segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Esquecimentos

Chegou com pressa à garagem, estacionou o carro e entrou correndo no elevador. Engraçada a ironia da corrida contra o tempo... Se ele tivesse sido menos apressado, teria percebido que deixara a chave do apê no veículo. Sorte que esquecera lá e não na empresa que ficava em outro bairro. Enfim, demorou mais porque precisou descer tudo de novo para apanhar a chave. Quando subiu novamente se deu conta de que, de instante em instante, já perdera um bom tempo naquele dia. Primeiro, quando, no supermercado, percebeu que tinha deixado o cartão de crédito em cima da prateleira da sala. O que havia acontecido com ele? Nunca se esquecia de nada, nem de quitar a mais irrelevante conta... Precisou pagar com débito que, por sorte, tinha deixado dentro da carteira. A senha estava na ponta da língua, ufa! Ao sair do banco, um susto. Cadê meu i-pod? Apalpou o peito, esquecendo-se de que a camisa não tinha bolso e só sentiu novo alívio quando percebeu que estava no bolso de trás da calça social. Aproveitou para se certificar de que a carteira estava no direito. E de que a chave do carro estava na pasta. Voltara para casa apenas para pegar o cartão de crédito, pois iria precisar usá-lo mais tarde. Para comprar o presente do amiguinho do filho. Mas onde estava o convite, mesmo? Recuperado o cartão, aproveitou para apanhá-lo e ter certeza do endereço. E se certificar de que o passaporte estava na gaveta da cômoda, para não ter problemas na viagem de segunda. Antes, porém, haveria eleição: o título de eleitor estava na gaveta do escritório. Já no hall, à espera do elevador, conferiu tudo: cartões, chaves, celular, óculos. Óculos? Desde quando começou a usá-los? Não se lembrava direito, talvez foi há 15 anos. Sim, houve um tempo em que olhava o mundo sem eles. Como havia um tempo em que acreditava em coisas que há muito não pensava: amizade, esperança, compaixão, RPM, a voz de menina de Nikka Costa, bailinhos, infância, o sorriso da mãe, o abraço do pai, a primeira vez em que foi ao futebol. O guardador até se admirou por ele saber decor o time do Corinthians, com apenas seis anos. Ele, ao lado do pai, ficou orgulhoso, como se recebesse um prêmio. “Nossa, uma criança, já sabe tudo isso”, disse o homem, que o fez experimentar, em meio à pobreza dele, o doce sabor da generosidade. E hoje, o que ele sabia neste mundo de chaves, i-pods e senhas secretas? Planejar um investimento perfeito em CDI, manusear os truques da planilha eletrônica, teclar com rapidez, almoçar com pressa, buscar vitórias a qualquer custo, que, no fundo tinham não tinham aquele mesmo gosto doce. A ausência de celular provocava um imenso vazio em seu íntimo. Algo dele ficara para trás, em algum lugar. Assim como a busca pelo verdadeiro aperfeiçoamento, quando ainda reconhecia para si sua timidez, suas fragilidades e seus reais desejos. Quando olhava no olho de uma pessoa sedento para extrair daquele brilho a palavra amigo. Tinha de ir rápido, estava com pressa. Mas resolveu voltar um pouco, respirar. Foi para o quarto, deixando o dia que virava frenético lá fora. Adormeceu na cama. Acordou sem saber quanto tempo dormira. Percebeu que foram algumas horas quando viu o lusco-fusco do entardecer penetrar pela janela. Escurecia. Acendeu a luz, entrou no banheiro. Lá fora já podia sentir o perfume da noite na cidade. E ouvia à distância o som de buzinas alucinadas. Tudo parecia longínquo. Os barulhos da rua, o céu que começava a se polvilhar de estrelas, a infância, os valores. Agora era ele, seu rosto cansado frente a frente com o espelho. Vivia para se lembrar de tudo. Mas se esquecera de quem era. E até das chaves, na porta do apartamento aberto.

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