há por trás de tanta selvageria e futilidade. Talvez note até um coração ferido em pleno desabafo. E perceba o que não conseguimos perceber. Transforme em amor o ódio dos insultos; em carência as frases de egoísmo; penetre na profundidade das palavras vazias. Este privilegiado verá com outros olhos a nossa era; encontrará riquezas que não enxergamos; perceberá quanto tempo perdemos; terá a clareza que não temos; resolverá as guerras que não resolvemos. Tudo isso auxiliado, muito mais do que pela tecnologia da informática, pelos olhos compadecidos da história. Em sua sabedoria, ele decifrará nossa alma atormentada, alimentado pelas palavras que utilizamos para nos esconder. Finalmente, alguém terá compaixão de nós, homens, ainda aprisionados nas cavernas da nossa mente.