sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Ninguém dorme

A madrugada já estava terminando, mas os objetos continuavam a ser contornos esparsos no escuro: a cama, a cadeira ao lado, a prateleira de miniaturas. No silêncio entrecortado por raras buzinas e brecadas que vinham lá de baixo, as formas sugestivas se assemelhavam a nuvens que tentamos adivinhar o que representam.

Ao ir conferir como o menino estava em seu quarto, o pai percebeu que a criança já acordara. Olhava para a escuridão do teto, tentando espantar o susto com os ruídos que vinham do vizinho: uma moeda no chão ou uma descarga era motivo para ele desconfiar da presença do temido palhaço assassino ou de algum bandido que teria invadido o prédio em sua imaginação.

— E esse barulho papai?

— São os passos de alguém que acordou mais cedo. Vai ver daqui a pouco você, quando for até a perua, se encontre com ele e diga bom dia.

Com uma risada sincera e curta, ele mostrou que a ideia o aliviou. Pela fresta da janela, uma brisa perfumada e fresca inspirava pensamentos longínquos. O pai, então, resolveu desfilar seu manancial de ideias originais.

Enquanto vestia a criança, a fez gargalhar por causa das várias etiquetas da camisa nova do uniforme. Ia falando, com voz engraçada, cada vez que via uma delas.

— Nossa, essa etiqueta aqui, um milhão. Outra...nossa, vale muito essa camisa, um milhão. Mais outra, outro milhão de reais.

Nem parecia que o filho estava acordando cedo. O bom humor do pequeno resplandecia naquela conversa, ainda sob a penumbra da madrugada. Ria do fundo da alma, como diante de um palhaço (não assassino!) fazendo piruetas no picadeiro.

O pai ainda brincou e deixou as etiquetas grudadas no armário, falando que depois ia pegar para conferir se tinha pago aqueles todos milhões por aquela camisa tão valiosa.

Enquanto o menino ia ao banheiro, o pai foi até a janela do próprio quarto. Observou o horizonte ainda negro, com poucas luzes dos prédios acesas. Fazia tempo que não entrava em devaneio tão profundo, embebido pela madrugada.

Sentiu um enorme prazer ao ver a cidade ainda adormecida, pacata, reverenciando um lado humano tão oculto nas cicatrizes diárias que a correria do dia a dia faz no asfalto e nas almas.

Lembrou-se então da ária Nessun Dorma, de Puccini na obra Turandot, e logo chamou o filho, que estava obediente e inebriado com aquela atmosfera misteriosa de início de dia.

— Filho, vem cá. Ouça no meu celular essa ópera, chama Nessun Dorma. Quer dizer Ninguém Durma. Pega um momento como esse, de madrugada, quando um homem, o Calaf, é o único que sabe que será o escolhido pela rainha. A revelação será na manhã seguinte.

Já na sala, incrementada pela vista do terraço, ele colocou a música no YouTube. Num segundo, a voz forte e encantadora, vinda do peito de Richard Tucker, preencheu o local. Depois envolveu todos os ambientes da casa de tal maneira que parecia alcançar o céu.

A música tocou também o menino. Junto com o pai, e em silêncio, foi vendo a manhã surgir colorida como se ela dançasse com aquela melodia. O gran finale era otimista e belo: "Vinceròòo! Vinceeeeeeeeeeeeròòòò....!"

Os barulhos iam aumentando na rua. Davam a impressão de que todos os insones da cidade se levantaram para o batente, em busca de alguma revelação. E que ninguém dormiu justamente devido ao sedutor convite à reflexão que a madrugada e seus fantasmas apresentam.

Apenas o pai teve a possibilidade de ir finalmente atrás de um cochilo, após deixar o filho na porta da perua, voltando para a cama por mais meia hora de sono. Quando saiu, apressado, para ir pegar o metrô, esqueceu das etiquetinhas grudadas no armário.

O filho, ao voltar, no fim do integral, as percebeu lá. E sentiu a luta do pai, que chegaria tarde, naquelas palavras que valorizavam a camiseta, a vida, a preocupação com a família, a insônia de um dia sonhar em ter, senão um milhão, pelos menos o suficiente para pagar o aluguel com tranquilidade.

Conseguiu intuir o motivo de o pai repetir, em tom de gozação, sobre aquele milhão tão engraçado. Intuiu mesmo sem saber muito bem o porquê. São as sábias conclusões de criança: a beleza da vida é que ela não existe sem dias de insônia. E apenas sussurrou baixinho, para si:

— Esse cara é mesmo uma figura...

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