sexta-feira, 28 de março de 2014

Viaduto

A mulher jovem dorme, no colchão à beira de um gramado na rua. Lá embaixo, atrás dela, a avenida flui em seu trânsito indiferente. De moleton velho e camiseta azul, ela está um pouco contorcida. Estampa acima dos lábios uma ferida seca. O rosto sujo não esconde a tranquilidade do sono. Parece viajar em outro mundo, menos indigno, menos imundo. Seus cabelos claros e lisos não escondem a oleosidade. Um pouco à sua frente, mais à esquerda, um homem também dorme profundamente. Ele, porém, está na calçada, esticado no concreto. O que sonha aquela figura empobrecida, que exala uma feição embriagada, rodeada de sacos de arroz, garrafas de refrigerante vazias, sacos de plástico molhados e papéis de embrulho amassados? As pombas aproveitadoras exploram as migalhas de pão que se espalham ao lado do casal. O que posso fazer por vocês no egoísmo dos meus problemas mesquinhos? No meu mundo pequeno, talvez imundo também, começo a me irritar no carro, sobre a rua em aclive, na entrada do viaduto. O cara da frente, afinal, não anda. Olho para o casal e penso então que posso fazer algo por eles, a menos de três metros do meu lado. Tão longe e tão perto de mim. Como uns dos outros neste mundo. Resolvo ser o único a poupá-los de barulho, ou de um incômodo que os acorde. E mesmo que o farol feche sem que eu passe, não buzino.

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