segunda-feira, 30 de julho de 2012

Solitários

O mar Amado abraçou o Vale Dourado, de onde surgiu o nome Dorival. O encontro fez vento, movimentou um barco a Veloso, balançou palmeiras e betânias em um balancê pela Costa. Gil, o pássaro da voz suave, não se sentiu exilado. Cantou a cena de longe, pulando de galho em galho, de vila em vila, com seu violão. Ele se vira sozinho. Afinal, “a Bahia já lhe deu régua e compasso”.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Baianos

As ondas, sensuais como a cintura de Gabriela, beijam a face de Ilhéus. Recebem o abraço da brisa, quando se diluem como sonhos na praia. Da dança invisível, vem o cheiro de cravo, a cor de canela. O gosto de cacau, de riqueza e de luxúria. O gosto amargo da miséria. A luz do sol aquece a areia branca. Sufoca o peito dos solitários, dos apaixonados, dos invejosos. Embriagados nas ruelas. Desesperados na igreja. Apoquentados nas construções rústicas. Toque de luar, piscar da noite estrelada. Chanel para as moças de joias pesadas. De sotaques e maquiagens fortes. Samba e swing nos cabarés. Sombrinha para as puras e seus vestidos suaves. Coroneis de trajes cinzas, com falas monótonas. Modernos de trajes claros, bigodes finos, aprumados. Mas sou eu quem escuta a trilha sonora que deles emana. Eles não podem, são protagonistas de enredos que encantam e expandem horizontes. Puro Caymmi, tranquilo em um barco de pescador na tarde alaranjada. Poente que se mistura à alma da cidade. Som colorido a penetrar no interior escuro do meu quarto. Cheio de turcos descabelados, atormentados. Feito de professores sonhadores. Personagens problemáticos, machistas, inseguros. O fundo do mar esconde o segredo: são todos ávidos por carinho. Não sei se Freud explica por que todo ladrão é moralista. Ele não conhecia o Brasil. Ele não amou a Bahia.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Perfumados

No futebol, adoro o termo jogar fora de casa. Deparar-se com arquibancadas torcendo contra o seu sucesso, colocando o que puder de energia contrária à sua identidade é um desafio lúdico, necessário a todos que querem a vitória. Todos os dias, quando acordamos, nos olhamos no espelho, sonhando em não encontrar as olheiras da fragilidade e o caos dos nossos cabelos desarrumados. Expostos à nossa realidade humana, antes de nos aprumarmos, é inevitável um certo receio diante do desafio que a manhã nos impõe. Respiramos fundo, tomamos banho, nos perfumamos como num ritual que nos abençoa antes do saudável enfrentamento. De forma construtiva, até religiosa, nos preparamos para o que é mais bonito e difícil no futebol: ganhar fora de casa. E na maior parte do dia, o jogo continua com esta tônica. O perfume perde o aroma para o suor, a camisa amassa. Atuamos na casa - e sob os olhares enviesados - de um adversário. Há duas maneiras de colocarmos a cabeça no travesseiro sentindo o sabor do triunfo, depois do banho que nos renova. Uma é quando conseguimos tirar o adversário de dentro de nós. E, se ele estiver fora, urrando dos alambrados, percebermos que seus gritos não são tão potentes. Podemos fazer dele apenas um adversário, não um inimigo. E antes de dormirmos o sono dos justos, desejar-lhe um amistoso "até amanhã".

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Estereótipos

A prosa brasileira, apesar de seus escritores magistrais, costuma abordar as vaidades humanas em forma de paródia, com ironia e sarcasmo. Mas, em geral, não mergulha tanto quanto a literatura internacional nos conflitos internos mais profundos dos personagens. Há uma estética descritiva e enredos muito bem elaborados, porém em meio a exagerados siricuticos, brejeirices, figuras cômicas, homens durões, heróis transgressores, mulheres que dão. A individualização de cada drama parece ficar à margem dos estereótipos. Talvez seja por isso que o Brasil ainda não foi contemplado com um Nobel de Literatura.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Obsessões

Mesmo a precisão matemática não alcança a realidade total. Se uma pessoa vai três vezes por semana ao analista, na primeira vez ela cumpriu 33,3% de sua rotina. Na terceira, terá cumprido 99,99999%. Nunca haverá a totalidade matemática, apesar de ela, por inteiro, ter estado lá, nas três sessões semanais. Na vida, as dízimas da obsessão, da certeza radical e dos pensamentos negativos se desfazem diante dos acontecimentos. A esse fenômeno muitos dão o nome de fé.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Estátuas

Quando adolescente, ele escreveu um texto em que todos os que o cercavam eram estátuas, cimentadas em seus interesses concretos. Quanto vou ganhar? O que eu lucro com isso? No que isso me favorece? Essas perguntas, repetidas exaustivamente tiram o caráter reflexivo do ser humano. E as estátuas nem percebiam que um dia deixariam de ser estátuas, para virarem cadáveres. Voltariam novamente a ser de carne e osso, mas continuariam a não ter alma.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Plantinhas

A tia gostava de cultivar plantinhas em pequenos potes. Minúsculos, do tamanho de tampas de detergente e coisas parecidas. Ela as deixava na borda das janelas e na sacada. Regava, colocava para tomar sol, quase acariciava. Um dia seu marido de muitos anos foi levado para outra cidade e nunca mais se viram. Depois ela foi embora, para uma boa clínica, que a acolheu com respeito. Foi um fim de casamento repentino e implacável. Mas as plantinhas ficaram, tomando sereno, sorvendo os eflúvios da noite, se guiando pelo barulho do trem, avistando a paisagem urbana que ia do centro a Santana, retendo as histórias dos sobrinhos, que percorriam o apartamento atrás dos brinquedos, das revistas, se esbaldando no tapete de pele de carneiro. Elas ficaram por lá, carregando todas essas movimentações. Até murcharem de saudade.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Óptica

A postulação do filósofo Espinosa sobre os afetos da alegria e da tristeza tem relação com conceitos religiosos. Ele só não reconhece D’us como um ser superior com vontade própria, o que foi considerado uma heresia. Para Espinosa, D’us, natureza e realidade são sinônimos. O judaísmo, no entanto, coloca a alegria como uma das qualidades mais importantes do homem. Para acreditar em D’us, e justamente por isso, o indivíduo precisa estar besimcha (em alegria). No século XVI, Espinosa foi excomungado como judeu e passou a consertar lentes para se manter. Sua tese de que a alegria é fonte de estímulo primordial, porém, mostrou que o judaísmo ainda permaneceu nele. Como as lentes que consertava, ele e o judaísmo eram refratários, translúcidos e opacos um com o outro. Mas mantiveram um mesmo foco. O raio de luz que deles emanava convergia para a necessidade de o homem viver com o coração aberto e um sorriso no rosto. Não importa se essa crença fosse filosófica ou religiosa.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Inversão

Quando menino, ele era fanático por futebol. Sabia todas as escalações do Corinthians, brincava com os amigos, que nem eram tão ligados assim ao esporte. Quando adulto, as necessidades da vida e a seriedade em encarar a realidade mudaram seu foco. Seu amor por futebol não esfriou, amadureceu. Enquanto isso, seus amigos, por terem enriquecido logo, passaram a ser os obcedados, talvez por já não terem tanto em que pensar ou se preocupar. Não dormiam na véspera de jogos. Só falavam daquilo nos encontros. O romantismo, porém, não era o mesmo. Tornaram-se repetidores das piadinhas sobre rivalidade usadas por ele na meninice. Na boca de homens, elas soam frívolas. Na boca de uma criança, elas ajudam a dar um sentido para a vida.

Insensatez

Há algo que parece banal, mas que no fundo é perigoso no fanatismo. Mesmo que restrito "apenas" às brincadeiras no futebol. Se o germe aparece em uma área, está pronto para aparecer em outras. Em uma UTI, um palmeirense respirava por aparelhos. Com o olhar pregado no teto, se deparava com a fragilidade humana, passivo diante da movimentação dos enfermeiros. O futebol era a última coisa que pensava naquele momento. Até seu médico comentar a rodada, dizendo para um colega, na transferência de plantão, em tom de botequim. “Eu quero é que palmeirense morra no inferno...”

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Campeão

De repente, aquelas buzinas ao longe, a agitação da cidade, a ansiedade no ar o remeteu a 1977. Ele era criança, o Corinthians disputava a final contra a Ponte, tentando sair de uma angustiante fila que só fez a torcida crescer no sofrimento. Não esperava ser pego, nesta distante época, mais mecanizada e instantânea, por sensação tão nostálgica, antes da final contra o Boca, 35 anos depois. Voltou a ser menino, reconstruiu então um caminho de júbilo. Mas havia um paradoxo. A própria modernidade sofre mudanças. O corintiano sofredor já não acreditava mais na velha retórica de que seu time treme em Libertadores. Assim como muitas reclamações jaborianas de que o mundo piorou, de que as pessoas foram aniquiladas pela pressa e pelos desejos fast-food, não faziam tanto sentido. Soavam repetitivas e arcaicas. Irrompeu-lhe uma volúpia, uma certeza avassaladora de que era hora de olhar para frente, alimentado pelas gostosas semelhanças com o passado. Sentiu que o Boca ainda não percebera a transformação. Viu os argentinos, ingenuamente, tentarem jogar no erro do Corinthians. Mas desta vez o Corinthians não iria errar. Seria, ainda mais do que em 1977, o inquestionável campeão. Neste momento, o passado e o presente, tão diferentes, se uniram acima dos tempos. Em com as cenas rodopiando em sua mente, as experiências de outrora se juntaram às esperanças de agora, para se tornarem um único elemento, vital para a continuidade de nossas vidas: a vitória que emerge da confiança.

Saudosos

Era uma senhora que não tinha filhos. Mas tinha irmãos e sobrinhos. Envelheceu com as agruras da vida, emagreceu, seu andar ficou trôpego, suas mãos trêmulas. Os olhos azuis, com nuances entristecidas, porém, não escondiam um brilho radiante de vida. A cada queixa, a cada lamento, a luz azulada aumentava, uma alegria emanava, como se suas pálpebras sorrissem para avisar que, no fundo, aquelas reclamações aparentes carregavam o bom humor de sempre. Em seu enterro, seus irmãos e sobrinhos foram fieis companheiros. Estiveram com ela até o fim, gratos, orgulhosos e já saudosos por terem compartilhado por anos sua adorável companhia, dividindo pequenos momentos que se transformaram em grandes histórias. Ela desbravou uma trilha de amor, seguida por herdeiros acima da herança biológica. Nada mais importante para uma pessoa do que ter quem a louve e quem chore por ela no momento da partida.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Abraço

Na frente da casinha no kibutz, duas senhoras se reencontraram. Eram irmãs que não se viam havia 48 anos. Separaram-se por causa da guerra e agora dividiam um longo abraço, por entre trilhas ajardinadas, como se tentassem vencer quatro décadas em alguns minutos. Uma veio para o Brasil, se casou, teve filhos e netos. Outra foi morar em Israel, onde também fez família. A distância não apagou a memória, tampouco o afeto. Apenas internalizou uma moça na outra, até se tornarem idosas. Depois daquele encontro, vieram outros esporádicos naquela viagem. Encerrada a visita, porém, nunca mais se viram, obedecendo uma ordem natural da rotina humana. O que nos une não são apenas os sentidos concretos da visão, audição e tato. A irmã mais velha morreu três anos depois, aliviada. Sabia que aquele abraço duraria muito além de 48 anos.