quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Autógrafo

Conversei com Ben Abraham em seu escritório, com móveis antigos e quadros sobre o judaísmo. Vi em seu olhar cintilante, e na maneira como recebeu meu filho, a verdade da ressurreição. O brilho intenso, os gestos cordiais, a fala curta e mansa me contaram muito sobre alguém que emergiu das trevas, realçando ainda mais sua crença na humanidade. Sinto que ele não acreditaria tanto na bondade se não tivesse conhecido o lado mais brutal do homem. É preciso vivenciar para se fortalecer e para não acreditar que o mal prevalece. Quem duvida do Holocausto, no fundo, não aceita a sua derrota. “Como admitir que morreram seis milhões de judeus e mesmo assim os judeus não sucumbiram, permanecem vivos? Não, não foram seis milhões que morreram, foram menos, porque senão vocês não existiriam mais. Não posso admitir tamanha derrota”, dizem, nas entrelinhas. No fim, Ben Abraham me autografou seu livro. A escrita era trêmula, mais uma vez demonstrando superação neste simples ato. Não me surpreendi ao ler o termo final, antes da assinatura de seu nome. "Com carinho".

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Escuna

Uma mulher robusta e loira senta no banco da escuna e mira o horizonte, as ilhas, sem olhar para os outros passageiros. Anda de cabeça erguida. Finge não ceder aos balanços da onda, às ondulações da vida. Avista o horizonte como uma rainha pomposa, como se seu biquini não escondesse estrias interiores, mas prendesse um véu a se arrastar pela madeira gasta e molhada. Os outros tentam pegar nas nuvens seus pensamentos distantes. Não conseguindo, sentem-se miúdos em seus trajes quase desnudos. Não percebem que a mulher robusta quer que seja assim. A mulher robusta tenta esconder que é ela quem está se afogando.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Lataria

Quando se troca um carro velho e batido por um carro novo e pomposo, os motoristas não buzinam quando você anda devagar, os manobristas o chamam de doutor quando você sai do carro, os pais dos coleguinhas dos seus filhos o incluem nas conversas e você começa até a pensar que o mundo tem um coração de lata e um cérebro mecânico. Mas não é verdade. É o seu carro que, no ronco macio do motor e no brilho de sua pintura intacta, reflete nas ruas o lado humano de quem pode vencer.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Moça

Moça, não venha até minha janela mendigar, com olhar esfomeado, volumoso, pedinte, trazendo seu filho no colo. O menino de pezinhos sujos e descalços parece dormir em seu bruço, deixando um pouco da baba escorrer por seu vestido remendado. Não sei se ele dorme, ou se fecha os olhos para sentir o pulsar do coração materno, abandonado, ressoando com ansiedade diante de cada janela do carro a que se expõe. Dormindo ou não, de olhos fechados, ele sente o cheiro do monóxido de carbono misturado ao do suor. E ouve o som da cidade mergulhar nas luzes dos postes que se acendem para a noite. Ele percebe jovens executivos andarem com mais calma no fim do dia, enquanto grupos de amigos já se reunem nas mesas dos bares da esquina. Ele também capta o ar de suplício, o cansaço, a humilhação da mãe que o leva junto para pedir dinheiro, comida, ajuda. Pela história desta cena corriqueira, peço que não venha à minha janela. Se eu lhe der moedas que me sobram, não conseguirei, por falta de coragem e de disposição, tirá-la da rua, lhe dar um emprego decente, matricular seu filho em uma boa escola, presenteá-lo semanalmente com brinquedos que ele nem percebe que deseja, encontrar para você uma vida digna e para ele um futuro promissor. Sou um homem comum, não sou heroi. Me culpo por isso, rendo-me à minha covardia todas as vezes que me vejo diante de alguém como vocês. Tento fingir que está tudo bem. Por isso, moça, não venha até a minha janela com o menino, porque eu não conseguirei lhe dar o que vocês realmente precisam. Moça, não me faça lembrar de você, de seu rosto bonito e mal cuidado, de seus cabelos longos alquebrados, quando eu botar a cabeça no travesseiro. Já tenho os meus problemas, as minhas contas, as minhas aspirações profissionais, as preocupações com o meu time, a minha agenda atulhada de compromissos. Não me traga complicações. Moça, não venha até mim para eu ter de baixar o vidro e ver de frente o brilho opaco de seu olhar. E a áurea inocente e espoliada da criança que vai em seus braços. Já sei que ela guardará para sempre esses momentos de miséria, quando nem podia tomar banho direito, cortar seus cabelos ressecados, se proteger do vento, confiar no tempo, se curar do medo. Moça, não se renda como eu, nem desista de seu potencial, insistindo em vir até mim me pedir um trocado. Isso é se enredar na teia maligna que se tornou sua vida. Tem de haver outro jeito, por mais diabólica que seja sua situação. E o pior: não traga seu filho se você não consegue sair desta trilha. Moça, não venha até a minha janela, por favor. Não faça isso com você. Não faça isso com ele. Não faça isso comigo.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Montanha

Herman Hesse escreveu um conto sobre uma montanha, retratando-a como uma espécie de testemunha paciente da passagem do tempo, das tormentas, do florescer das plantas e dos períodos de seca. Sua superfície rochosa tinha de criar alternativas para se perpetuar, fertilizar a terra e as árvores que abrigava a fim de aguentar com tolerância as intempéries do céu e as loucuras do clima. Entendi que ele quis mandar um recado aos homens. Sejamos, portanto, montanhas de sabedoria, suportando com firmeza a histeria alheia que se abate em nossa crosta. Não deixemos que esta ignorância penetre em nosso núcleo, atiçando nosso mais tórrido magma. Dependendo do caso, causamos prejuízos, para nós e para o mundo que nos cerca, quando sucumbinos a ela. Nestes momentos, trocamos de identidade. A segurança vira instabilidade. Deixamos de ser montanhas e nos transformamos em vulcões.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Momentos

No pátio após a corrida, o moço ouvia as notícias do rádio se misturarem ao balançar das árvores e ao céu da tarde. Cada fala do âncora era como uma brisa que movimentava a cidade, incitava o canto dos pássaros, refrescava a concretude dos prédios ao redor. Neste ambiente, vislumbrou o semblante do tempo. Ouviu, então, a notícia de que um jogador teria de ficar parado por um mês, em razão de uma inflamação no joelho. Pensou na preocupação do jogador, na sua ansiedade em retornar logo, na angústia de ver os companheiros treinarem, na tensão em se sentir pressionado a voltar, a sempre fazer o melhor, a conquistar, a superar mais um dia com o um grito rotundo de seu coração vencedor. Pensou ainda, que, quando estiver aposentado, daqui a alguns anos, já no fim da vida, tudo isso não terá passado de um sopro momentâneo para o tal jogador, a cair no esquecimento, sugado por valores mais duradouros, como a maturidade, a sabedoria e o correr dos dias. Veio a ele, enquanto a noite caía como um pano sugerindo os contornos do infinito, a ideia de que as preocupações emergenciais das pessoas se desvanecem com outras preocupações, que, em escala maior, vão se eliminando enquanto a vida passa, para um dia serem vistas com um misto de bom humor e saudade. É justamente por isso, no entanto, que elas têm graça, concluiu. Um dia serão como um pequeno lapso em nossas vidas, mas, enquanto a vivenciamos, o fazemos com intensidade, obsessão, loucura, lutando pela própria identidade, pela qualidade da existência, como um urso defende sua caverna antes de hibernar em paz. Viver nada mais é do que superar continuamente o acúmulo de conflitos. São justamente as pequenas demandas rotineiras, retratadas em mínimas vitórias, que nos conduzem ao futuro. Elas parecem pequenas, mas são fundamentais. Somente por causa delas é que poderemos vê-las à distância, em outra etapa. De onde, embalados pela compreensão, poderemos olhar tudo isso do alto de nossa montanha de experiências, com outros olhos.

Precisão

O ceticismo, o fatalismo e a concretude norteiam comentaristas que buscam a precisão. O romantismo, a subjetividade e a tolerância não estão em voga. São tão imprecisos, por serem tão verdadeiros.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Show

Einstein dizia que a imaginação é mais importante do que o conhecimento. Sua concepção do universo era tão profunda que ele captou com simplicidade o encanto de um romance. Chega a ser impressionante a habilidade de um escritor ao passear por seu inconsciente, se envolvendo em devaneios, mergulhando em um longo sonho acordado para escrever uma história. Isso sem se desligar de seu estado consciente, da lógica e da coerência. Um autor se traveste, se transforma, se transfigura, cria alter-egos, projeta personalidades, inventa, desabafa, se livra de fantasmas, mata e morre no fértil e permitido campo da imaginação. Lá, nada é proibido. Sanidade e loucura aparecem juntas, mostrando o que têm de melhor, no palco onde elas comandam o show.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Feição

A feição de uma mulher resume as músicas marcantes, os sonhos inebriantes, os projetos inúteis, os olhares soluçantes, os amanheceres fúteis, a adolescência indômita, a maturidade atônita, a história efêmera, a infância distante, as aulas do primário, as aventuras do colegial, as barbas viris, a labuta diária, os cabelos ralos, a juventude passageira, a saudade insistente, a esperança resistente, o coração palpitante do homem que a amou.