quinta-feira, 22 de abril de 2010

Véu de noiva

Na infância, atravessava a cidade a pé para ir aos jogos do São Paulo. Trabalhava muito costurando o couro de bolsas. Casou-se, teve filhos, sua mulher o deixou. Sempre foi de falar pouco, em suas feições sérias, sorriso leve e andar tranquilo. Por isso não transparecia seu sofrimento. Em qualquer situação, no entanto, não deixava de acompanhar a trajetória de seu time.
Eis que conheceu uma moça, ainda solteira, já na casa dos 30. Com uma beleza a ser descoberta, por de trás de óculos grandes, ela o aceitou, numa comunhão de fragilidades, entre pessoas que temiam ser estigmatizadas em uma época de preconceitos. De um lado, o desquitado, com fama de traído. De outro, a mulher de 32 anos com medo de nunca se casar.
Viveram juntos por 47 anos. Montou uma fabriqueta de bolsas, que dava o sustento suficiente para se manterem. Formavam um casal que parecia se entender, em uma cumplicidade muda que ocultava a fragilidade de ambos. Não era raro trocarem carícias e suaves olhares de afago, timidamente, em público. Era um casamento mantido sob um véu de noiva, doce, encoberto, frágil.
Pois há alguns dias, foi ele, o rejeitado de outrora, que a deixou. Sem expressões, bem ao estilo que o marcou. Deixou-se ir como uma folha ao vento, para aterrissar no conforto e na riqueza da casa do filho, à beira-mar. Já com movimentos lentos, ela, envelhecida, chorou nos primeiros dias, dizendo-se viúva de marido vivo. Nunca tiveram filhos, não deixaram rastros da longa união. Nem no aniversário de 80 anos dela ele ligou para dar parabéns.
Foi mesmo um prenúncio de morte. O encontro acolhedor, aquilo que construíram, a cumplicidade, a fabriqueta de bolsas, o véu...tudo parece ter desvanecido em sua memória, quando ele, olhar distante, contempla da varanda um horizonte ilusório à sua frente. Sabe que aquela amplitude convidativa não o levará longe, como pensava outrora, quando, contente, brincava com os sobrinhos no mar de Santos. As ondas agora se desfazem sobre suas retinas, como muitos dos seus sonhos deixados para trás. É, acho que ele nem é mais são-paulino.

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